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A fome é um projeto

A fome é um projeto

por Eduardo Souza Lima

Não adianta culpar a guerra na Ucrânia ou o coronavírus: não há justificativa que explique o aumento da fome no Brasil. A hipótese mais provável é que se trate de um projeto, não mera consequência de medidas desastradas. De que outra forma é possível explicar que ao mesmo tempo em que as exportações do agronegócio renderam, em março, a soma recorde de R$ 14,5 bilhões, hoje 33,1 milhões de brasileiros não tenham o que comer, contra 19 milhões em 2020? “Quem recebe R$ 400 por mês de Auxílio Brasil, pode ter dificuldade, mas fome não passa”, minimizou a tragédia o senador Flávio Bolsonaro.

Quando fala em “dificuldade”, o filho do presidente deve estar se referindo aos 60% da população que sofre algum tipo de insegurança alimentar – como ter que escolher entre jantar ou almoçar. Os dados são do mesmo levantamento do instituto Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) que apontou o espantoso aumento de famintos no país em dois anos. Já de acordo com a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), a cesta básica está custando no país, em média, R$ 758,72. O presidente prometeu que faria o Brasil voltar a ser o que era há 40, 50 anos; neste quesito em particular, já são quase 30, pois regredimos ao patamar de 1993.

O salário-mínimo, renda máxima de 38% dos trabalhadores do país, está em R$ 1.212; cerca de 18,1 milhões de pessoas receberam em maio a merreca de 400 pratas do Auxílio Brasil, segundo o Ministério da Cidadania. Para estes, sobraram R$ 853,28 para “ter dificuldade”; pros outros 18,3 milhões de cidadãos não contemplados, nem isso. A inflação corroeu rapidamente a moeda de troca eleitoral de Bolsonaro; os R$ 400 reais já valem bem menos do que quando o programa do governo foi inventado. Daí ele não estar extraindo os dividendos em forma de voto que esperava.

O presidente colhe o que plantou. Já em 2019, começando seu mandato, ele mandou fechar 27 armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Cabe ao órgão, vinculado ao Ministério da Agricultura, cuidar do chamado estoque regulador do governo. Este serve não só para controlar os preços em período de entressafra e combater a especulação – tem agricultor que joga comida fora para o preço subir, como estamos carecas de saber – mas também ajudar no combate à fome, na proteção a pequenos agricultores, e em garantir alimento a vítimas de desastres ambientais.

Para se ter uma ideia de como essa importante política vem sendo desmantelada, em 2013, havia 944 toneladas de arroz estocados em armazéns do governo; em 2015, mais de 1 milhão de toneladas. Em 2020, eram só 22 toneladas, que não dava nem para matar a fome da população em uma semana. Hoje, nem isso. Os mais pobres que esperem chover maná, como na passagem da Bíblia. Com a alta do dólar, os chefões do agronegócio preferem exportar sua produção, ajudando a desabastecer o mercado nacional e provocando a alta dos preços. É uma lógica cruel, a ponto de o maior produtor e exportador de soja do mundo ser obrigado a importar óleo da vizinha Argentina.

“Há pouco tempo, o Brasil era referência mundial de políticas públicas para reduzir a miséria e a fome. Essas políticas ao longo dos últimos anos foram totalmente negligenciadas, ou reduzidas, ou extintas. O primeiro ato do governo atual foi extinguir o Conselho de Segurança Alimentar. A fome tem uma causa e uma vontade política”, afirma Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania contra a Fome, ONG criada por Herbert de Souza, o Betinho, em 1993. Enquanto isso, na lista de bilionários brasileiros da revista “Forbes”, 19 empresários do ramo dividem US$ 78,7 bilhões. As fortunas pessoais – ou familiares – desses felizardos variam de US$ 15,4 bilhões a US$ 1,3 bilhão. Na lista estão o homem e a mulher mais ricos do país, Jorge Paulo Lemann e Lucia Maggi – mãe de Blairo, conhecido desmatador que foi ministro da Agricultura de Michel Temer.

A citação do parentesco não foi gratuita. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), mais conhecida como bancada ruralista, ocupa 241 cadeiras das 513 do Câmara Federal e 39 das 81 do Senado. São números absurdamente desproporcionais, já que 84% da população brasileira vive em áreas urbanas e apenas 15,6% em zonas rurais – e mais ainda, se levarmos em conta que esses congressistas representam apenas os interesses de algumas dezenas de felizardos. Por outro lado, só quatro em dez famílias brasileiras têm acesso pleno à alimentação. Nunca tantos passaram necessidade por tão poucos.

O agro não planta para encher nossas barrigas, mas seus bolsos. E é quem passa necessidade que paga por isso. O lobby é o principal fertilizante do agronegócio, assim como a soja, seu principal combustível. E, para se ter uma ideia, o Brasil colheu a maior safra de todos os tempos, com aproximadamente 139 milhões de toneladas do grão e exportou 86 milhões desse total. “Nosso foco de apoio tinha que ser na produção de alimentos que nós consumimos. Por que a gente precisa subsidiar tanto um mercado que exporta todo o alimento e não põe comida na nossa mesa?”, questiona Kiko Afonso.

Os agrados do governo molham mãos e irrigam a atividade. Não à toa, o agro segue fechado com Bolsonaro. O Ministério da Agricultura quer aprovar até o fim do mês o Plano Safra 2022/23, no valor de R$ 330 bilhões – o do período anterior foi de R$ 251 bilhões. “O agro nunca teve tanto dinheiro”, confessa o deputado Sérgio Souza (MDB-PR), presidente da FPA. O pequeno e o médio produtor rural dão emprego para 10 milhões de trabalhadores contra 1,4 milhão dos grandes latifundiários, e são eles que produzem a comida que chega no nosso prato. Mas a verba reservada para a agricultura familiar vem murchando: em 2012, por exemplo, era de R$ 512 milhões; em 2019, foi 93% menor, R$ 41 milhões. Hoje está em magérrimos R$ 89 mil.

Existe o crime organizado e o crime legalizado – como pretende o PL da Grilagem, que premia invasores de terras indígenas e unidades de conservação, que são bens da União. Só nas primeiras, foram reconhecidos pelo governo Bolsonaro 2,5 mil km² de fazendas, desde abril de 2020. É um patrimônio de todos nós passando para as mãos de particulares. Os danos causados pelo agronegócio ao Cerrado e à Amazônia e, por consequência, às nossas reservas de água e ao clima do planeta, são amplamente conhecidos – e até a conta de termelétricas usadas na irrigação de lavouras de soja nós estamos pagando, contribuindo involuntariamente com esses problemas.

Ambientalismo sem justiça social é jardinagem – daí hoje a palavra socioambiental ter sido adotada. O fator humano não pode ser excluído da equação que envolve a natureza e a produção de alimentos. A solução para ela se chama desenvolvimento sustentável. O Brasil saiu do mapa da fome em 2013 e voltou em 2018. Ao mesmo tempo em que roncam os nossos estômagos, o país contribui para que o futuro do mundo seja mais sombrio. A ganância e a perversidade de uns poucos têm feito com que a gente perca muito sem ganhar nada em troca. Nossas escolhas definem o nosso futuro. As eleições estão chegando: plante nas urnas um mundo melhor.

 

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“É uma região inóspita, afastada de tudo”, declarou o vice-presidente Hamilton Mourão, nove dias depois do desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, na Terra Indígena Vale do Javari. Mourão já se disse descendente de indígenas; ele é gaúcho de Porto Alegre, mas seu pai é amazonense. Hoje general da reserva, foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva em São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), de 2005 a 2008, e preside há dois anos o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL). Deveria saber que na região onde a dupla sumiu vivem mais de 190 mil pessoas. Como assim “inóspita”?

“Num local onde o povo indígena consegue achar até um miquinho ou uma arara-canindé, o Brasil não sabe encontrar dois homens adultos que foram desaparecidos num trecho de floresta que é tão conhecido e em que pescadores e todo mundo andam por lá, e que agora está sendo controlado por traficantes”, desabafou o escritor e liderança Ailton Krenak. A alegada ascendência de Mourão e sua experiência de comandante na Amazônia e no atual cargo que ocupa não o têm ajudado nas buscas por Bruno e Dom. Aliás, o presidente da CNAL age como se não tivesse nada a ver com o caso. Na verdade, talvez seja melhor ele se manter afastado, mesmo.

O Conselho Nacional da Amazônia Legal foi reativado em fevereiro de 2020, vinculado à vice-Presidência da República. Originalmente, o órgão foi criado em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, subordinado ao Ministério do Meio Ambiente, embora nunca tivesse mostrado ao que veio. Tudo leva a crer que devia ter continuado assim: as três missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) promovidas pelas Forças Armadas no combate a crimes ambientais na Amazônia consumiram R$ 550 milhões e não reduziram o desmatamento na maior floresta tropical do mundo. Muito ao contrário, só em maio último, foram abaixo 1.180km² de verde, a maior destruição para este mês desde 2016. Essa dinheirama equivale a quase seis vezes o orçamento do Ibama em 2020 para fiscalização e licenciamento ambientais, e gestão da biodiversidade.

Os militares também se aboletaram na Funai: eles ocupam as chefias de 19 das 39 coordenações regionais da fundação, contra duas de servidores públicos, como o Bruno Pereira – as demais foram tomadas por policiais militares e federais, ou por funcionários de cargos comissionados. Desde 2017 já se sabia que o crime organizado estava tomando conta da região onde o jornalista e o indigenista desapareceram; mas de lá para cá, a situação só piorou. Entre 2018 e 2019, a Base de Proteção Ituí-Itacoaí foi atacada a tiros oitos vezes; em setembro de 2019, assassinaram o funcionário da Funai Maxciel Pereira dos Santos, que denunciava e combatia invasões naquela área. O crime permanece impune. Três meses depois, a Justiça condenou o governo federal por omissão e determinou que as bases locais fossem reforçadas; a ordem, porém, foi ignorada.

Há seis meses, do outro lado da fronteira, um posto da polícia peruana de Puerto Amelia foi atacado por 20 criminosos que roubaram oito fuzis, uma metralhadora e três mil cartuchos de bala. Os tiros foram ouvidos em Atalaia do Norte, cidade de 20.868 habitantes, que fica na região onde Bruno e Dom desapareceram. “As duas pessoas entram numa área que é perigosa sem pedir uma escolta, sem avisar efetivamente as autoridades competentes e passam a correr risco, né?”, também disse Mourão sobre o episódio. “Se o lugar onde a gente trabalha é perigoso e precisa de escolta armada, tem uma coisa muito errada aí. E a culpa não é nossa”, rebateu a antropóloga Beatriz Matos, mulher de Bruno. O general da reserva procurou uma justificativa e achou um veredicto: culpado.

A autoproclamada eficiência militar virou lenda do boitatá? Como esquecer a desastrosa passagem de outro general, Eduardo Pazuello, pelo Ministério da Saúde, no auge da pandemia de Covid-19? Os amazonenses, em especial, talvez jamais se curem desse trauma. Antes de assumir a pasta, em 2020, ele foi comandante da 12ª Região Militar, em Manaus. Considerado especialista em logística, esqueceu-se de abastecer os hospitais da capital amazonense com cilindros de oxigênio. Seu, digamos, descuido levou os hospitais da cidade a entraram em colapso e pelo menos 31 pessoas à morte, em dois dias. Quando foi efetivado ministro da Saúde, em 16 de maio de 2020, o Brasil contabilizava 233 mil casos e 15.633 mortes por Covid-19; ele deixou o cargo em 15 de março do ano seguinte com mais de 11,5 milhões de infectados, e cerca de 280 mil mortos.

Depois de sair do Ministério da Saúde, Pazuello foi designado para chefiar a Secretaria de Assuntos Estratégicos do Executivo. O que nos leva a pensar: será que não é incompetência, mas estratégia? Para Ailton Krenak, não há dúvida: “A Amazônia está sendo devorada, e o Brasil entrou no rodo com uma disposição voluntária de ser usado e abusado. Quando os sujeitos do governo falam em preocupação acerca da soberania, eles ocultam a má intenção de entregar todo esse território e virar as costas para a morte de Yanomami, a violência contra o corpo de crianças indígenas, o ataque contra lideranças e defensores dos que estão sendo assassinados semanalmente”.

Não é a natureza hostil que oferece perigo no Vale do Javari, mas os invasores e sua ganância, que se espalham como ervas daninhas – com a indisfarçável negligência ou até cumplicidade do poder público. “Vemos agora o último assalto a uma região do mundo com muita riqueza. É como se estivessem descobrindo de novo a América”, reflete Krenak. O que fazer? O autor do best-seller “Ideias para adiar o fim do mundo” aconselha: “A coisa está virulenta. Não se sabe mais de onde pode sair um ataque. Mas a gente vai superar esse momento. Não dá para nos desencorajarmos. Precisamos não cultivar a mentira e não nos associarmos a versões fajutas da realidade”. Que a verdade seja a nossa arma.

 

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Jogando contra

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A expressão “desvio de finalidade” está na moda, mas não explica adequadamente como vêm agindo algumas instituições no atual governo. O caso do Ministério do Meio Ambiente, então, é muito instrutivo. O último lance infeliz da pasta foi bater mais um recorde de desmatamento. Imagine que o zagueiro de seu time seja torcedor fanático do adversário e marque, de propósito, um gol contra na final?

O Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou na última sexta-feira que foram abaixo 1.012 km² de floresta em abril – 75% a mais que no mesmo período em 2021. O número é particularmente impressionante porque chove muito nessa época na Amazônia, o que costuma dar um tempo na devastação. É a primeira vez na história que a área desmatada ultrapassa os 1.000 km² num mês de abril.

De acordo com um levantamento feito pelo MapBiomas, 97% dos alertas de desmatamento emitidos desde 2019 foram ignorados pelos órgãos de fiscalização ligados à pasta. Não foi por falta de disposição dos aguerridos jogadores do Ibama que, não custa lembrar, tem entrado em campo desfalcado; o seu técnico é que gosta de jogar recuado. E quem achar ruim vai pro banco de reservas.

Na última segunda-feira, a Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), que reúne funcionários do instituto, do ICMBio e do Serviço Florestal Brasileiro, divulgou uma nota na qual acusa o governo de dificultar suas ações: “Sem fiscalização, as atividades criminosas ganharam espaço para se desenvolver livremente, colocando sob risco não apenas os povos originários do Brasil, mas também toda a população, as futuras gerações, bem como a nossa megabiodiversidade”. O texto também diz que “há ainda dezenas de casos de perseguições e assédio aos servidores do Ibama e ICMBio, especialmente àqueles que atuam na fiscalização ambiental. Por fim, mas não menos importante, temos queda drástica de servidores nas diversas autarquias ambientais”.

Quem quer jogar pra frente é tratado como pereba ou desequilibrado: “Muita gente louca e os loucos gostam de direito ambiental porque eles se sentem confortáveis na área, inventando coisas”, respondeu Eduardo Bim, presidente do Ibama. Não contente, ele emendou: “Tem gestor que se sente constrangido por reportagem de jornal. Eu não. Eu sou um psicopata”. No ano passado, Bim foi afastado do cargo por três meses pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando a Polícia Federal o investigava por suspeita de favorecimento a madeireiras ilegais. Coisa de perna de pau.

O Ministério do Meio Ambiente tem a missão de “formular e implementar políticas públicas ambientais nacionais de forma articulada e pactuada com os atores públicos e a sociedade para o desenvolvimento sustentável”. Para quem não se lembra, uma das primeiras jogadas do atual governo foi entrar de carrinho na participação da sociedade civil nas comissões da pasta; mas no último dia 28, o STF lhe deu cartão vermelho. Na primeira votação do chamado “Pacote Verde”, o Supremo restituiu sua representação no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA).

No mesmo dia, o tribunal também declarou ilegal o decreto que que afastou governadores de estados da Amazônia legal do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) e o que extinguiu o Comitê Organizador do Fundo Amazônia (Cofa). Isso obrigou o governo a mudar sua tática: no dia 30 de abril, aumentou, voluntariamente, o número de representantes do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 23 para 36. Ainda faltam 60 para os 96 originais, mas o recuo mostra que o jogo ainda está longe de acabar.

A pasta do Meio Ambiente não é o único a jogar contra. O escrete da Funai, vinculado ao Ministério da Justiça, hoje é comandado por ruralistas. Sua missão institucional é “proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil”. Essa regra é desrespeitada diariamente; mas em março a Polícia Federal interrompeu uma jogada especialmente desleal: desbaratou uma quadrilha chefiada pelo coordenador-geral do órgão em Ribeirão Cascalheira (MT), onde fica a Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante.

Militar inativo da Marinha, Jussielson Gonçalves Silva é acusado, junto com três PMs, de arrendar áreas protegidas para criadores de gado. Antes de ser pego no antidoping, chegou a ser elogiado por Marcelo Xavier, presidente da Funai: “Esse é o caminho. O coordenador regional Jussielson Gonçalves e a prefeitura de Canarana estão de parabéns. Isso pode ser reproduzido em outras aldeias. Pode servir de modelo”.

O jogo só termina quando o juiz apita; então, ainda dá para virar. Mas é preciso reforçar o time do meio ambiente, e as eleições de outubro são a nossa oportunidade de levar para Brasília gente que honre a camisa.

 

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Infestação plástica

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Agora o diagnóstico é oficial: você não só pode ter micropartículas plásticas correndo nas veias como, muito provavelmente, as carrega nos pulmões. É para tapar o nariz, não? De solução prática para substituir papel, metal, vidro e outras matérias-primas, o plástico vem se tornado uma infestação que está se espalhando implacavelmente por nossos corpos e pelo planeta. Segundo o estudo “A ameaça global da poluição plástica”, assinado por cientistas alemães, suecos e noruegueses, publicado em julho passado na revista “Science”, estamos chegando ao ponto de não retorno – quando os danos ao meio ambiente serão irreversíveis. Em outubro, foi anunciado na Plastic Health Summit, conferência realizada em Amsterdã, na Holanda, que temos apenas nove anos para reverter este quadro.

Esta contagem regressiva vem se acelerando. Desde 2019 sabemos que há microplástico na água que bebemos e em nossa comida; em agosto de 2020, pesquisadores da Universidade do Arizona encontraram vestígios do material em todas as 47 autópsias realizadas em amostras de pulmão, fígado, baço e rins humanos examinadas. Em março deste ano, cientistas da Universidade Livre de Amsterdã, detectaram fragmentos no sangue de 17 dos 22 doadores anônimos testados. “A grande questão é: o que está acontecendo em nosso corpo? As partículas ficam retidas no corpo? E esses níveis são suficientemente altos para desencadear doenças?”, alertou o professor Dick Vethaak.

Ainda é cedo para dimensionar os danos que beber, comer e respirar plástico podem causar diretamente à nossa saúde; mas os estragos que o material vem causando à Terra, o grande organismo onde vivemos, são conhecidos e bem visíveis. Micropartículas plásticas estão por todos os lados, da Fossa das Marianas ao Monte Everest, e chegam até mesmo à atmosfera. No mês passado, descobriu-se que estamos aspirando plástico: um estudo da Hull York Medical School, na Inglaterra, publicado na revista “Science of the Total Environment” descobriu, pela primeira vez, partículas plásticas em pulmões de pessoas vivas. O resultado espantou até a professora Laura Sadofsky, sua principal autora. “Não esperávamos encontrar o maior número de partículas nas regiões inferiores dos pulmões, ou partículas dos tamanhos que encontramos. É surpreendente, pois as vias aéreas são menores nas partes inferiores dos pulmões e esperávamos que partículas desses tamanhos fossem filtradas ou presas antes de chegar tão fundo”.

Lançado a dez dias do início da COP26, que foi realizada no início de novembro passado na Escócia, o relatório “Da Poluição à Solução: Uma Análise Global sobre Lixo Marinho e Poluição Plástica”, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), deu uma ideia do tamanho da encrenca. De acordo com ele, o material responde por 85% dos resíduos que chegam ao mar e que até 2040 a quantidade deve triplicar, caso nada seja feito, podendo chegar a 37 milhões de toneladas por ano. “Esta pesquisa fornece o argumento científico mais forte até hoje para responder à urgência, agir coletivamente e proteger e restaurar nossos oceanos e todos os ecossistemas afetados pela poluição em seu curso”, disse a diretora executiva do Pnuma, Inger Andersen.

A ambientalista dinamarquesa ressalta que o plástico também tem forte ligação com as mudanças climáticas. Calcula-se que em 2015 ele era responsável pela geração de 1,7 gigatoneladas de CO₂ equivalente (GtCO2e), e em 2050 este número deverá chegar a 6,5 GtCO2e, ou 15% do total global. E os resíduos que chegam ao mar também ajudam a temperatura do planeta a subir. As micropartículas se unem à flora marinha – microalgas, bactérias e fitoplânctons –, e prejudicam sua capacidade de fazer fotossíntese: “Se você para de consumir gás carbônico, o oceano acaba perdendo um pouco do seu papel em controlar o efeito estufa”, explicou Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da USP e coordenador da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano.

No dia 2 de março, a ONU deu o pontapé inicial para a criação do primeiro tratado global contra a poluição por plástico, durante a Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Anue), que se realizou em Nairóbi, no Quênia. A resolução recebeu o aval de nada menos que 175 países e, por isso, foi comparada ao Acordo de Paris. Mas, assim como o pacto firmado em 2015, na França, ele só vai sair do papel se houver pressão popular – e tudo indica que haverá. Sob encomenda das ONGs Plastic Free Foundation e WWF, o Instituto Ipsos fez uma pesquisa no fim do ano passado, com mais de 20 mil pessoas de 28 países, incluindo o Brasil. O resultado foi uma goleada: cerca de 90% dos entrevistados se disseram favoráveis a uma coalizão global para buscar soluções. A maioria já entendeu que deter essa infestação depende de todos nós; falta convencer os desentendidos.

 

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Esperança na Avenida

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O novo coronavírus entrou em nossas vidas trazendo dor e uma pergunta, que até agora não se calou: sairíamos melhores ou piores dessa provação? Ainda que seja cedo para conhecermos a resposta, os primeiros desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo da era Covid-19 foram um sopro de esperança. “Nasce com a pandemia a necessidade de analisar e repensar a vida”, sugeriu a paulistana Unidos de Vila Maria. E o seu enredo, “O Mundo Precisa de Cada Um de Nós”, prescreveu como solução que “a nossa união, o dom de partilhar, revelam na cadência que a cura pra dor é o amor”. Exu, mensageiro dos orixás, que tem o dom da transformação, foi o grande destaque. Que ele abra os caminhos para nossa renovação, que passa por louvar nossa diversidade.

O Brasil que todos amam, multicultural, inclusivo, afetuoso, fraterno, alegre, gentil, pacífico e com uma consciência ambiental herdada de nossos ancestrais não só foi celebrado no Sambódromo do Anhembi e na Marquês de Sapucaí, como saiu vencedor. Nossa herança africana – que, afinal, nos legou o samba e vem sendo vergonhosamente escanteada – foi exaltada com toda pompa e circunstância que merece. Tema de enredo de boa parte das agremiações, ela deu à Grande Rio o seu primeiro título.

Com “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu”, a escola de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, entrou na luta contra a intolerância religiosa e o racismo. A ideia foi desmistificar a divindade, equivocadamente associada à figura do diabo pela cultura ocidental. Logo ele que, segundo o zelador espiritual Danilo de Oxóssi, é “quem abre os caminhos da gente, é quem traz a prosperidade, quem traz a fartura para a sua casa”.

Mas não só: como Exu é o orixá que rege o lixo, a transformação e, portanto, a reciclagem, os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora levaram essa ideia à Avenida, reaproveitando material de outros carnavais. A Grande Rio também levou o Estandarte de Ouro do “Globo”, além do prêmio Fernando Pamplona, primeiro carnavalesco a usar matéria-prima barata nos desfiles, criando luxo a partir do lixo. Seu objetivo, de acordo com o jornalista Marcelo Mello, um dos jurados, é exaltar a sustentabilidade: “É agregar material reaproveitável. Reciclar. Pensar em sustentabilidade, ajudar o planeta”.

A alegoria que mereceu o troféu foi o carro “Fala, Majeté”. Ele foi construído com sobras de adereços antigos e material recolhido pela Associação de Catadores do Jardim Gramacho. A escola também homenageou personalidades como o artista plástico Arthur Bispo do Rosário, a poeta Stella do Patrocínio e a catadora e profeta Estamira, personagem-título de um multipremiado documentário, que fizeram do lixo arte e ganha-pão.

Aldeando todos os espaços, os povos originários também estão fazendo da passarela seu território. A Unidos da Tijuca deu o seu recado logo em sua comissão de frente: “Brasil, Terra Indígena”. A escola carioca contou em seu enredo, “Waranã – A reexistência vermelha”, a lenda da origem do guaraná. A intenção foi reafirmar que os povos da floresta são seus verdadeiros donos e guardiões.

O mesmo objetivo teve a X-9 Paulistana, que condenou a destruição das florestas, o genocídio e a expulsão dos indígenas de seus territórios desde a chegada do invasor europeu em “Arapuca Tupi – A reconquista de uma terra sem dono”. O desfile, pelo Grupo de Acesso 1 do Sambódromo do Anhembi, contou com presenças ilustres como Sonia Guajajara, Celia Xakriabá, Ingrid Sateré-Mawé, Kleber Karipuna, Sonia Ara Mirim e o cacique kaiapó Megaron Txucarramãe, que cantaram que “renasce a esperança, fartura que faz e alimenta o sonho Tupi, mudam sentimentos na sociedade, novo pensamento, irmanar e sentir, o despertar da Humanidade”.

Já a Acadêmicos do Sossego, escola de Niterói que desfilou “Visões xamânicas” pela Série Ouro, na Marquês de Sapucaí, se inspirou no livro “A queda do céu”, do xamã Yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert. O enredo fala do colapso ambiental e climático que enfrentamos, causados pela cobiça do homem branco. “A partir da história que Davi conta nesse livro, a gente criou esse líder espiritual do nosso enredo, que é esse herói, que vai fazer uma saga através do mundo dos sonhos. Através do encontro com seres espirituais, vai encontrar outros líderes de nações indígenas do mundo inteiro para encontrar a solução para esse mundo que está acabando”, explicou o carnavalesco André Rodrigues.

Estamos na Década do Oceano e a paulistana Mancha Verde, antenada, ganhou seu segundo título no Anhembi cantando nosso bem mais precioso, a água: “O enredo tem duas grandes vertentes, uma delas é a religiosa, como a água se introduz em várias religiões e, também, por outro lado, um tema atual, que é a escassez, mostrar como o homem maltrata a água”, contou o diretor de carnaval da escola, Paolo Ricardo de Moraes Bianchi. Para os povos tradicionais, a água é sagrada; deveria ser para todo mundo.

Que encantados, orixás, santos, Javé, Alá, o Cristo amoroso dos Evangelhos e os homens sem fé de boa vontade nos guiem para um pós-pandemia mais fraterno e sustentável. Escola de samba não ensina só o batuque e poesia. Quem perdeu essas lições ou quer revê-las, sexta-feira (em São Paulo) e sábado (no Rio) tem o Desfile das Campeãs. Vamos aquecer tamborins e corações, e revigorar nossa esperança de que a Humanidade mude para melhor depois de o novo coronavírus passar não seja apenas uma fantasia? Afinal, o mundo precisa de cada um de nós, gotas no oceano.

 

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