Destruir é mais fácil que construir. Foram necessários 3 bilhões de anos para a Floresta Amazônica se formar e ela se manteve relativamente intocada até os anos 1980, quando a coisa degringolou. Segundo o Mapbiomas, até 2021 ela já havia perdido 17% de sua vegetação nativa. Durante o governo (sic) anterior, foi abaixo toda a estrutura que cuidava de sua preservação e, junto com ela, 35.193 km² de mata. Por isso, 2023 foi, antes de mais nada, o ano da reconstrução; porém de esperança também: entre janeiro e novembro foi registrada uma queda de 62% no desmatamento, a menor desde 2017. Podem espoucar a champanhe, mas lembrem-se que cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém.
Reconstruir o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) foi uma obra regida pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, em retorno triunfal à frente de trabalho ambiental. O novo governo começou com o pé direito logo na subida do presidente Lula na rampa do Planalto, de braços dados com Raoni. Depois vieram a volta de Marina, a criação do Ministério dos Povos indígenas – sob a batuta de Sonia Guajajara – o comando da Funai foi entregue à Joênia Wapichana e a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) a Ricardo Weibe Tapeba – todos indígenas, seguindo o lema que os povos defendem: nada sobre eles sem eles.
Os quilombolas também ganharam representatividade nos ministérios da Igualdade Racial e do Desenvolvimento Agrário e, finalmente, deram o primeiro passo para sair da invisibilidade em que vivem há mais de 350 anos com o primeiro Censo do IBGE a incluir os quilombos. Dados fundamentais para a formulação de políticas públicas voltadas para esse povo tradicional, que também é fundamental para a preservação da biodiversidade e a regeneração de solos, com suas técnicas ancestrais.
Com essas medidas, o Executivo pretendia retomar o protagonismo do país nas discussões sobre o clima e a preservação ambiental e, ainda em 2023, colheu os primeiros frutos. O Fundo Amazônia, paralisado por quatro anos – por obra e graça do ex-ministro do Meio Ambiente, hoje investigado por contrabando de madeira e outros crimes – foi retomado logo em janeiro e com novos doadores: além de Noruega e Alemanha, entraram para a confraria Reino Unido, União Europeia, Dinamarca, Suécia e Estados Unidos. Mas, peralá, calminha no Brasil! Nem tudo são flores nessa história que deveria ter um desfecho feliz.
Temos hoje o Congresso mais antivida de nossa História e ele não para de aprontar: a menos de 15 dias do fim do ano e a quatro dias do recesso legislativo, a Câmara aprovou uma proposta que flexibiliza o licenciamento ambiental e permite o uso de recursos do Fundo para asfaltar a BR-319, que liga Porto Velho a Manaus, cortando 885 km de floresta – e abrindo caminho para o desmatamento de uma área de florestas maior que o estado de São Paulo. O projeto é comprovadamente desastroso, não apenas ambientalmente, como economicamente. E de nascença: “A BR-319 não tinha nenhum raciocínio econômico. Era tudo paranoia de que a Amazônia seria tomada pela cobiça internacional”, diz o biólogo Philip M. Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Será que os doadores internacionais vão engolir esse agá de nossos parlamentares? Difícil vem, fácil vai. Já foi uma vez.
E tem mais: no último dia 14, deputados federais e senadores derrubaram os vetos do presidente Lula a trechos do PL 2903, incluindo o que cria o “marco temporal” para demarcação de terras indígenas, que já havia sido considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O caso deve voltar à Justiça, mas até a resolução final, garimpeiros e madeireiros ilegais vão fazer a festa. Fora a pressão para a construção de outro desastre artificial, a Ferrogrão, estrada de ferro de 933 km que vai ligar Sinop (MT) ao Porto de Mirituba (PA) e seguir Rio Tapajós adentro, numa hidrovia de riscos mal calculados. Sua única serventia será exportar soja.
É como se os congressistas tivessem esquecido que a Amazônia vem enfrentando a pior seca que se tem notícia e o Sul passou por uma temporada recorde de temporais – um ciclone extratropical provocou a maior catástrofe natural no Rio Grande do Sul em 40 anos, além de o aumento de 238% do desmatamento no Cerrado em novembro. Foram destruídos 571,6 km², mais do que o triplo do registrado no ano passado, 168,8 km². O segundo maior bioma do país está virando uma imensa lavoura de commodities.
Sejamos justos, entretanto: essa amnésia seletiva não atinge só o Congresso brasileiro. A cada ano, o IPCC da ONU apresenta um relatório mais cataclísmico que o outro e as nações continuam postergando soluções. As emissões globais de CO2 devem crescer 1,1% até o fim do ano, de acordo com o Global Carbon Project – o que dá 36,8 bilhões de toneladas. Os efeitos já podem ser sentidos na pele: o serviço climático europeu Copernicus anunciou, no início de dezembro, que 2023 será o ano mais quente já registrado. Novembro foi o sexto mês consecutivo em que recordes de temperatura foram quebrados, chegando a uma média global de 14,22°C.
Uma semana antes do início da COP-28, António Guterres, secretário-geral da ONU, alertou para a aceleração “absolutamente devastadora” do degelo da Antártida. Segundo o National Snow and Ice Data Center (NSIDC), em julho, o gelo marinho que cerca o continente estava 2,6 milhões km² abaixo da média de 1981 a 2010, uma perda de quase uma Argentina em superfície. Esse derretimento acaba influenciando na perda das geleiras terrestres, o que, por sua vez, influencia diretamente no aumento do nível do mar.
Não é ficção científica: daqui a pouco a água vai bater em nossas canelas. Até 2050, centenas de grandes cidades costeiras vão perder terreno – literalmente. Falemos do Brasil: no Rio de Janeiro, as projeções mais pessimistas indicam uma elevação do mar em 20 cm até meados do século e 48 cm até o fim dele; em Belém, serão 21,6 cm e 49 cm; e em São Luís e Fortaleza, 50 cm até 2100. Bairros inteiros vão ficar submersos.
Apesar de tantos alertas vermelhos, a COP de Dubai foi praticamente um showroom da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Convidado para entrar no clube, o governo brasileiro esqueceu parte das promessas que fez e liberou o leilão de 21 blocos para exploração de petróleo e gás na Amazônia. O Instituto Internacional Arayara lançou um relatório que aponta que 15 Unidades de Conservação, 23 terras indígenas e cinco territórios quilombolas serão afetados. Em que pese os seus acertos, o presidente Lula tem uma relação ambígua com o meio ambiente – quiçá porque sua formação vem do chão de fábrica e não do de terra.
Se boas novas vieram de Dubai foi a crescente participação dos povos originários, quilombolas e extrativistas, mostrando que os movimentos populares dos povos da floresta precisam ser não apenas ouvidos, mas reconhecidos como parte da solução. Já sabíamos que não seria fácil, e não será. Mas é como se diz, enquanto tem bambu, tem flecha. Em 2024, precisaremos nos unir aos guardiões da floresta pelo que temos de mais importante a construir no momento: um futuro. Mãos à obra.
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