Os Mura, a ameaça da mineração e a crise climática

Os Mura, a ameaça da mineração e a crise climática

Até o fim desta semana, o Supremo e o Senado devem decidir se terras indígenas de todo Brasil podem ter seus processos de demarcação suspensos e suas homologações sujeitas a anulação – tudo vai depender das votações sobre o marco temporal que ocorrem em Brasília. A mais de 3 mil quilômetros dali, no município de Autazes, interior do Amazonas, o povo Mura, que sobreviveu a tentativas de genocídio por conta de sua índole guerreira e suas táticas sofisticadas de enfrentamento, espera há 20 anos pela demarcação de seu território, cobiçado pela mineradora Potássio do Brasil. Mais que reconhecimento, a demarcação é a garantia de um futuro para os Mura, que apesar de ocuparem a região há mais de dois séculos, estão, como todos os povos indígenas brasileiros, sujeitos aos impactos do julgamento do marco temporal no STF – que pode inviabilizar a demarcação da TI e deixá-la ainda mais vulnerável – e da votação do PL 2903 no Senado, que abre as portas das terras indígenas para a exploração mineral e dispensa consultas aos povos afetados e, até mesmo, à Funai. Quem perde, no entanto, não são só os Mura – é o planeta. 

Por Elaíze Farias*

Manaus (AM)O Canadá detém 75% das empresas de mineração no mundo, com empreendimentos espalhados em vários países, entre eles o Brasil. Na Amazônia, dois grandes projetos de uma empresa canadense estão em curso, com apoio e facilitação das autoridades públicas regionais e nacionais: Belo Sun e Potássio do Brasil, ambas do banco Forbes & Manhattan

O primeiro, mais conhecido, tem projeto de extração de ouro em áreas que impactarão aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas em Volta Grande do Xingu, no Pará. O segundo é um bilionário projeto de exploração de potássio para produção de fertilizantes que, se autorizado, vai devastar comunidades indígenas do povo Mura no município de Autazes, no Amazonas. Localizado a 120 km de Manaus, Autazes é formado por microbacias compostas por grandes lagos à margem dos rios Madeira e Madeirinha. Um dos maiores deles se chama Lago do Soares.

Os Mura foram um dos primeiros povos da Amazônia a sofrer tentativas de extermínio pelos invasores europeus, no século 18. A índole guerreira, o grande conhecimento de navegação e táticas sofisticadas de enfrentamento ao inimigo fizeram com que eles resistissem a séculos de ataques, ameaças e esbulho territorial. Mas desde então, seu vasto território foi drasticamente reduzido por outras formas de invasão, como turismo ilegal, grandes fazendas de búfalo e, mais recentemente, a mineração

Hoje, a distribuição geográfica das terras Mura em cidades como Autazes e Careiro, onde está concentrada a maior parte da sua população, se dá em ‘ilhas’. Isto significa que cada comunidade é, na prática, uma terra indígena. E o fato de elas não serem contíguas fragiliza ainda mais os Mura frente às ameaças. 

Segundo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Autazes tem 16 terras Mura em diferentes estágios de demarcação. Jauary, que está em processo de delimitação, e Paracuhuba, já regularizada, são duas das aldeias que sofrerão impactos diretos da exploração. Soares, mesmo nome do lago, que não é demarcada, é a mais ameaçada. A planta da reserva de potássio fica dentro desta terra indígena

O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do empreendimento cita a aldeia Soares ao longo de várias páginas, mas ignora a presença indígena e a classifica como uma “vila ribeirinha”

A espera do povo Mura das aldeias Soares e Urucurituba – esta última é onde a Potássio do Brasil planeja construir um porto para escoar o minério – pela demarcação de seus territórios já dura duas décadas. O primeiro pedido foi feito à Funai em 2003 e renovado pelo menos três vezes desde então. Em 2018, eles fizeram uma autodemarcação, delimitando a Terra Indígena Soares/Urucurituba, medida que foi ignorada juridicamente, apesar das duas comunidades existirem há quase 200 anos – Soares, por exemplo, foi fundada no século19, por um indígena Mura que lutou na Guerra da Cabanagem (1835-1840), a maior revolta popular da região Norte.

A esperança pela demarcação veio apenas em 2023, na gestão de Joênia Wapichana à frente da Funai. Em março, uma equipe do órgão indigenista esteve em Soares e em Urucurituba. No início de agosto, a Funai constituiu o Grupo Técnico (GT) para iniciar os estudos de delimitação, o primeiro passo para o reconhecimento do território. Apesar dessa conquista, os Mura vêm sofrendo ameaças de agressão e de morte, além de assédios e constrangimentos de comerciantes, pecuaristas e políticos que são contra a demarcação e atos racistas. 

As autoridades locais são favoráveis, com a intenção de colher lucro, investimentos e supostos royalties. O governo do Amazonas pressiona para que a exploração de potássio seja aprovada. O governador Wilson Lima (União), defensor de garimpo e mineração, considera a atividade uma prioridade de seu segundo mandato, apesar do empreendimento ser privado. Ele também já se manifestou publicamente contra demarcação de terras Mura. Atualmente, o empreendimento está suspenso por determinação judicial, a pedido do Ministério Público Federal. 

Em março de 2022, estive nas aldeias Soares e Urucurituba. Os poços de perfuração, feitos à revelia dos povos, demarcam a área de exploração das jazidas. Placas da empresa  fincadas no chão ostentavam um símbolo de propriedade e poder por parte da Potássio do Brasil que, segundo a Justiça Federal, comprou as terras ilegalmente. Indígenas me relataram pressão para vender seus terrenos

Riscos socioambientais

Demarcar o território indígena também é um reforço importante no enfrentamento à crise climática, já que as terras indígenas são, comprovadamente, uma barreira natural contra o desmatamento. E, no caso de Autazes, o melhor instrumento de proteção às águas subterrâneas e ao modo de vida das populações tradicionais da região

O estudo “Projeto Potássio Amazonas – Autazes e seus Impactos sobre as Terras Habitadas pelo Povo Indígena Mura” alerta para o risco de vazamento de resíduos nos lençóis freáticos no processo de extração do potássio em Autazes. Uma das autoras, a pesquisadora Fernando Bragato, da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), destaca que o maior risco gerado pela mineração de potássio é a possibilidade de a água de fontes subterrâneas inundar a mina. “A área de Autazes é extremamente alagada e o vazamento de sal, com consequente salinização da água, pode ser um fator determinante para inviabilizar a continuidade da vida comunitária daqueles grupos na área”, alerta

Durante o processo de separação do cloreto de potássio e do cloreto de sódio, que compõem as rochas de silvinita, o resíduo gerado forma uma salmoura que, se depositada no solo ou nos rios, compromete a sobrevivência da flora, da fauna e, consequentemente, das populações tradicionais. A empresa, que já fez 33 perfurações para sondagens, com meta de alcançar uma produção anual de 2,16 milhões de toneladas de cloreto de potássio, diz que todo esse resíduo “será injetado em aquíferos profundos”.

A Potássio do Brasil passou a adotar uma tática de ‘greenwashing’, com uma pretensa preocupação ambiental e promessas de melhorias para a sociedade, como forma de melhorar sua imagem. Palavras como “mineração sustentável” e “potássio verde” e até termos como ‘bem viver’, um princípio originário das populações indígenas, foram apropriados pela indústria para ‘vender’ seus projetos altamente impactantes. 

A mineração está entre as atividades mais perigosas do mundo e, por isso, uma exploração no maior afluente do rio Amazonas não pode se limitar ao ponto de vista da geração de lucro. É preciso, mais que cautela, estudos minuciosos também sobre a cadeia de impacto, com estratégia eficaz para impedir que falhas resultem em mais tragédias como as que mineradoras vêm protagonizando Brasil afora

Além dos riscos à biodiversidade, a mineração em Autazes ameaça a subsistência dos povos tradicionais e ainda compromete a história: em Urucurituba, artefatos milenares encontrados na terra indígena, além de comprovarem a ocupação tradicional, indicam o valor arqueológico da região

A amplitude e profundidade desses impactos sequer conseguimos mensurar. O que sabemos é que se trata de uma injustiça socioambiental que precisa ser conhecida e difundida. E o primeiro passo para isso é ouvir o que têm a dizer os povos indígenas. Finalizo com uma declaração do tuxaua Sérgio Nascimento, líder da aldeia Soares, dada exclusivamente para este artigo:

“Quero dizer que nós, indígenas do Lago do Soares, somos originários, que somos cidadãos brasileiros e votamos, pagamos impostos e também produzimos. Temos nossos direitos garantidos na Constituição e queremos que seja cumprido o que está na lei. Nós não somos empecilho do município. Queremos ser respeitados como indígenas. Ninguém pode falar por nós e quem pode dizer que o que nós queremos somos nós. Quero respeito à nossa origem”.

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*Elaíze Farias é jornalista amazonense e referência em reportagens sobre povos originários e povos tradicionais, violações de direitos territoriais, humanos e não humanos. É cofundadora da Amazônia Real, agência de jornalismo independente e investigativo pioneira da região Norte do Brasil. Entre reconhecimentos recebidos está o Prêmio Especial Vladimir Herzog 2022.

Clima de fim de festa

Clima de fim de festa

Um bom termômetro para saber se uma festa está acabando é olhar quanto gelo ainda sobrou no freezer. É hora de acender as luzes e tirar a música no planeta Terra: nada menos que quatro recordes seguidos de temperatura média global foram quebrados na semana passada. O ponto alto aconteceu na última quinta-feira (6/7), com 17,23ºC, o dia mais quente já registrado. Esse calorão vem reduzindo o estoque de gelo do planeta – e, consequentemente, fazendo com que ele esquente mais e mais. Em fevereiro, a Antártida derreteu como nunca; e no mês passado, chegou ao nível mais baixo para um mês de junho, início de inverno. Como se tivessem desligado o congelador no meio da farra.

O Continente Antártico havia perdido quase uma Argentina de gelo – 2,5 milhões km² – no fim do mês passado, em relação à superfície média de 1991 a 2020. Em 16 de fevereiro, a camada de gelo sobre o mar tinha sido reduzida a 2,06 milhões km², a menor área registrada desde o início do monitoramento por satélite, há 45 anos. A recuperação tem sido bem lenta, chegando a 11,5 km², 17% abaixo do normal. O mais preocupante é que, até bem pouco tempo, as mudanças climáticas vinham poupando a Antártida: foram 35 anos de estabilidade e, em setembro de 2014, chegou a atingir a maior extensão coberta desde 1979: 20 milhões de km². A partir de 2015, a queda foi constante e a falta de gelo não só contribui com o aquecimento do planeta, como pode levar espécies à extinção.

Se não faz frio o suficiente no inverno do Hemisfério Sul, o verão no Norte promete ferver. Um estudo publicado na revista científica “Nature Medicine” calcula que até 94 mil pessoas podem morrer por causa do calor na Europa em 2040, caso nenhuma providência seja tomada. O ano de 2022 foi o mais quente registrado no continente e matou 61.672 pessoas. Na Itália, uma forte onda de calor, causada por um anticiclone chamado Cerberus, vai fazer a temperatura passar dos 40ºC na maior parte do país e chegar a até 48ºC na Sicília e na Sardenha. Os italianos enfrentaram inundações e tempestades na primavera, e Alemanha, Espanha, França e Polônia também devem ser bastante castigadas pelo sol nos próximos dias. É o mesmo disco arranhado tocando sem parar desde 2015.

Uma boa nova vem da Amazônia: o desmatamento está em queda constante. No primeiro semestre, diminuiu 34% em relação ao mesmo período do ano passado; em junho, a queda foi de 41%, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Mas ainda não há o que festejar: o El Niño ronda ameaçadoramente a maior floresta tropical do mundo. É um círculo vicioso, a derrubada da mata alimenta o aquecimento global, que põe fogo no verde. Os focos de calor cresceram 10,7% nos primeiros seis meses do ano, chegando a 8.344, e atingem o maior número desde 2019 – quando foram 10.606. E se o desmatamento diminui na Amazônia, ele vem crescendo vertiginosamente no bioma vizinho. O Cerrado já perdeu 4.408 km², 21% a mais que no primeiro semestre de 2022, o que dá quase quatro cidades do Rio de Janeiro.

O clima pode ser de fim de festa, mas não é hora de tocar a marcha fúnebre. Nada de desânimo, todos nós podemos colaborar para mudar esse quadro preocupante. Uma dica: o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima abriu um canal para consulta popular, onde é possível votar nas iniciativas do Programa Plurianual Participativo (PPA) do governo federal, como o projeto de Combate à Emergência Climática, por exemplo. Além disso, também é possível mandar propostas. Mas não dá pra esperar a festa acabar: as votações estão abertas até 14 de julho, é preciso agir logo. Só temos este planeta, brindemos à sua saúde e cuidemos dela!

Saiba mais:

Brasil Participativo Enfrentamento da Emergência Climática

https://brasilparticipativo.presidencia.gov.br/processes/programas/f/1/proposals/50

Camada de gelo no mar da Antártica chega ao nível mais baixo já registrado em um mês de junho

https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/07/10/camada-de-gelo-no-mar-da-antartica-chega-ao-nivel-mais-baixo-ja-registrado-em-um-mes-de-junho.ghtml

Gelo da Antártida enfrenta dificuldade para se recompor após derretimento recorde

https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/07/gelo-da-antartida-enfrenta-dificuldade-para-se-recompor-apos-derretimento-recorde.shtml

Planeta registra o mês de junho mais quente da história, diz observatório europeu

https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2023/07/06/planeta-registra-o-mes-de-junho-mais-quente-da-historia-diz-observatorio-europeu.ghtml

Mais de 61 mil pessoas morreram de calor na Europa no verão de 2022, diz estudo

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/07/10/mais-de-61-000-pessoas-morreram-de-calor-na-europa-no-verao-de-2022.ghtml

Onda de calor na Itália pode gerar temperatura recorde na Europa

https://veja.abril.com.br/mundo/onda-de-calor-na-italia-pode-gerar-temperatura-recorde-na-europa

Entenda os fatores que causam os recordes de temperatura no planeta Terra

https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2023/07/05/entenda-os-fatores-que-causam-os-recordes-de-temperatura-seguidos-no-planeta-terra.ghtml

As medidas para evitar que El Niño provoque ‘hecatombe’ na Amazônia

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx05w4kee92o

Caminhando contra a tempestade

Caminhando contra a tempestade

No Supremo Tribunal Federal, o julgamento do “marco temporal”, tese jurídica que dificulta a demarcação de terras indígenas, aguarda a decisão dos ministros.

Já o Projeto de Lei 490, que foi aprovado na marra pela Câmara, muda as regras para demarcações. Juntos, Congresso e STF podem escancarar a porteira para o agronegócio, a mineração e empreendimentos como a Ferrogrão, que vai devastar 2.000 km² de florestas, atingindo importantes unidades de conservação e territórios de povos originários, que sequer terão direito a consulta.

Por Eliane Xunakalo

Apesar dos bons ventos que sopraram do novo governo, há indícios que tempestades podem surgir no horizonte indígena. No Supremo Tribunal Federal, o julgamento do “marco temporal”, tese jurídica que dificulta a demarcação de nossas terras, aguarda a decisão dos ministros. Mesma situação da Ferrogrão, ferrovia que vai impactar pelo menos 11 terras indígenas, parques e florestas nacionais ao longo de 933 km para ligar o Centro-Oeste aos portos do Arco Norte, paralisada pela Justiça desde 2021.

Em outra esfera, o Projeto de Lei 490, que muda as regras para demarcações e escancara a porteira para o agronegócio, obras e exploração de minérios, petróleo e gás foi aprovado na marra pela Câmara; isso em meio à ameaça do enfraquecimento dos Ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Ferrogrão é o nome popular da estrada de ferro EF-170, mas nós a chamamos de “nova Belo Monte”. Depois do desastre que a usina provocou no Xingu, fazendo sumir os peixes e surgir a fome de quem dependia do rio para viver, a comparação faz todo sentido: mesmo com estudos que alertam para a inviabilidade econômica e os impactos socioambientais da ferrovia, o projeto segue a todo vapor.

Além de reduzir em 8,62 km² o Parque Nacional do Jamanxim, a Ferrogrão ainda afetará outras duas Florestas Nacionais, quatro territórios dos povos Munduruku, Kayapó e Panará no Pará e, pelo menos, sete terras indígenas em Mato Grosso, onde vivem 28 povos. Mais de 2.000 km² de floresta serão devastados.

Nosso motivo para lutarmos contra iniciativas como essa é a garantia de um futuro melhor. A palavra usada para justificar tais violações é “desenvolvimento”. Eu piso no chão das aldeias, mas também no das cidades. E o que eu vejo é desigualdade e precariedade de serviços públicos. Então, eu pergunto: desenvolvimento para quem?

O dossiê “Os invasores”, elaborado pelo De Olho nos Ruralistas, identifica 42 políticos e familiares com fazendas sobrepostas a 960 terras indígenas. A nossa luta coletiva é garantida por marcos legais que datam desde o fim do século 17, quando o Brasil ainda era colônia. A Constituição de 1988 ampliou a proteção a nossos direitos. Mas, passados 35 anos, a demarcação de todos os nossos territórios, que deveria ter sido concluída até 1993, é realidade distante.

Diante de tantos ataques nas mais diversas frentes, não nos resta outra opção que não seja reunir aliados para fortalecer uma estratégia que pomos em prática todos os dias, há 523 anos: resistir. Nós somos a terra e, por isso, quando lutamos por ela, lutamos por nós. A luta pela alma dos rios, pelas raízes das árvores e pela riqueza dos biomas não é só nossa: é de todos os brasileiros; de todos que dependem da água e do oxigênio que a floresta produz. Vamos seguir em frente, mesmo com a ventania contra nós.

*Eliane Xunakalo é indígena do povo Bakairi e presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT).

A grande ficha caiu e foi dentro d’água

A grande ficha caiu e foi dentro d’água

O Mar é o ventre da Terra e se mantém não só gerando vida, mas também sustentando as condições para que continuemos existindo no planeta – desde produzir mais da metade do oxigênio que respiramos até regular o clima. Embora nossos ancestrais, organismos ainda muito primitivos, tenham se instalado em terra firme há bilhões de anos, continuamos umbilicalmente ligados a ele. 

Para franceses e romenos, mar é uma palavra feminina; nada mais adequado para quem, mesmo exausta, ainda é esta mãe para todos. Um deles, o Homem, parece ter esquecido disso há séculos e é o principal responsável por essa fadiga. De tanto a natureza nos alertar nossa responsabilidade, parece que, dessa vez, nós finalmente entendemos o recado: o filho ingrato tomou uma importante decisão para proteger àquela a quem tudo deve.

Com a adesão de mais de uma centena de países, foi assinada, no último dia 4, na sede da ONU, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. É o acordo ambiental mais radical – no bom sentido – que se tem notícia: estabelece o aumento, até 2030, de 1,2% para 30% de áreas de proteção contra a mineração, a pesca industrial e o tráfego de embarcações. Finalmente a ficha caiu e foi dentro d’água.

O primeiro encontro a discutir o assunto aconteceu na Jamaica, em 1982, mas só começou a vigorar a partir de 1994. O alto-mar, área do Oceano que equivale a quase metade da superfície da Terra, é a região que fica a mais de 370 km da costa de cada país; é uma terra (sic) de ninguém, onde quase tudo é permitido – os nordestinos vão lembrar do vazamento de petróleo de um navio grego que contaminou seu litoral em 2019 e 2020.

De acordo com a União Internacional para Conservação da Natureza, 10% das espécies marinhas correm risco de extinção. É preciso proteger essa biodiversidade; por causa disso, uma de suas principais metas é não atrapalhar as migrações anuais de cetáceos, diversas espécies de peixes e tartarugas marinhas. É bom lembrar que baleias são grandes depósitos vivos de carbono.

O Greenpeace arrecadou mais de 5.5 milhões de assinaturas em todo o mundo em apoio ao tratado. “O relógio ainda está correndo para entregarmos a meta 30×30. Nos resta meia década e não podemos ser complacentes”, disse a finlandesa Laura Meller, Conselheira Polar Nórdica da ONG. Do Mar viemos e ao Mar parte do planeta retornará – já que a subida do nível do Oceano já é fato consumado, devido às mudanças climáticas. 

O acordo prevê, ainda, a criação de um novo órgão para administrar a preservação da vida no Oceano e estabelece regras de avaliação do impacto ambiental de atividades comerciais marítimas, como pesca e turismo. Que noruegueses, islandeses e japoneses, povos reconhecidamente disciplinados e avançados em outras áreas, se convençam que caçar baleias e golfinhos é coisa de bárbaro.

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, porém, não contempla um problemão ao qual a gente não vem dando a devida atenção: a poluição por plástico. Na semana passada, a revista de divulgação científica “PLOS ONE” publicou um estudo internacional que calcula que há mais de 170 trilhões de partículas do material flutuando no Mar – o equivalente a 2 milhões de toneladas. 

Em 2021, um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), lançado às vésperas da COP26, já alertava que, caso não sejam tomadas medidas drásticas e urgentes para reduzir a produção de plástico, esse número deve aumentar cerca de 2,6 vezes até 2040. Você pode até impedir a entrada de navios em áreas protegidas do alto-mar, mas não há como barrar a passagem desses fragmentos microscópicos que prejudicam a fauna e a flora marinha, e aumentam a temperatura e a acidez das águas oceânicas. 

Com a disposição demonstrada pelo atual governo em retomar o caminho da preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável – com volta de Marina Silva, nome respeitado no mundo inteiro, ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima – temos uma excelente oportunidade para recuperar o posto de farol ambiental, que suamos tanto para conquistar. Isso em terra firme, pois em se tratando do Oceano, ainda lembramos uma nau sem rumo. 

A vitória da Marinha na batalha naval contra o Ibama, no recente episódio do afundamento do porta-aviões São Paulo, que pode causar sérios danos ao ventre da Terra – incluindo a liberação de mais microplásticos, metais pesados e de poluentes que podem prejudicar a Camada de Ozônio –, foi um mau sinal. Se temos a ambição de ser os timoneiros dessa jornada por um Mar mais limpo e saudável, precisamos fazer uma correção de rota.

Saiba mais:

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Entenda a importância do acordo da ONU para proteger a vida marinha

Tratado histórico para a proteção global dos oceanos é acordado na ONU

Decreto Nº 1.530, de 22 de junho de 1995

Decreto Nº 99.165, de 12 de março DE 1990

Marinha afunda o porta-aviões desativado São Paulo, após meses de impasse

A growing plastic smog, now estimated to be over 170 trillion plastic particles afloat in the world’s oceans—Urgent solutions required

Infestação plástica

From Pollution to Solution: A global assessment of marine litter and plastic pollution

Protagonismo político do movimento indígena

Protagonismo político do movimento indígena

Márcio Santilli, sócio fundador do ISA, presidente da Funai (1995-1996) e deputado federal pelo MDB (1983-1986)

Juliana de Paula Batista, mestre em Direito pela UFSC e advogada do ISA

O 3º mandato do presidente Lula começa com uma grande novidade: o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Sônia Bone Guajajara foi escolhida para comandar a pasta e Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita deputada federal, para assumir a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que estará vinculada ao MPI. Já Weibe Tapeba assumiu a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. Outros indígenas ocuparão mais cargos na administração federal.

Lula governará com 37 ministérios, com espaço para 15 partidos e vários movimentos sociais. As contradições entre esses vários campos vão se expressar dentro do próprio governo. Com a presença de uma ministra indígena, pela primeira vez, os conflitos entre direitos indígenas e interesses contrários serão tratados de forma direta, sem intermediários, embora com a eventual mediação do Presidente e do núcleo do governo.

Mas também haverá fortes embates com as oposições, não apenas no Congresso, mas também com ruralistas extremistas e bolsonaristas, empresários do garimpo, grileiros de terra e outros atores anti-indígenas. Parte deles envolveu-se no movimento antidemocrático e na depredação das sedes dos poderes em Brasília. As ligações entre quem financiou os atos e deles participou não deixam dúvidas. Os mesmos grupos estão em regiões críticas da Amazônia, onde se concentram os crimes socioambientais e proliferam os clubes de tiro, áreas sob o domínio de grupos golpistas e do crime organizado.

Levará tempo para recuperar órgãos, políticas e orçamentos públicos deteriorados relacionados à agenda socioambiental. Mesmo com vontade política, outros fatores serão determinantes para que ocorram avanços nesse tema. Por exemplo, o presidente Lula já definiu que será retomada a demarcação das Terras Indígenas e há uma lista de 14 áreas cuja oficialização poderá ser concluída nos próximos meses por decretos de homologação. Parte das pendências demarcatórias, porém, está sub judice e sujeita ao ritmo lento da Justiça. 

No Legislativo, tramitam projetos que podem trazer retrocessos aos direitos já conquistados, como no caso da demarcação de Terras Indígenas e a possibilidade de abrir essas áreas para grandes empreendimentos. Parlamentares ruralistas, representantes do “ogronegócio”, têm investido pesado em atacar esses direitos, inclusive relacionando-se com pessoas envolvidas em crimes ambientais e invasores de terras indígenas. No momento, são os maiores responsáveis por radicalizações e ataques à segurança jurídica, como no caso da Terra Indígena Apyterewa (PA), já homologada, mas constantemente invadida. 

Longe de voltar seu olhar para os graves problemas do setor, como o combate ao desmatamento, as cadeias produtivas que ainda utilizam trabalho escravo, o incentivo a novas tecnologias para o aumento da produtividade, parte da bancada ruralista ainda investe seus vultosos recursos em atacar indígenas e queimar ainda mais o filme do país no exterior. 

Ninguém quer investir numa Amazônia cheia de ilegalidades e crimes ou ver as Terras Indígenas, as áreas mais ambientalmente conservadas do país, arrasadas pelo garimpo, pela mineração ou convertidas em pasto. Esses territórios não podem ser convertidos em grandes canteiros de obras, sob pena de deixarem de ser o que são. Ainda é cedo para saber se o Legislativo já entendeu o ativo que o país tem na mão. Mas parece que não. 

Em janeiro, a imprensa divulgou as mortes de 570 crianças Yanomami por desnutrição e doenças evitáveis, resultado de uma crise sanitária provocada pela invasão garimpeira e a conivência do antigo governo. Em resposta, Lula foi a Roraima, junto com vários ministros, avaliar a situação e anunciar providências emergenciais para assistir as comunidades afetadas. A questão impactou a opinião pública, dominando o noticiário e as redes sociais. 

No Senado, uma Comissão Externa constituída, em sua maioria, por parlamentares historicamente apoiadores da ilegalidade foi formada com o aval do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ele envia um sinal ruim para a sociedade, que neste momento encontra-se chocada com as barbaridades cometidas contra os Yanomami. Perdeu uma boa oportunidade de mostrar protagonismo na construção de uma agenda que coloque limites à política de terra arrasada e sem lei que o último governo tentou impor à maior floresta tropical do planeta.

O discurso anti-indígena do governo passado deve ter aumentado o preconceito contra os povos originários entre os segmentos mais radicais de direita, além de fortalecer os interessados na apropriação das Terras Indígenas e dos seus recursos naturais. Por outro lado, a rejeição desse processo pela maioria da sociedade ampliou a adesão à defesa dos direitos dessas populações. A fidelização desse engajamento e a ampliação de novos apoios dependerão do desempenho dos que estão no governo e dos movimentos sociais como um todo, e será essencial para garantir a sustentabilidade futura dessas políticas.

Uma coisa é certa: a defesa dos direitos indígenas e das florestas não interessa apenas aos próprios indígenas e setores envolvidos com a defesa do meio ambiente. A expressiva votação da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL), em Minas Gerais, mais votada que políticos tradicionais como Aécio Neves (PSDB), e de Sônia Guajajara (PSOL), em São Paulo, mostram que a sociedade está mobilizada e seguirá atenta.

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