Me chame pelo meu nome: a falácia dos “minerais estratégicos”

Me chame pelo meu nome: a falácia dos “minerais estratégicos”

O artigo abaixo convida a refletir sobre os termos cada vez mais usados em discursos político-econômicos: “minerais críticos” e “minerais estratégicos”. Mais do que simples classificações técnicas, essas expressões escondem ambiguidades que revelam disputas de interesse — seja na economia, na geopolítica ou na indústria. No Brasil, essa narrativa tem sido utilizada para flexibilizar licenciamentos ambientais, conceder benefícios fiscais e justificar a priorização do setor mineral sob o argumento da transição energética e da soberania nacional. O texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil, em 16 de setembro de 2025, amplia o debate sobre os impactos sociais e ambientais dessa retórica e seus riscos para o futuro.

 

Me chame pelo meu nome: a falácia dos “minerais estratégicos”

Os termos “minerais críticos” ou “minerais estratégicos” são, na verdade, vazios de significado, uma vez que não dizem qual seria a estratégia ou o motivo da criticidade. Agora, sob uma nova roupagem de combate às mudanças climáticas, que oculta outros usos menos defensáveis, o setor mineral vem conseguindo que diferentes instituições concedam mais do que ele sempre teve: facilidades para o licenciamento ambiental e favorecimentos tributários

Por Bruno Milanez*

Desde o início do governo Lula, tem crescido a narrativa da “quase necessidade” de o Brasil ampliar a extração dos chamados minerais “críticos” ou “estratégicos”, como se disso dependesse a solução da crise climática. Em um país que nos últimos dez anos enfrentou três dos piores desastres envolvendo a mineração (Samarco no Rio Doce em 2015, Braskem em Maceió em 2018 e Vale no Rio Paraopeba em 2019), ver o setor ser promovido de pária a campeão nacional nesse intervalo consiste em um dos maiores casos de sucesso de rebranding do mundo corporativo. Algo digno de deixar o agro verde de inveja.

Antes de analisar o contexto nacional, é importante entender alguns pontos sobre o conceito de minerais “críticos” ou “estratégicos”. Esses termos não são novos; eles foram, inicialmente, usados na década de 1930 pelos Estados Unidos, quando foi criada a Lei de Estoque de Materiais Críticos e Estratégicos, definindo os materiais necessários para, entre outras coisas, garantir seu abastecimento militar. A própria Otan possui uma lista de “materiais críticos para defesa”. O uso dessas expressões no contexto climático é mais recente: pelos Estados Unidos em 2010, pela União Europeia em 2011, pelo Brasil em 2014.

A classificação de “crítico” ou “estratégico”, porém, não é baseada em critérios técnicos e objetivos, e as diferentes listas existentes variam dependendo do contexto. Como discutido por Erika Machacek, pesquisadora na Universidade de Viena, a definição sobre a criticidade de um mineral é uma ferramenta de operacionalização política, com efeitos distributivos. Ela é política porque, na perspectiva dos países consumidores, depende (1) da importância dos minerais para equipamentos de guerra e para a economia; e (2) da dificuldade de acesso. O acesso, por sua vez, está ligado à disponibilidade no subsolo do país em questão ou de seus aliados.

Por outro lado, ela é distributiva, porque tem a capacidade de beneficiar grupos específicos, enquanto prejudica outros. Materiais, atividades ou projetos definidos como “críticos” ou “estratégicos” tendem a ganhar prioridade sobre aqueles que não são classificados como tal.

Um segundo aspecto que deve ser questionado é a associação direta entre minerais “críticos” ou “estratégicos” e o combate às mudanças climáticas. A mineração se enquadra no que o antropólogo Stuart Kirsch chama de “indústria do dano”, que caracteriza setores econômicos cuja atuação necessariamente gera impactos negativos ao ambiente ou à saúde das pessoas. Por causa dessa característica, as mineradoras precisam criar narrativas de legitimação.

Assim, a construção da conexão entre mineração e redução do uso de combustíveis fósseis acaba sendo um caso típico de “maquiagem climática”. Essa é uma prática pela qual empresas exageram ou deturpam seu papel ou desempenho na questão climática. Afinal, afirmar que a extração de um mineral servirá para evitar a destruição do mundo gera uma imagem mais positiva do que reconhecer que ele será usado na fabricação de mísseis e aviões de guerra.

Na verdade, o uso bélico dos chamados minerais “estratégicos” vem ganhando cada vez mais destaque, dada a nova corrida armamentista, intensiva em equipamentos de alta tecnologia. Por exemplo, o lítio é usado nas baterias de munições autoguiadas, ligas de nióbio são necessárias para a produção de mísseis hipersônicos e terras raras entram na fabricação de drones militares e sistemas de radar. Como comentou a jornalista Cat Rainsford, embora o uso bélico não seja o maior demandante de minerais “críticos” dos Estados Unidos, sob o governo Trump, ele seria o argumento-chave para definir criticidade. Afinal, não se pode imaginar que o seu interesse nos minerais da Groenlândia, da Ucrânia ou, eventualmente, do Brasil, seja para produzir aerogeradores ou carros elétricos.

Trazendo a discussão para a realidade brasileira, o que vemos é que o principal efeito da narrativa dos minerais “estratégicos”, tem sido a construção de um discurso de excepcionalidade da extração mineral. Para construir essa narrativa, o setor construiu, inclusive, a categoria “Minerais Críticos e Estratégicos (MCE)”. Por meio dessa redundância, ele tenta enfatizar a alegada relevância da extração mineral. Tal nomenclatura se mostra crucial, especialmente quando as empresas procuram tomar territórios onde ocorrem usos de interesse social ou utilidade pública, como terras indígenas, territórios quilombolas, unidades de conservação e assentamentos rurais. Por mais que esses usos sejam, de fato, estratégicos para qualquer projeto de desenvolvimento de nação, raramente são denominados assim.

Por esse motivo, existe um risco em se naturalizar termos como “minerais críticos” ou “minerais estratégicos”, pois eles reforçam a narrativa de uma suposta prioridade do setor. Esses termos são, na verdade, vazios de significado, uma vez que não dizem qual seria a estratégia ou o motivo da criticidade. Assim, um nome mais adequado e didático seria Minerais para Armamentos, Tecnologias e Expansão Energética (MATEEs).

Do ponto de vista normativo, essa excepcionalidade foi iniciada por meio da “Política de Apoio ao Licenciamento Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos” (Pró-Minerais Estratégicos), criada por um decreto de Jair Bolsonaro. Essa política usa critérios vagos para definir o que seriam minerais “estratégicos”, tais como “necessários para setores vitais da economia”, “relevantes para produtos e processos de alta tecnologia”, ou ainda, “essenciais pela geração de superávit comercial”. Esse último, por sinal, permitiu a inclusão de minerais que pouco se relacionam com combate às mudanças climáticas, como minério de ferro e ouro.

Na verdade, o modelo mineral brasileiro, historicamente baseado na extração para a exportação, sugere que essa política reforça o processo de “neocommoditização” da economia nacional. Esses minerais, assim como o “hidrogênio verde”, o combustível “sustentável” de aviação e os dados a serem processados pelos data centers, fazem parte de uma nova plataforma de exportação de produtos e serviços intensivos em recursos naturais e energia, que servirá a setores de tecnologia em outros países.

Desde a experiência do Projeto Grande Carajás, nos anos 1980, passando pelo super ciclo das commodities nos anos 2000, até hoje, todas as manifestações associadas à mineração têm sido apresentadas junto a promessas de industrialização e “redenção” do Brasil de seu papel de exportador de matéria prima. Todavia, as evidências mostram que elas, na verdade, não passam de discurso. Para citar alguns exemplos.

● Apesar de cerca de 50% do cobre extraído no Brasil vir do projeto Salobo da Vale, em operação desde 2012 no Pará, o país ainda não possui tecnologia para refiná-lo. Como consequência, a maior parte desse mineral não é aproveitada pela indústria nacional e acaba sendo exportada na forma de concentrado, o primeiro estágio do beneficiamento.

● No caso do lítio, a extração se iniciou nos anos 1950 e, em 1997, um decreto obrigou as empresas a investirem em desenvolvimento tecnológico (o decreto foi revogado por Bolsonaro em 2022). Depois de quase trinta anos dessa obrigação, o Brasil ainda exporta quase 90% do lítio na forma de concentrado.

● Com relação ao nióbio, o país possui o quase monopólio das reservas mundiais. Mesmo assim, mais de 90% das exportações desse mineral são na forma de ligas de ferro-nióbio, um produto menos sofisticado do que, por exemplo, nióbio metálico e óxido de nióbio, usados por setores tecnológicos.

No Brasil, o principal resultado da construção da excepcionalidade do setor mineral tem sido o tratamento diferenciado no licenciamento ambiental e sistemas tributários mais favoráveis. O Pró-minerais Estratégicos, por exemplo, permite que empresas que estejam enfrentando dificuldade em seu licenciamento se inscrevam no programa e, caso atendam aos critérios, consigam que a Secretaria de Parcerias de Investimento do Ministério da Economia “preste apoio” ao licenciamento. Dessa forma, fica evidente que a política não tem nada de “estratégica”, pois a inserção no programa depende da iniciativa das empresas. Em setembro de 2025, havia dezenove projetos habilitados junto ao programa, todos enfrentando dificuldades junto a órgãos como Funai, Incra, ICMBio ou Iphan.

Com a eleição de Lula, em seu novo papel de “defensor do meio ambiente”, houve a expectativa de que tal programa seria revisto. Afinal, em seu relatório, a Comissão de Transição afirmou que: “trata-se de um ato que, a pretexto de estimular o setor de exploração mineral ou implementar um suposto processo de desburocratização, busca, na verdade, promover uma transgressão velada das normas de licenciamento ambiental aplicadas às atividades de exploração mineral, elegendo projetos de forma discricionária e que teriam prioridade máxima na tramitação do licenciamento”.

Todavia, após a mudança de governo, a narrativa em torno dos MATEEs se fortaleceu e o seu “canto da sereia” capturou todos os três poderes.

No Legislativo, foi apresentado pelo deputado federal Zé Silva (Solidariedade/MG) o PL 2.780/2024, que garante, em lei, o tratamento de excepcionalidade criado pelo Pró-Minerais Estratégicos. Por um lado, ele mantém a ideia de um licenciamento ambiental diferenciado, por meio da criação de “programas de apoio ao licenciamento ambiental”. Por outro, prevê conceder às mineradoras os benefícios previstos na Lei nº 11.196/2005 voltados para empresas que investem em inovação tecnológica. Dessa forma, ele amplia a exoneração fiscal de um setor que já é beneficiado pela isenção de ICMS para exportação, graças à Lei Kandir, e pela redução de 75% do imposto de renda dos projetos localizados na Amazônia, a principal fronteira mineral do país.

Do ponto de vista do Executivo, em fevereiro de 2024, o Ministério de Minas e Energia anunciou a elaboração do “Programa Mineração para Energia Limpa”. Desde então, as discussões vêm ocorrendo sem abertura para um debate verdadeiramente participativo.

Outra iniciativa, ainda no campo das expectativas, foi, a partir da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, a assinatura da Medida Provisória 1.308/2025, que criou um “procedimento especial” para o licenciamento ambiental de “empreendimentos estratégicos”. Esta MP limita em doze meses o período de análises dos processos de licenciamento, independentemente de sua complexidade técnica ou dano ambiental. Não está claro, ainda, quantos projetos de extração de “minerais estratégicos” serão beneficiados por esse procedimento especial. Apesar disso, vale lembrar que essa não é uma proposta nova e foi testada em Minas Gerais na figura dos “Projetos Prioritários”. Tal recurso foi usado para agilizar o licenciamento da barragem da Vale em Córrego do Feijão, em Brumadinho.

Um apoio mais concreto ao setor foi dado pelo BNDES, que criou, em parceria com a Vale, o Fundo de Investimento em Participações no Setor de Mineração, com o intuito de financiar projetos de pesquisa, implantação ou operação de extração de minerais voltados para a “transição energética” ou “fertilização do solo”. O banco ainda utilizou recursos do Fundo Clima para apoiar com R$ 480 milhões a expansão da mineradora Sigma Lithium, apesar de todos os conflitos territoriais causados por suas operações no Vale do Jequitinhonha.

As iniciativas para favorecer os MATEEs têm sido tão bem articuladas que até o Judiciário se envolveu. Ainda em 2025, como fruto da “Câmara de Conciliação” no STF em torno do “marco temporal” da demarcação de terras indígenas, o ministro Gilmar Mendes, em uma manobra pouco usual, apresentou uma proposta de anteprojeto de lei, que permitiria a mineração em terras indígenas. O documento definia como sendo de “relevante interesse público da União” a “exploração de recursos minerais estratégicos”. A inclusão da mineração na discussão sobre o “marco temporal” foi consequência de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 86), apresentada pelo Partido Progressistas. O PP era representado na “Câmara de Conciliação” por Luís Inácio Adams, advogado da mineradora Brazil Potash e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, fundado por Gilmar Mendes.

No final de julho de 2025, o setor mineral pôde acrescentar mais um item à construção da excepcionalidade dos MATEEs. Dentro do contexto do “tarifaço” de Donald Trump, o encarregado de negócios da embaixada estadunidense mencionou o interesse do seu país em um acordo comercial envolvendo alguns desses minerais. A partir desse evento foi criada uma nova narrativa sobre o seu papel na “soberania nacional”.

Em um discurso ufanista, possivelmente inspirado no “O petróleo é nosso”, Lula afirmou, em agosto, que “ninguém vai colocar o dedo nos nossos minerais críticos e terras raras”. O presidente ainda anunciou a criação de um Grupo de Trabalho para tratar da exploração dos MATEEs.

O mesmo sentimento de emergência nacionalista foi transferido para o Congresso. O deputado federal Patrus Ananias (PT/MG) propôs o PL 3699/2025, que estabelece que a extração desses minerais deve obedecer às diretrizes de uma suposta “soberania mineral”. O PL, ainda cria a proibição (inócua) da participação de empresas estrangeiras na exploração dos MATEEs. O deputado, aparentemente, se esqueceu que a Vale (uma das campeãs nacionais do Lula 2) foi criada para atender quase que exclusivamente o mercado internacional e, desde então, tem feito prioritariamente isso. Um mês depois, em setembro, o deputado Zé Silva requereu regime de urgência para o seu PL, em um movimento semelhante ao que ocorreu em 2013, quando o governo tentou impor a mesma urgência à sua proposta de alteração do Código Mineral, reduzindo as oportunidades do debate democrático e participativo.

Em resumo, sob uma nova roupagem de combate às mudanças climáticas, que oculta outros usos menos defensáveis, o setor mineral vem conseguindo que diferentes instituições concedam mais do que ele sempre teve: facilidades para o licenciamento ambiental e favorecimentos tributários. Porém, o aprofundamento dessas políticas, muito provavelmente, irá produzir o que já é visto em todas as regiões mineradas: dependência econômica de uma atividade volátil e finita, concentração de renda, geração de empregos precários e extensa degradação ambiental.

O Brasil precisa repensar e questionar o papel da mineração em seu desenvolvimento e superar essa idealização e dependência, que se intensifica desde dos anos 2000. Apenas estimular a extração ampliando incentivos tributários e reduzindo o rigor ambiental dificilmente gerará qualquer tipo de progresso genuíno. Existem diferentes e criativas alternativas propostas por movimentos sociais, organizações não governamentais e comunidades atingidas, mas elas raramente são consideradas. Enfim, fazer a mesma coisa e esperar resultados diferentes não é a melhor forma de se elaborar políticas públicas.

*Bruno Milanez é engenheiro de produção e doutor em Política Ambiental. Professor da Faculdade de Engenharia e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS).

A força do diálogo 

A força do diálogo 

Auguegi wao!  

Na língua Bakairi, eu chego e peço licença: deixem-me falar! Deixem-me contar um pouco sobre as nossas lutas neste ano de 2024, compartilhar nossas preocupações e, claro, nossas conquistas. Neste ano, nós, povos indígenas de Mato Grosso, representados pela Federação dos Povos e Organizações Indígenas de MT (Fepoimt), conquistamos mais espaços. E não falo somente da demarcação de territórios, mas também de lugares de fala.  

Sim, porque começamos o ano com novos representantes no Conselho Nacional de Políticas Indigenistas, tão importante na luta pelos nossos direitos. Consolidamos o Acampamento Terra Livre (ATL) em Mato Grosso com a participação de mais de 400 indígenas dos 46 povos do estado na praça Ulisses Guimarães, em Cuiabá, uma  mobilização crucial para ampliar o diálogo com os poderes Executivo e Legislativo e compartilhar as nossas lutas com a sociedade.  

Por falar em conquistar espaços públicos, 12 vereadores indígenas foram eleitos nas eleições municipais. Agora são 12 vozes a mais em defesa dos direitos dos povos tradicionais nos próximos quatro anos, em vários cantos de Mato Grosso. 

Após décadas de luta e embates jurídicos, celebramos a homologação do território indígena Cacique Fontoura, do povo Iny Karajá, e a declaração dos limites de ocupação tradicional do território Apiaká do Pontal e Isolados.  

Também levamos uma delegação a Brasília, onde fomos recebidos por quatro ministros do Supremo Tribunal Federal para debater a inconstitucionalidade do marco temporal. Conquistamos a participação dos povos indígenas no programa do governo “Arroz da Gente”, de incentivo à produção com acompanhamento técnico e garantia de comercialização. O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome também incluiu os povos indígenas no Plano Nacional de Cuidados. 

Mas este foi um ano de estiagem severa, e os incêndios florestais devastaram nossos territórios. De janeiro até agora, o número de focos de calor foi quatro vezes maior que no mesmo período do ano passado. Já estamos em emergência climática! 

Não temos como impedir as mudanças, mas podemos nos preparar. Precisamos de um plano de adaptação climática para as cidades, é urgente! Precisamos de um plano de manejo do fogo, já que nas condições climáticas atuais, a prevenção e o combate não são mais os mesmos. Os sinais estão todos aí, a natureza vem nos alertando.  

Em 2025, como anfitrião da COP30, a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, o Brasil ousa ser protagonista da agenda climática. Com três dos principais biomas do país, o Estado de Mato Grosso pode e deve estar no centro dos debates e das decisões políticas. E a nossa expectativa é participar efetivamente da construção das políticas públicas. Por isso defendemos a criação de uma secretaria indígena no estado, com recursos próprios. Queremos construir pontes, e não muros.  

Nossa missão neste ano que se inicia segue firme: trabalhar em defesa dos direitos dos povos indígenas ao bem viver. Para tanto, é preciso conversar! Governador, bancadas parlamentares, estamos abertos ao diálogo!  

Auguegi wao!   

*ELIANE XUNAKALO é presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt)

Artigo produzido por Uma Gota no Oceano e publicado pelo jornal A Gazeta em 31/12/2024

Link: https://flip.maven.com.br/pub/jornalagazeta/?numero=11652&ipg=1238093#page/2

Lições do Rio Grande do Sul para repensar o desenvolvimento

Lições do Rio Grande do Sul para repensar o desenvolvimento

Por Sérgio Guimarães

Secretário executivo do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental

As recentes catástrofes no Rio Grande do Sul nos lembram brutalmente das consequências da negligência ambiental e da falta de infraestrutura adequada do nosso país. Enquanto enfrentamos esta dolorosa realidade, outro drama, por enquanto mais silencioso, mas potencialmente tão devastador, se desenrola na Amazônia e no Cerrado: o desmatamento descontrolado – que ameaça não só a biodiversidade local, a disponibilidade de água e as comunidades que delas dependem, mas também o equilíbrio climático global.

Há tempos os cientistas são unânimes em alertar que estamos nos aproximando do ponto de “não retorno” que, uma vez ultrapassado, desencadeará processos irreversíveis, comprometendo a capacidade de regeneração da floresta e intensificando eventos climáticos extremos por todo o Brasil — secas severas, inundações devastadoras, como vimos recentemente no Rio Grande do Sul, tragédias que poderiam ser mitigadas com políticas públicas mais robustas e conscientes.

Grandes projetos de infraestrutura, como rodovias e hidrelétricas, continuam entre os principais fatores que levam ao desmatamento. A história mostra que desde a construção da BR-364, que impulsionou a ocupação de Rondônia, a BR-230, conhecida como Transamazônica, até a BR-163; todas se constituíram no fator decisivo do processo de devastação na região, especialmente pela crônica falta de governança mesmo quando haviam medidas construídas coletivamente para evitar os impactos socioambientais como o plano BR-163 Sustentável que foi totalmente abandonado.

Da mesma forma, hidrelétricas como Tucuruí no rio Tocantins, Belo Monte no rio Xingu, Santo Antônio e Jirau no rio Madeira e quatro barragens construídas simultaneamente no  rio Teles Pires (afluente do Tapajós); além dos impactos diretos na floresta, na fauna aquática, no regime hídrico de grandes rios e nas comunidades ribeirinhas, também contribuem para o desmatamento, emissões de metano e outros gases de efeito estufa e para a ocupação desordenada da região, incentivando a migração para cidades que já padecem pelo déficit de infraestrutura básica.

É preciso assumir que essas atividades não estão precedidas por estudos suficientes para uma tomada de decisão com base técnica e, muitas vezes, são definidas a partir de interesses políticos e de setores econômicos diretamente envolvidos e que aprofundam o processo de desmatamento na região. Exemplos mais recentes como a Ferrogrão (um projeto de ferrovia de 933 km² de extensão, entre Sinop (MT) e Santarém (PA), hidrelétricas no Rio Madeira, hidrovia no Tocantins e a proposta de Corredores de Integração Sul-Americana também têm sido sinônimo de devastação ambiental.

Também é necessário lembrar que o Brasil foi um dos países signatários da Declaração do uso de Florestas e Terra dos Líderes de Glasgow da COP26, em 2021, que firma o compromisso total com o reflorestamento e a preservação florestal até 2030. Na COP27, no Egito, o presidente Lula reafirmou o compromisso com o acordo internacional. No entanto, as promessas ainda estão distantes da realidade no território, com isso o desmatamento avança e os impactos socioambientais se agravam.

Diante deste cenário, é imperativo intensificar e diversificar as ações para proteger a Amazônia e o Cerrado. É essencial promover um diálogo constante entre o governo, organizações da sociedade, movimentos sociais e outros atores, para criar políticas públicas eficazes e mecanismos de decisão transparentes e inclusivos.

Uma estratégia de atuação efetiva deve ter em vista a proteção da floresta, dos sistemas hídricos e, ao mesmo tempo, respeitar as comunidades e beneficiar a economia regional e a vida no planeta em termos de biodiversidade e equilíbrio climático.

É necessário ainda que as decisões sejam precedidas de estudos robustos de riscos socioambientais, viabilidade econômica, e de análises de alternativas de custo-benefício social, ambiental e econômico. Alternativas que devem considerar, prioritariamente, as necessidades de fortalecimento de uma economia regional sustentável e as necessidades das pessoas, em especial dos grupos mais vulneráveis. Também urge uma comunicação simplificada e bem direcionada, que consiga chegar nos diversos segmentos da sociedade, para que assim, a população possa contribuir com o processo de tomada de decisão.

A tragédia no Rio Grande do Sul deve servir como um alerta para todo o Brasil: é hora de repensar nossos modelos de desenvolvimento e infraestrutura. Não podemos permitir que a busca por progresso econômico imediato continue a sacrificar o meio ambiente e a segurança das atuais e futuras gerações. Agir agora é fundamental para evitar que as cenas de destruição que chocaram o país se tornem cada vez mais comuns.

Enredos do século passado

Enredos do século passado

Se é verdade que o ano no Brasil só começa depois do Carnaval, ainda bem que este caiu no início de fevereiro, pois temos muito a fazer. O bloco da Bancada do Fim do Mundo não está nem aí para estourar o tempo do desfile – leia-se o prazo para tomarmos medidas definitivas contra o avanço das mudanças climáticas e o ponto de não retorno da Amazônia –, como se não houvesse amanhã. Fora que o seu repertório parece inesgotável, embora seja só variações sobre os mesmos temas. E aqui estamos nós, com 30 anos de atraso – a Constituição diz que todas as terras indígenas deveriam estar demarcadas até 1993, bem como determinou a titulação dos quilombos –, falando de “marco temporal”. Um enredo do século passado.

A Unidos do Ruralismo tem em mãos uma ala quase imbatível, a maioria do Congresso mais antivida que já tivemos. Em 21 de setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, por nove votos a dois, a inconstitucionalidade da tese, que põe barreiras quase intransponíveis para que novos territórios originários sejam homologados – e ainda ameaça muitos já demarcados. A despeito de a maior Corte do país considerá-la inconstitucional, os ruralistas aprovaram, ainda em setembro, o PL 2.903/2023, que institui o marco temporal. 

O projeto foi vetado pelo presidente Lula em outubro, mas os congressistas derrubaram o veto. Seu nome agora é Lei 14.701/2023. Coube a uma deputada federal indígena liderar uma nova luta no Supremo, agora pela inconstitucionalidade da lei. Inacreditavelmente, o judiciário terá que julgar novamente um caso que já deu por resolvido. Anotem na agenda: o STF julga este ano duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) e enfrenta a pressão dos lobbies do agronegócio e da mineração. O relator será Gilmar Mendes. 

Também dormita na Câmara o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, cujo objetivo é retirar o Brasil da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na prática, ela liberaria geral a mineração, o agronegócio e a construção de obras de impacto em terras indígenas. Ou seja, mais do mesmo. A Escola de Samba Salgueiro levou à avenida o enredo Hutukara, que conta a história da luta Yanomami. Sim, luta.  O próprio Davi Kopenawa, uma de suas mais proeminentes lideranças, pediu que a escola não tratasse os Yanomami como coitadinhos e, sim, como são de fato: guerreiros.  A invasão de sua terra por garimpeiros remonta aos anos 1980, mas eles vêm resistindo bravamente. 

Só que já passou da hora de encontrar uma solução rápida e definitiva. No início do ano, o governo federal anunciou que vai investir R$ 1,2 bilhão numa operação permanente contra o garimpo ilegal. É preciso que os povos indígenas participem da coordenação dessas ações e fiscalizem para onde vai esse dinheiro. Sabe-se que membros das Forças Armadas que têm simpatia pelo garimpo sabotaram missões no território – isso sem contar os políticos da região, que têm políticas francamente anti-indígenas. É agente da “abin paralela” pra todo lado.

Os garimpeiros não trabalham para si próprios, mas para muitos dos ocupantes das cadeiras do Congresso ou empresários que os apoiam financeiramente – e este ano tem eleições municipais. É preciso escolher candidatos comprometidos com a defesa da vida e ficar nos seus pés depois de eleitos. Cada anúncio de obra do PAC na Amazônia merece atenção redobrada. Uma estrada asfaltada, hidrovias, pistas de pouso e ferrovias serviriam para facilitar a vida dos invasores e para desviar dinheiro que poderia desenvolver a bioeconomia e ações de conservação. Tapetes vermelhos para o crime por cima do verde.

Outro desafio que não pode esperar mais um Carnaval é o desmatamento no Cerrado. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), enquanto houve uma redução de 50% do desmatamento na Amazônia, no segundo maior bioma do Brasil ele cresceu 43%. Foram abaixo 7,8 mil km² de vegetação nativa em 2023. Não tem tanto segredo porque a causa é basicamente uma: o avanço sem trégua do monopólio da soja. 

A solução mais prática e óbvia nos leva ao início do artigo: o aumento de áreas protegidas. A Amazônia tem mais de 40% de seu território coberto, enquanto no Cerrado essa proporção fica entre 12% e 14%. É preciso demarcar mais terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação. E, claro, cortar os subsídios dos desmatadores. A marchinha favorita dessa turma é “Me dá um dinheiro aí”. 

Como diz o pensador acadêmico da ABL Ailton Krenak, “até quando as pessoas vão ficar olhando o povo indígena defender sozinho a floresta?”. O escritor também disse que não quer “salvar os indígenas, mas evitar a extinção da espécie humana”. Tem enredo melhor que esse? É hora de a sociedade civil puxar esse samba.

 

Saiba mais:

ACNUDH manifesta-se contra retirada do Brasil da Convenção 169 da OIT

https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/acnudh-manifesta-se-contra-retirada-do-brasil-da-convencao-169-da-oit

 

Não adianta chorar sobre o cerrado derrubado

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/01/nao-adianta-chorar-sobre-o-cerrado-derrubado.shtml

 

Congresso derruba veto de Lula ao marco temporal das terras indígenas

https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2023/12/congresso-derruba-veto-de-lula-ao-marco-temporal-das-terras-indigenas

 

Marco temporal volta ao STF com três ações diferentes e Gilmar Mendes relator; entenda

https://www.brasildefato.com.br/2024/01/04/marco-temporal-volta-ao-stf-com-tres-acoes-diferentes-e-gilmar-mendes-relator-entenda

 

PP, Republicanos e PL acionam o STF para validar o marco temporal de terras indígenas

https://www.jota.info/justica/pp-republicanos-e-pl-acionam-o-stf-para-validar-o-marco-temporal-de-terras-indigenas-28122023

Um plano de vida para a Terra

Um plano de vida para a Terra

Não é de hoje que os indígenas vêm dizendo ao mundo que o clima está mudando e só têm encontrado ouvidos de mercadores. “Há muito tempo, desde que eu era menino, há 30, 40 anos, meu povo vem notando essas mudanças no clima, o calor aumentando e a chuva rareando. Antigamente, chovia pelo menos a cada 10 dias. Agora, são 90 dias sem cair um pingo sequer”, diz o cacique Zé Bajaga Apurinã, da aldeia Idecora, na Terra Indígena Caititu, que fica no município de Lábrea (AM).

“Temos visto deslizamentos de terra e inundações nas cidades. Isso acontece porque desmataram as encostas dos morros e impermeabilizaram o solo. A água não tem para onde ir e nenhum tipo de contenção. As cidades precisam de mais áreas verdes. É preciso reflorestá-las. Sem contar que o cimento e o asfalto refletem o sol e fazem o calor aumentar”, ensina o cacique Zé Bajaga, que também é coordenador executivo da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp) e faz parte do Conselho da Coordenação das Organizações da Amazônia Brasileira (Coiab).

A guerra contra a crise no clima tem que se dar em duas frentes: a redução da emissão de gases do efeito estufa e a adaptação dos territórios – urbanos, rurais ou florestais – à nova realidade por ela imposta. A ocupação da Amazônia começou há 14 mil anos e os povos originários têm todo esse tempo de experiência acumulada para se adaptar a circunstâncias adversas, incluindo catástrofes naturais. E eles já começaram a planejar para lutar em ambos os flancos, unindo saberes ancestrais e ciência moderna ‘no papel’. O Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) é uma ferramenta da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) que norteia a forma como eles manejam seu território. É tão importante para os povos originários que eles o chamam de Plano de Vida. 

Apesar de um estudo do governo federal ter alertado que, em mais de um terço dos municípios brasileiros, há pessoas vivendo em áreas suscetíveis a desastres naturais, a Confederação Nacional dos Municípios revelou que menos da metade dos municípios brasileiros que estão no Cadastro Nacional de Risco possuem Plano Municipal de Redução de Risco e 30% deles não têm sequer Plano Diretor. Enquanto isso, os povos indígenas vêm investindo na elaboração ou reformulação do PGTA de suas terras para contemplar estratégias de enfrentamento ao aquecimento global. 

O cacique Zé Bajaga Apurinã exemplifica uma ação voltada para o combate às mudanças climáticas prevista no documento que ajudou a conceber: “Nosso plano prevê a plantio de árvores de diversos tipos, frutíferas e não frutíferas, que ajudam a reduzir a temperatura local e a chuva a voltar”. Essas árvores também servirão de abrigo e vão fornecer alimentos à fauna local, que se encarregará de espalhar sementes pela mata. Os PGTAs têm o objetivo de promover a proteção socioambiental, o desenvolvimento sustentável e a implementação de políticas públicas em seus territórios – como saúde e educação.

Pensando em compartilhar conhecimento e buscar financiamentos para implementar e executar os PGTAs na Amazônia, a Coiab lançou um site que reúne quase 100 projetos de organizações dos nove estados da Amazônia Legal. É o maior banco de dados sobre esses territórios, que cobrem 700 mil km², onde vivem 152 povos diferentes, 17% deles isolados.

“A ideia é que o site seja uma vitrine para mostrar o que cada terra indígena tem feito pela sustentabilidade e as soluções que já encontramos e praticamos em nossos territórios. Essa ferramenta pode ser uma importante contribuição dos povos indígenas para a autossustentabilidade da Amazônia e do planeta”, explica o coordenador de Projetos da Coiab, Luiz Penha, do povo Tukano, do Amazonas. “É importante lembrar que a conservação das florestas e o equilíbrio do clima passam pela garantia de direitos aos indígenas sobre suas terras, e o PGTA é um instrumento feito de forma coletiva, por cada povo indígena, com esse objetivo”, completa o coordenador-geral da Coiab, Toya Manchineri. 

As tragédias se repetem, ano após ano, nas regiões Sul e Sudeste, as mais desenvolvidas do país. Enquanto isso, os povos originários continuam compartilhando saberes e aprendizados acumulados ao longo de milênios manejando a floresta, para mostrar um caminho possível para a gestão dos vários territórios em tempos de mudanças climáticas. Ouvir os indígenas é importante, mas não basta para frear o colapso do clima e do planeta: é preciso agir como eles.

Saiba mais

Todos os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs)

https://pgtas.coiab.org.br/ 

2023 é o mais quente em 174 anos, confirma relatório da OMM

https://portal.inmet.gov.br/noticias/2023-%C3%A9-o-mais-quente-em-174-anos-confirma-relat%C3%B3rio-da-omm 

48 mil morreram por ondas de calor no Brasil entre 2000 e 2018

https://oc.eco.br/mais-de-48-mil-pessoas-morreram-por-ondas-de-calor-no-brasil-entre-2000-e-2018/?swcfpc=1 

El Niño está sendo intensificado pelas mudanças climáticas, trazendo chuvas mal distribuídas

https://jornal.usp.br/atualidades/el-nino-esta-sendo-intensificado-pelas-mudancas-climaticas-trazendo-chuvas-mal-distribuidas/ 

Desastres em 47% dos Municípios forçaram mais de 4,2 milhões a deixarem suas casas nos últimos 10 anos

https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/desastres-em-47-dos-municipios-forcaram-mais-de-4-2-milhoes-a-deixarem-suas-casas-nos-ultimos-10-anos 

Mais de um terço dos municípios brasileiros têm moradores em áreas de risco de desastres naturais, aponta estudo

https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/01/18/mais-de-um-terco-dos-municipios-brasileiros-tem-moradores-em-areas-de-risco-de-desastres-naturais-aponta-estudo.ghtml 

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