Tragédia anunciada aos quatro cantos

Tragédia anunciada aos quatro cantos

Por Gabriela Helena Borges*

Eu morava no Recife e tinha 8 anos quando percebi que o córrego que corria em frente à minha rua não vinha de um rio, pelo cheiro ou pelas queixas da minha mãe ao me ver brincando na porta de casa. Com 10, descobri o significado de desabamento, quando o teto de casa caiu na cabeça do meu pai. Já aos 12, ouvia a chuva lá fora e pensava: hoje não vai ter aula – não porque a escola fecharia ou algo do tipo, mas por entender que na minha condição, se chovia, só restava à gente rezar. Sorte de quem pode ouvir falar sobre a previsão do tempo sem sentir um arrepio por saber que o pior pode estar por vir.

Hoje, aos 23 anos, vivo no sertão, em Garanhuns, e acompanho de longe angustiada o que acontece por lá. Vejo os amigos participando dos esforços para ajudar os mais necessitados e tenho vontade de me juntar a eles. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, Recife é a capital brasileira mais vulnerável aos efeitos do aquecimento global e a 16ª cidade do mundo. Os dados são de 2014, mas nem todos têm acesso a essa informação: “Faleceu minha irmã, meu cunhado… faleceram 11 pessoas da minha família, foi difícil. Difícil mesmo. Não esperava isso”, desabafou o recifense Luiz Estevão de Aguiar, que perdeu os parentes em Jardim Monte Verde, área limítrofe entre o Recife e Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana.

Mais de 100 pessoas morreram até esta quarta-feira (1/06). São vítimas daqueles que conheciam o risco, poderiam ter tomado providências, mas não fizeram nada. Isso quando não dividem a culpa com quem perdeu a vida, entes queridos e os poucos bens materiais que tinham: “A população poderia colaborar também, evitando. Nós sabemos da dificuldade, de fazer sua residência em locais que é sabidamente provável, em havendo um excesso de precipitação, a tragédia se fazer presente”, disse o presidente Bolsonaro em fevereiro, quando catástrofe semelhante atingiu São Paulo. Uma política consistente de construção de moradias para pessoas que são obrigadas a criar seus filhos em áreas de risco, que é bom, não há.

Não é difícil explicar os motivos pelos quais a cidade, que acompanhou parte da minha existência, hoje chora pela vida inteira que poderia ter sido, e que não foi, como disse o poeta Manuel Bandeira. A tragédia é anunciada aos quatro cantos, até quem não queria, viu. A primeira enchente registrada no Recife aconteceu em 1632, muito antes de eu sonhar em nascer. De lá pra cá, a coisa só piorou. Isso porque, de acordo com a “Análise de Riscos e Vulnerabilidades Climáticas do Município”, lançado na Conferência Brasileira de Mudanças Climáticas (CBMC), o seu litoral tem 45,7% de sua extensão sob zona de alta vulnerabilidade; ou seja, a região será rapidamente atingida com a subida do nível do mar.

Além disso, o relatório diz que a cidade, erguida sobre manguezais, não tem infraestrutura de drenagem suficiente e que as chuvas irão intensificar os danos nas áreas de ocupação inadequadas. Essa soma de fatores resulta numa projeção de aumento de risco de 68,44% até 2040. Porém, temos que ter cuidado para que esses dados não sirvam de justificativa para afirmações do tipo “infelizmente, essas catástrofes acontecem, um país continental tem seus problemas”, também feita pelo presidente.

Como se os fatos de Bolsonaro ter extinguido a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, pouco depois de sua posse; cortado em 93% os gastos para estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas; e reduzido em 45,6% a verba prevista no orçamento de 2022 para combate a desastres – que vem em queda livre desde 2019 – não tivessem nada a ver com isso.

O descaso não é apenas na esfera federal, é claro. A prefeitura do Recife ignorou o aviso sobre o risco de chuvas intensas e deslizamentos, emitido na quarta-feira passada (25 de maio) pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Mas antes de me mudar para Pernambuco eu, que nasci em Minas Gerais, morei na Bahia; e todo mundo viu o que aconteceu nesses dois estados na virada do ano. As chuvas no Nordeste já afetaram mais de 1,2 milhão de pessoas em apenas seis meses, segundo levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM).

O direito à moradia está na Constituição Federal desde 1988 e é um dos deveres do poder executivo. Não temos mais tempo para deixar em segundo plano a construção e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, por isso é necessário um investimento constante em políticas públicas neste sentido. A negação desse direito é um problema que se arrasta por gerações e, apesar de não sabermos exatamente quando vai acabar, há uma data que se apresenta como um possível início desta solução: em outubro, com as eleições deste ano. Nós precisamos ter mais voz ativa e o voto pode decidir o nosso futuro. O nosso maior abaixo assinado está nas urnas!

*Não binárie, graduanda em Psicologia, ativista e pesquisadora, Gabriela Helena Borges atua nas mídias sociais da Uma Gota no Oceano e como comunicadora no GT de Gênero da ONG Engajamundo.

 

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E não é que finalmente o Brasil cumpriu a profecia e se tornou o país do futuro? Infelizmente, não o da aurora cintilante de uma nova era, como preconizado por Gene Roddenberry, criador da série “Jornada nas estrelas” (“Star trek”); está mais para um cenário apocalíptico à “Mad Max”. Quando foi concebido em 2015, o Acordo de Paris tinha 2050 como data de referência; porém, os últimos relatórios do IPCC da ONU adiantaram esse relógio do Juízo Final em 20 anos. Se 2030 é a data limite para a Humanidade evitar o pior, aqui ele já chegou. Por ironia do destino, só foi possível realizar essa façanha (sic) graças a um governo que prometeu que nos faria regredir 40, 50 anos.

Estudos de entidades como o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e o Woodwell Climate Research (WHRC) atestam que a mudança no ciclo de chuvas já é uma realidade brasileira. Ondas de calor, os temporais que levaram morte e destruição a 11 estados brasileiros, na virada do ano, e a seca que assola o sul do país desde 2019 serão cada vez mais frequentes e imprevisíveis. Ponha as barbas de molho.

Ganha um guarda-chuva ou uma sombrinha quem disser qual a principal causa. Sim, ele mesmo, o suspeito de sempre, o desmatamento. E, segundo o Ipam, só na Amazônia ele aumentou 56,6% de agosto de 2018 a julho de 2021, em comparação com o mesmo período entre 2015 e 2018. Em janeiro, o Imazon revelou que o desflorestamento na região em 2021, quando 10.362 km² de verde desapareceram – o equivalente a meio Sergipe –, foi o pior dos últimos dez anos. “É um fato que a Amazônia bombeia água para várias regiões do mundo, inclusive o Sudeste brasileiro. Existe uma relação direta entre desmatamento e disponibilidade de água que chega para outras regiões”, explica André Guimarães, diretor-executivo do Ipam e integrante da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.

Uma única árvore pode mandar mil litros de água para a atmosfera por dia. Embora o desmatamento explique os cada vez mais longos e frequentes períodos de estiagem, de onde vem tanta chuva? Da mesmíssima causa, conforme conta o meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador-geral do Cemaden: “A quantidade de água suspensa na atmosfera hoje é maior do que tínhamos séculos atrás. Ou seja, o mesmo fenômeno meteorológico hoje consegue provocar mais chuvas que anos atrás”. O fenômeno é outro efeito colateral do aumento da temperatura média global: a atmosfera está mais quente e, por causa disso, retém mais água. E as florestas tropicais esfriam o planeta em mais de 1°C, de acordo com um estudo realizado pela Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos.

Já o Inmet coletou dados em 271 estações meteorológicas espalhadas pelo país e concluiu que a temperatura e os temporais aumentaram nas últimas décadas. Só na cidade de São Paulo, comparando a década passada com a de 1991 a 2000, o número de dias com chuva acima de 50 mm diminuiu (de 16 para nove dias), mas pés d’água acima de 80 e 100 mm aumentaram (de dois para sete dias). O calor também aumentou: as madrugadas estão 1,6°C mais quentes na capital paulista, em média, do que há 20 anos. “A alteração no padrão de precipitação fica ainda mais evidente quando comparada à última década com o período inicial de análise (1961-1970)”, diz o relatório.

Este futuro/presente distópico já causa – ou ao menos devia causar – pesadelos em quem tira o seu sustento do campo. “Existe principalmente uma mudança de distribuição de chuvas. A chuva está chegando cada vez mais tarde e acabando cada vez mais cedo. O produtor acaba tendo que plantar mais tarde, prejudicando a produtividade. E não adianta chover o mesmo volume se a planta e o solo ficam com mais sede”, explica Ludmila Rattis, pesquisadora do WCRC e do Ipam.

Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e com a Universidade de Bonn, na Alemanha, publicada em maio do ano passado na revista “Nature Communications”, estimou um prejuízo de R$ 5,7 bilhões por ano até 2050, causado pelo desmatamento na Amazônia. Duvidam? Pois na semana passada, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) baixou a estimativa para o PIB da agropecuária em 2022 de 2,8% para 1%. Ou seja, a previsão já está se tornando realidade.

É o famoso tiro no pé: o agronegócio é um dos grandes responsáveis pela destruição da maior floresta tropical do mundo. A Amazônia se aproxima a passos largos de seu ponto de inflexão, quando nada mais poderá salvá-la. Um amanhã sombrio que está logo ali, no país do futuro que se fez presente. O apressado come cru, diz o velho ditado; e, pelo andar dessa máquina do tempo com pinta de trem fantasma, pode nem ter o que comer.

 

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Visão seletiva

Visão seletiva

“E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio”, canta Caetano Veloso em “Um índio”, aquele que “descerá de uma estrela colorida, brilhante”, como o sol. Já em 1977, ele previa nessa canção a enrascada em que nos meteríamos e quem indicaria a saída: os povos originários, com seu conhecimento ancestral, “mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”.

Assim como a canção, o último relatório sobre mudanças climáticas do IPCC da ONU é de arrepiar, embora pelo motivo oposto. Mas há aqueles que, por alguma razão, não enxergaram o óbvio – ou se recusam a notá-lo. Para ajudá-los a abrir os olhos, 45 anos depois, o cantor leva seu violão para Brasília, no Ato pela Terra contra o Pacote da Destruição: “Eu acho que está na hora de a gente se manifestar na rua, botar a cara na rua”, convida. Porque a pressa e a pressão só não aumentam mais que o desmatamento e o desrespeito aos direitos humanos no país.

Com as bênçãos do governo e do presidente de Câmara Federal, congressistas ameaçam aprovar a qualquer momento cinco projetos de lei, o Pacote da Destruição, que podem ferir o Brasil de morte. O que trata de liberação da mineração em terras indígenas, o PL 191/2020, voltou para o topo da lista, como consequência indireta da guerra entre Rússia e Ucrânia – ou “uma boa oportunidade”, como disse o presidente Bolsonaro. Ele pode levar à inutilização das maiores reservas de água do planeta e à extinção de povos. “Depois de exterminada a última nação indígena / E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida”, como também está dito em “Um índio”.

E seria uma catástrofe a nível global, não só local. A mineração ajuda a pôr árvores abaixo e CO₂ lá em cima. Caso o desmatamento siga no ritmo atual, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) calcula que a floresta perderia 17 mil km² de área até 2030. Todo esse verde viraria mais 800 milhões de toneladas de CO₂ na atmosfera. Tem mais: no último dia 7, o jornal científico “Nature Climate Change” publicou um estudo da Universidade de Copenhaguen que indica que mais de ¾ da floresta vêm perdendo sua capacidade de regeneração desde 2003.

Ou seja, a Amazônia está se aproximando mais rápido do que se pensava de seu ponto de inflexão. “Se a perda da Floresta Amazônica se tornar irreversível, o efeito sobre a mudança do clima será significativo”, disse Tim Lenton, diretor do Global Systems Institute, na Universidade de Exeter, Inglaterra, coautor do texto. Caso a gente chegue a esse ponto, 90 bilhões de toneladas de CO₂ vão pro céu – e a Terra vira inferno.

A justificativa dada é nossa dependência externa de fertilizantes minerais; então convém lembrar que os indígenas não só preservam a Amazônia, como ajudaram a cultivá-la. Porém, se há quem não veja o que é claro como o dia, existem os que parecem dotados de visão de raios-x. Só isso explicaria que o Presidente da República conseguisse descobrir as jazidas de potássio em plena Amazônia, já que as conhecidas se encontram entre 650m e 1.200m de profundidade. O seu dom, entretanto, parece ter uma fraqueza: só funciona em terras indígenas. Seja lá qual for o problema, é para lá que ele mira.

O fertilizante russo é apenas a bola da vez; antes, cogitou-se até que o Brasil entrasse para o ramo de bijuterias de nióbio. Ronaldinho Gaúcho era craque nisso: olhar para um lado e tocar para o outro. “A demanda por potássio em terras indígenas é irrisória. O interesse real das mineradoras está na extração de ouro e diamante”, analisa a jogada Márcio Santilli, sócio-fundador e assessor político do Instituto Socioambiental (ISA). “Não são os interesses dos indígenas ou da União que motivam a proposta de regulamentação dessa atividade, mas sim o interesse econômico de determinados grupos”, pontifica o Ministério Público Federal. Precisa de VAR?

Há 40 jazidas do mineral e de fósforo, outro ingrediente da receita dos fertilizantes, que não estão localizadas em terras indígenas ou unidades de conservação. Mas ainda que o presidente pudesse enxergar o subsolo, parece que ele não consegue ver o óbvio, que as verdadeiras riquezas da Amazônia estão na superfície. O “Ato pela Terra contra o Pacote da Destruição” também prevê a entrega de um documento ao Senado: “O presidente da Câmara tem dado mostras de fazer passar toda a desastrosa permissividade que o atual governo propõe”, explica Caetano Veloso. É preciso tirar a peneira da frente dos olhos daqueles que ainda se negam a ver o sol.

O Ato pela Terra contra o Pacote da Destruição acontece neste dia 9/03 (terça-feira), a partir das 15h, em frente ao Congresso Nacional, em Brasília. O ato reúne artistas e representantes da sociedade civil, e é apoiado por 232 entidades e movimentos.

 

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Caso de saúde pública

Caso de saúde pública

Agressões contra o meio ambiente são casos de saúde pública. Quando tratamos mal a natureza prejudicamos a nós mesmos; e temos feito isso de variadas formas. Por exemplo: o que está acontecendo em Petrópolis (RJ) é resultado de tantos tiros no pé que, apesar de os eventos climáticos extremos terem se tornado mais frequentes com o aumento da temperatura global, o fenômeno nem precisa entrar na lista. Evidentemente, no topo está o descaso das autoridades, mas também entram nela velhos conhecidos, como o desmatamento, e o estreitamento e assoreamento de rios. E as consequências vão além das perdas materiais e das quase 200 mortes causadas pela chuva na Cidade Imperial.

Segundo o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), entre 1988 e o início de fevereiro – antes, portanto, do desastre que se abateu sobre Petrópolis – 3.758 pessoas morreram no Brasil em deslizamentos de terra. Já o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério do Desenvolvimento Regional, informa que há 966 municípios brasileiros ameaçados por inundações e seus efeitos devastadores, e só 337 (ou 34,9%) têm sistemas de alerta. “Que Deus os acuda”, devem pensar os governantes.

Petrópolis recebeu em 2015, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), um equipamento de última geração para detectar possíveis riscos. Dois anos depois, ele foi para a manutenção, de onde nunca mais saiu. O orçamento do órgão vem secando desde a sua criação, em 2012, quando recebeu R$ 90,7 milhões: em 2020, foram R$ 20,9 milhões, e no ano passado foram R$ 17,9 milhões, o menor de sua história . Continuamos na contramão do bom senso. O novo relatório do IPCC da ONU alerta: “Sem adaptação, as mortes causadas pelas inundações aumentarão globalmente em cerca de 130% em comparação com 1976-2005, com um aquecimento de 2°C”.

Além do rastro de destruição que gera as imagens que tanto nos chocam, desastres ambientais deixam sequelas graves e duradouras, menos visíveis. “Entre os quadros frequentes nesses sobreviventes vemos estresse pós-traumático, distúrbios do sono, pesadelos e memórias repetidas, dificuldade de concentração, raiva, ansiedade, pânico e depressão”, diz Núbia Cruz, mestre em saúde pública da UFMG. De acordo com a prefeitura de Brumadinho, só em 2019, ano em que aconteceu o desastre que matou pelo menos 270 pessoas, o consumo de antidepressivos no município aumentou 56%, e o de ansiolíticos, 79%.

Os efeitos colaterais não se resumem à saúde mental: também crescem os casos de doenças graves como leptospirose, tétano, hepatite A e febre tifoide. E a água empoçada contribui com a proliferação do Aedes aegypti e do Aedes albopictus, mosquitos vetores da dengue, da zika e da chikungunya. São danos de longo prazo, difíceis de serem contabilizados, que só conhece a real extensão quem sofre na pele.

Violações contra a natureza também afrontam os direitos humanos. Ainda deixando de lado os efeitos das mudanças climáticas, a ONU lançou no último dia 15 um relatório que aponta que a poluição por plástico, lixo eletrônico e agrotóxicos – não nos esqueçamos que a Câmara acaba de aprovar o PL do Veneno – é a causa de mais de 9 milhões de mortes prematuras por ano. Ou seja, mais que a Covid-19, que matou cerca de 6 milhões de pessoas desde o início da pandemia. “As abordagens atuais para gerenciar os riscos representados pela poluição e substâncias tóxicas estão claramente fracassando, resultando em violações generalizadas do direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável”, diz o relator especial da ONU David Boyd, autor do estudo.

Falando no novo coronavírus, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adverte: o lixo gerado pela doença também está fazendo mal à natureza. Só em 2020, o número de máscaras descartadas aumentou 9.000%. Como abrir mãos delas, neste momento, está fora de questão, mais uma vez fizemos da Terra um cobertor curto. Como sair de um sufoco sem entrar em outro? A prescrição é simples: parar de maltratar o meio ambiente. Este receituário recebeu o aval de um estudo da Universidade Harvard, recém-publicado na “Science Advances”, que reuniu cientistas de diversas áreas e economistas. De acordo com o texto, reduzir o desmatamento e acabar com o tráfico de animais silvestres poderia evitar um prejuízo de US$ 400 bilhões com o tratamento de doenças.

“Recursos para reduzir desmatamento são um investimento para prevenir futuras epidemias, mas também para mitigar ameaças já existentes, como a malária e doenças respiratórias associadas com a queima de florestas. Fazer esses investimentos em prevenção traz retornos para a saúde humana, para o ambiente e para o desenvolvimento econômico”, afirma a demógrafa brasileira Márcia Castro, professora de Harvard e uma das autoras da pesquisa. Como o desmatamento geralmente é ilegal, temos aí também um caso de polícia.

“A hipótese mais provável para o surgimento do Sars-CoV-2 é a transmissão de coronavírus de morcegos para seres humanos”, lembra Mariana Vale, cientista do Departamento de Ecologia da UFRJ e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade, que também participou do estudo. “Conservar a floresta é equilibrar o clima, proteger a água, manter a biodiversidade, assegurar a produção agrícola e evitar que doenças surjam, pois o desmatamento coloca o ser humano em contato com vírus que, de outra forma, não sairiam da mata”, completa ela. Ou seja: precisamos urgentemente de uma vacina contra a ganância para as pessoas mais resistentes a essa doença, que vitima até quem é imune a ela.

 

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Pororoca

Pororoca

Há 10 anos um grupo de artistas, comunicadores, ativistas e cientistas convidou a população a desafinar o coro dos contentes e botar a boca no trombone por causa de Belo Monte. Nascia ali o Movimento Gota D’Água, que daria origem à Uma Gota no Oceano. Nossas vozes se juntaram às dos povos do Xingu, que há décadas lutavam para impedir a construção da usina, e o resultado desse clamor foram 2,5 milhões de assinaturas, arrecadadas em menos de dois meses. Já ouviram o som da pororoca? O ruído que vem de longe, levando tudo pelo caminho, e desagua num estrondo. Foi assim.

O resto é História, e ela provou que estávamos certos. A hidrelétrica custou mais do que o dobro do orçamento previsto e produz menos da metade da eletricidade apregoada; a crise energética que ela impediria de acontecer chegou com todo gás; e o Rio Xingu, um dos mais importantes da Bacia Amazônica, respira por aparelhos. Belo Monte só não parou de gerar denúncias de corrupção e problemas para o meio ambiente e para os moradores locais – o vídeo que acompanha este texto traz informações atualizadas. É um elefante branco no meio da maior floresta tropical do mundo.

Mas o que fazer com o monstrengo? “Sou partidário da ideia de transformar Belo Monte no Parque Nacional das Ruínas de Belo Monte, porque ela não tem absolutamente nenhuma utilidade”, sugeriu Tasso Azevedo, um dos criadores do projeto MapBiomas, no encontro que marcou os 10 anos do Movimento Gota D’Água. Foi uma oportunidade para membros fundadores e novos amigos da causa cruzarem visões, olhos nos olhos. 

Continuamos de olho no Xingu, porque uma década se passou e a lição ainda não foi aprendida – basta ver o que está acontecendo em Minas Gerais, que não é obra apenas da Mãe Natureza. Por isso, os pecados de Belo Monte devem ser sempre lembrados por nós. Cada gota conta; e um monte de gotas gritando juntas vira pororoca.