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Ancestrais guardiões do planeta

Ancestrais guardiões do planeta

Por Sandra Braga*

O consenso científico que aponta a África como berço da humanidade significa um ancestral lugar de fala para o momento de luta pelo planeta. De lá vêm os saberes que nos ajudam a cuidar de nossa única morada, hoje metida em crescente desequilíbrio. No país-chave para o contra-ataque, a terra da Amazônia e de outros biomas essenciais, os descendentes de África têm muito a contribuir na urgência global. Ouçam os quilombolas!

A cruzada ecológica integra as agendas cotidianas do povo preto. Sabemos, desde sempre, a necessidade da preservação, do manejo sensato dos recursos naturais, da agroecologia, do respeito às outras espécies que dividem a Terra conosco. Nossos territórios oferecem exemplos e lições, enquanto lutamos pela própria existência.

Parte especial dos quilombolas guarda o Cerrado, segundo maior bioma brasileiro, que se espalha por 11 estados, ou 204 milhões de hectares (23% do território nacional). Ou a “última fronteira agrícola”, como rotulam os insaciáveis chefões do agronegócio, para provar que a devastação se alastra muito além da Amazônia. A monocultura causa a savanização que ameaça a região central, endereço de nossos maiores mananciais.

Sim, é na caixa d’água do Brasil que mora a parte mais dramática da luta fundiária. O Cerrado soma 91% da vegetação do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), epicentro da sanha devastadora, que ataca também centenas de territórios quilombolas, onde vigora o manejo virtuoso das riquezas naturais.

A verdadeira luta ambiental se encontrará na COP28 para conhecer boas iniciativas e discutir venenos e perigos. Não podemos cair na armadilha da falsa transição energética, que gera impactos tão grandes quanto o modelo hoje decadente. 

Ótimo exemplo é a Guerra do Dendê, no Nordeste do Pará, onde o plantio de dendezeiros para abastecer termelétricas com palma de óleo cresce, apesar do histórico da destruição, em processo semelhante, de florestas do Sudeste Asiático. Por aqui, sofrem a biodiversidade e os povos indígenas e quilombolas na Amazônia. Símbolo de energia limpa, as eólicas também impactam negativamente comunidades quilombolas no Nordeste.

Encaramos ainda o perigo decorrente da busca desmedida pelo lucro, que faz girar a espiral dos massacres de lideranças país afora. Denuncia a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) que, nos últimos cinco anos, houve 32 assassinatos do tipo em 11 estados de todas as regiões – incluindo, pela primeira vez, o Centro-Oeste, terra do Cerrado. A média anual de mortes dobrou e ao menos 13 quilombolas foram exterminados no contexto de conflitos fundiários.

Os números constam da segunda edição do levantamento “Racismo e violência contra quilombos no Brasil”, realizado em parceria com a ONG Terra de Direitos, e assusta pela comparação com o primeiro capítulo dessa odisseia sangrenta: de 2008 a 2017, registraram-se 38 homicídios. 

Não melhorou em 2023 (que entrará somente na terceira edição), como provam as mortes de Mãe Bernadete, ialorixá e líder do quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), fuzilada com 25 tiros na sala de casa, em agosto; e de José Alberto Moreno Mendes, o Doka, presidente da Associação de Moradores do quilombo de Jaibara dos Rodrigues, em Itapecuru-Mirim (MA), morto também a tiros em outubro. Além deles, mais dois líderes quilombolas foram assassinados este ano. Os guardiões da floresta estão sob ataque mais uma vez.

Somos sobreviventes – e estaremos na reunião da aldeia ambiental, engajados no combate à emergência climática, para sublinhar nosso papel na proteção dos ecossistemas e na denúncia da violência impiedosa que nos cerca. Mais do que nunca, não há recuo possível.

O mundo precisa conhecer e adotar soluções sustentáveis que desenvolvemos em nossos territórios, a partir de saberes ancestrais. O respeito e a proteção aos territórios dos quilombolas brasileiros estão entre as agendas mais urgentes da crise. Atendê-la é para ontem – em nome da ampla morada dos humanos.

*Sandra Braga é liderança quilombola do Quilombo Mesquita, em Goiás, e coordenadora executiva da Conaq. Está participando da COP28, em Dubai

É preciso deter o holocausto Xokleng

É preciso deter o holocausto Xokleng

Por Kretã Kaingang

O holocausto Xokleng começou em meados do século XIX, quando o Estado brasileiro franqueou nossas terras e vidas a imigrantes europeus, principalmente alemães e italianos. Nossos ancestrais foram caçados como bichos e por muito pouco nosso povo não foi exterminado. Eles viviam numa área que ia do Rio Grande do Sul ao Paraná; em 1914, os sobreviventes foram confinados pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) numa pequena extensão de terra, de 370 km², em Santa Catarina. Antes nômades, passaram a morar nesse campo de concentração disfarçado. 

Com a justificativa de dar segurança jurídica a pequenos agricultores, os parlamentares tentam derrubar, nesta quinta-feira (9/11), os vetos do Presidente Lula ao malfadado Projeto de Lei 2903, incluindo o do inconstitucional “marco temporal”. Na verdade, sua intenção é favorecer os grandes latifundiários, descendentes dos assassinos de nossos antepassados – basta ver os sobrenomes dos deputados federais de Santa Catarina, onde fica a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, o pedaço de chão que nos resta. 

Ao longo do século passado, nossa casa foi invadida e grilada diversas vezes e a matança continuou. Em 1926, o governo catarinense oficializou o crime, reduzindo os seus 370 km² originais para 140 km². Lutamos na Justiça para retomar os 230 km² que nos roubaram; se o “marco temporal” passar a valer, perderemos a batalha, pois o dispositivo passaria a considerar terras indígenas as que estivessem sob sua posse quando da promulgação da atual Constituição, 5 de outubro de 1988.

Não queremos o que nos foi tomado somente porque é o justo: a questão também é de sobrevivência. Nos anos 1970, o governo de Santa Catarina, com as bênçãos da ditadura, construiu barragem em nossas terras, sem nossa autorização ou consulta. O objetivo era conter as enchentes que atingiam as cidades Ibirama, Indaial, Blumenau e Gaspar, por causa do forte fluxo da água dos rios da região durante os períodos de cheia naquela época. A barragem acabou por inundar a única a área cultivável e adequada para a habitação, o que nos empurrou para encostas de morros e beiras de estradas

E, ironicamente, o desmatamento promovido pelo agronegócio tornou inútil aquela barreira que deveria pôr fim às inundações na região, como vêm demonstrando, com eloquência, as últimas chuvas. Como parecem incapazes de aprender com os próprios erros, os ruralistas teimam em repeti-los. Agora querem criar uma barragem que separe o Legislativo, onde se concentram, dos demais poderes, o Executivo – que vetou o “marco temporal” – e o Judiciário, que o considerou inconstitucional

A Constituição está acima dos Três Poderes. Nela, não há uma linha sequer que trate de alguma data final para o reconhecimento de nossos direitos territoriais. O único prazo que ela estabelece está no Artigo 67 dos Atos das Disposições Transitórias (ADCT), cujo texto diz que a União deveria concluir, em cinco anos, a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil. Este é o único “marco temporal” que vale e lá se vão 30 anos de atraso. Não temos mais tempo a perder. E não é só a sobrevivência de nós, Xokleng, e demais povos originários, mas da Humanidade, que está em jogo. Afinal, nós somos os guardiões do clima.

Transição energética e a seca

Transição energética e a seca

Especialistas já avisavam que hidrelétricas poderiam interferir no curso dos rios e na dinâmica dos ciclos de cheia e vazante

Por Ricardo Baitelo*

Será que precisamos mesmo explorar petróleo na Foz do Amazonas para bancar nossa transição energética? A produção de energia eólica e solar cresce de vento em popa e de sol a sol. Como estamos falando de futuro, é bom lembrar que o mito de que “hidrelétrica é energia limpa” ficou no século passado. Belo Monte está aí para provar isso. E o agravamento das mudanças climáticas — que impõe aos rios da Amazônia a maior seca da História e, no início do mês, levou a Hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira, a desligar as turbinas — reforça esse alerta.

Como contra-argumento à construção de Belo Monte, que está matando o Rio Xingu, já falávamos sobre o potencial das fontes renováveis. Quando a obra começou, já havia acontecido o primeiro leilão de energia eólica. Os primeiros leilões de fotovoltaicas saíram entre 2013 e 2014.

Previa-se que sol e vento tivessem uma participação relevante na descarbonização da matriz energética brasileira em 2050, mas isso aconteceu já nesta década. Nos últimos dois anos, as fontes eólica e solar passaram de 30 GW para mais de 60 GW de capacidade instalada. De agosto de 2022 a agosto de 2023, foram quase 20 GW de crescimento de energia solar distribuída, fazendas solares e parques eólicos, avanço que corresponde ao previsto por projeções governamentais passadas para um período de dez anos — superando o que Belo Monte produz por ano.

Entre os fatores que puxaram esse crescimento, estão incentivos às fontes e condições para sua competitividade nos leilões de energia; a evolução do mercado livre e a aprovação de um marco legal para geração distribuída, que passou a ser respaldada por uma lei federal. A redução de incentivos também provocou uma corrida para a instalação de sistemas fotovoltaicos em 2022.

Mas é preciso que haja planejamento e equilíbrio nessa transição. A instalação de parques eólicos vem causando impactos socioambientais no Nordeste, onde, segundo o MapBiomas, 40 quilômetros quadrados de Caatinga foram desmatados só em 2022 para a construção de complexos eólicos e solares. Isso sem falar em contratos injustos de arrendamento de terras.

O próximo passo para que o Brasil descarbonize sua geração de energia a partir de uma transição justa é aperfeiçoar os critérios socioambientais de aprovação e instalação desses projetos, que muito em breve dividirão o protagonismo da matriz brasileira com as hidrelétricas, altamente vulneráveis a secas e cheias extremas, cada vez mais frequentes.

O cenário atual de seca na Região Norte era previsto. Especialistas já avisavam que o regime hídrico seria impactado cada vez mais por fenômenos climáticos, que as hidrelétricas poderiam, no longo prazo, interferir no curso dos rios e na dinâmica dos ciclos de cheia e vazante e que as mudanças climáticas reduziriam a produção de energia de hidrelétricas na Amazônia. Enquanto os dias de sol e calor batem sucessivos recordes, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) paralisa hidrelétricas por causa da seca e usa diesel para suprir a demanda. A estratégia do governo contra a seca foi acionar termelétricas — elevando nossas emissões, agravando a crise do clima e afastando o Brasil do Acordo de Paris.

O problema de situações de crise é que raramente há alternativas milagrosas de curto prazo. Mas podemos aprender com as oportunidades, para que o cenário não se repita — e para que regiões do país não fiquem vulneráveis em cenários de seca e sujeitas ao acionamento de termelétricas poluentes e caras.

Uma transição energética justa pode fazer a diferença na busca do Brasil por um papel de protagonista global. Para isso, ela deve acompanhar um debate que envolva a proteção das populações tradicionais e a biodiversidade. Afinal, os bons ventos precisam chegar ao país inteiro, e o sol brilhar para todos.

*Ricardo Baitelo, doutor em planejamento energético pela Escola Politécnica da USP, é gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente

Amazônia em colapso

Amazônia em colapso

Por Vinícius Leal e Monica Prestes

Focos de queimadas por todo lado, fumaça encobrindo florestas e cidades, rios secando em uma velocidade nunca antes registrada, provocando a mortandade de animais, com recordes de temperatura dentro e fora da água. No desidratado lago de Tefé, no Médio Solimões, interior do Amazonas, onde mais de 120 botos morreram desde a semana passada, a água chegou a 40°C, oito acima da média. Enquanto isso, os termômetros em Manaus bateram o recorde histórico três vezes em uma semana. 

Fenômenos naturais que ensinaram as populações amazônidas a serem resilientes, como as ‘terras caídas’, erosão nas margens dos rios provocada pela vazante, este ano estão ganhando dimensões e contornos dramáticos, com desbarrancamentos engolindo casas e ruas, tragédia que aconteceu em Beruri, no interior do Amazonas, e que ameaça outras comunidades às margens dos rios Purus, Amazonas e Solimões. 

Cidades inteiras, cujo acesso só se dá pelos rios, correm o risco de ficar isoladas – 40 dos 62 municípios do Amazonas já decretaram emergência. Único meio de transporte em muitas delas, barcos e balsas estão encalhados nos leitos dos rios, carregados com alimentos, mantimentos e medicamentos que, em breve, devem faltar na mesa dos mais pobres e pesar no bolso de quem ainda puder pagar por eles. E sabe o que já está faltando? Água potável. Na maior bacia hidrográfica do mundo. 

Um cenário apocalíptico que é resultado das mudanças climáticas somadas ao aquecimento anormal do Atlântico, e que ainda devem receber o reforço do El Niño nos próximos meses. Fórmula que transformou a tragédia, antes anunciada, numa rotina, com uma sucessão de notícias e cenas estarrecedoras, que chocam até quem é da região e convive com o ciclo das águas todos os anos, e trazem um alerta: a Amazônia está entrando em colapso.

 De 2009 pra cá, a Amazônia vem enfrentando sucessivos recordes de cheias. As enchentes extremas do Rio Negro – quando seu nível ultrapassou a marca de 29 metros –, que aconteceram três vezes entre 1989 e 2008, triplicaram nos últimos 15 anos. Apesar dos inegáveis impactos das cheias, é a vazante dos rios que mais castiga a Amazônia. E os intervalos entre as secas extremas também vêm diminuindo. 

Desde 1902, quando a medição do Rio Negro começou a ser feita no porto de Manaus, a cota mínima só ficou abaixo de 15 metros nove vezes. Em duas dessas ocasiões – 2010, ano da maior seca já registrada, e 1963 – o Negro chegou a menos de 13 metros. O diferencial de 2023 é que em nenhuma dessas secas a vazante se deu num ritmo tão intenso: desta vez, o rio chegou a baixar mais de 30 centímetros por dia durante duas semanas consecutivas. 

Com o rio em 14,90 metros, esta vazante já é a 9ª maior em 121 anos e o rio deve seguir baixando até meados de novembro. Com chuvas abaixo da média nos próximos três meses, os impactos podem se estender até 2024 e os rios ‘podem não se recuperar’ nem no próximo ciclo de cheia, alertam pesquisadores. Se as previsões se confirmarem, os rios Negro, Solimões, Purus, Madeira e Amazonas devem ter a maior seca da história, afetando milhões de vidas, humanas e não humanas – a fauna é extremamente sensível, dependente das águas. Só no Amazonas já são mais de 257 mil pessoas afetadas e podemos chegar a 500 mil em toda a região. 

O cenário é dramático também na bacia do Rio Branco, no Acre, onde há falta de água potável e a produção rural despencou. Em Rondônia, a vazante do Rio Madeira levou o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a suspender as operações na Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, a quarta maior do país – mesmo risco de paralisação que vem sendo monitorado nas hidrelétricas do Amapá.

Até o principal vetor de desmatamento da Amazônia está sendo afetado: no sudeste do Pará, o pasto morreu e produtores de gado não têm como alimentar os animais. Mais de 100 já morreram de fome, numa estiagem que castiga há meses as calhas dos rios Araguaia e Tocantins. Segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), 79 municípios da Região Norte tiveram mais de 80% de suas áreas agrícolas impactadas pela seca. E quando os ‘rios voadores’, que alimentam o agronegócio do Centro-Oeste, também secarem? 

Especialistas alertam que essa tragédia sem precedentes que assola a região é uma pequena amostra do que pode acontecer quando a Amazônia atingir o ponto de não retorno. O que, pelos cálculos da ciência, está bem perto de se concretizar. Já desmatamos 19% da floresta e o ponto de inflexão se dará quando atingirmos entre 20% e 25% de desmatamento no bioma.

Confirmando as previsões da ciência, indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhos estão entre as primeiras populações afetadas. É o que chamam de racismo ambiental: apesar de serem responsáveis pela proteção de 80% da biodiversidade do planeta e de mais de um terço das florestas do Brasil, os povos tradicionais seguem à margem dos debates e decisões políticas que os impactam. 

Foi assim com o Projeto de Lei (PL) 2903, proposta recheada de inconstitucionalidades que abre as terras indígenas, últimas barreiras contra o desmatamento, para o agronegócio e mineradoras – o que deve agravar ainda mais as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e os impactos das mudanças climáticas. O projeto de lei, que passou pelo Senado e foi enviado para sanção presidencial em uma velocidade maior do que a vazante dos rios, teve o apoio da maioria da bancada da Amazônia no Senado: apenas seis dos 27 senadores dos estados da Amazônia Legal votaram contra a proposta, que foi rechaçada pelos movimentos indígena, quilombola e extrativista, que apoiaram a eleição de Lula e agora esperam que ele vete integralmente o texto.  

Outra ameaça que pode agravar a crise ambiental na Amazônia é a decisão do governo federal de explorar petróleo no Amapá, que vai de encontro às metas assumidas pelo Brasil no Acordo de Paris e a todos os alertas do IPCC e da Agência Internacional de Energia para evitar o aumento da temperatura média global.  

A demarcação e proteção de terras de povos tradicionais, a elaboração de planos de mitigação baseados na justiça climática, a promoção de uma transição energética sustentável e a construção de um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia que considere direitos e conhecimentos dos povos tradicionais são parte da solução. Mas é preciso agir rápido, pois a roda do fim do mundo parece já ter começado a girar. Sem água e sufocada, – não pela falta de oxigênio, como na pandemia, mas pela fumaça das florestas em chamas – até quando a Amazônia terá fôlego para resistir?

Raposa Serra do Sol O Legado da Demarcação

Raposa Serra do Sol O Legado da Demarcação

Os povos indígenas venceram mais uma batalha no Supremo Tribunal Federal na semana passada, que fez o óbvio e considerou a tese do “marco temporal” inconstitucional. Mas a guerra não terminou. Os ministros ainda vão ter que se debruçar sobre as condicionantes propostas por Alexandre de Moraes e Dias Toffoli – como, por exemplo, definir as indenizações dos ocupantes de suas terras e quem as ocupou por “boa fé” – e novamente enfrentar a insaciável bancada ruralista, que promete contra-atacar no Congresso. Em defesa dos povos originários contra essas propostas, um artigo assinado por Enock Taurepang, vice-coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), e Alcebias Sapará, vice-coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), conta como a Terra Indígena Raposa Serra do Sol se tornou um dos melhores exemplos de que a política de demarcação é bem-sucedida e a melhor solução para produzir preservando o meio ambiente.

*Por Enock Taurepang e Alcebias Sapará

A Raposa Serra do Sol está chegando à maioridade em grande estilo. Basta comparar o que ela é hoje ao que era há 18 anos para entender a importância da demarcação de terras indígenas. Lá não tem criança dormindo na rua ou gente na fila do osso. Os invasores chegaram à região a partir dos anos 1990, derrubando a floresta, arruinando a terra e envenenando os rios. Como não tínhamos o que comer — não havia mais peixe, caça e solo fértil —, éramos obrigados a trabalhar para arrozeiros ou garimpeiros. Nessa época, poucos se preocupavam se estávamos passando necessidade.

Não foi fácil arrumar a casa. Em 2005, quando foi homologada a demarcação, as fazendas que ocupavam a Raposa Serra do Sol tinham virado terra arrasada: a água estava poluída, puseram todas as construções abaixo e envenenaram a última safra de arroz. E os invasores foram devidamente indenizados. Hoje cinquentenário, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) nasceu da necessidade e amadureceu na luta. Cada vitória e derrota serviu de experiência.

A tese do “marco temporal”, ora em avaliação no Supremo Tribunal Federal (STF), foi cogitada como forma de garantir a demarcação de nosso território de forma contínua — mas sequer chegou a ser utilizada. O decreto que homologou a Raposa Serra do Sol em 2005 foi alvo de várias contestações judiciais, mas em 2009 parecia que o STF havia batido o martelo definitivamente: o “marco temporal” só valeria para aquele caso.

Aprová-lo agora seria não apenas uma incoerência, como uma punição para quem age corretamente. Afinal, revitalizamos nosso lar seguindo o que prevê a Constituição: usamos a terra somente para exercer nossa cultura e retirar nosso sustento. Nossos costumes ajudam a preservar o meio ambiente porque fazemos parte do ecossistema local; não vivemos na ou da floresta, mas com ela. Já o “marco temporal” é inconstitucional e antinatural.

Em 22 de agosto, durante a nossa sexta assembleia, aprovamos os nossos Protocolo de Consulta e Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA). Elaborados coletivamente, são estes dois documentos que guiarão, a partir de agora, nossas ações e decisões. Daremos atenção especial à educação, para reforçar o ensino da língua materna de cada povo e o uso da medicina tradicional. Se vivemos da mesma forma que nossos ancestrais há milênios, é porque deve ser uma boa forma de viver, não? Nossas terras se prestam naturalmente à agricultura e à criação de animais. Não precisamos desmatar ou modificar o solo para lhe impor uma monocultura invasora.

Por outro lado, como qualquer cultura, assimilamos costumes. Não estamos mais nos tempos da caravela: se Cabral chegou aqui em 44 dias, hoje um português chega à Bahia em pouco mais de oito horas e meia. Daí a decisão de, desde sempre, investirmos na educação formal dos mais jovens. Hoje, nossos departamentos de comunicação e jurídico são formados por jornalistas e advogados indígenas. Aliás, foi do último que veio Joenia Wapichana, primeira mulher indígena deputada federal e primeira mulher presidente da Funai. Estamos na linha de frente até na luta contra o machismo.

Somos cinco povos diferentes vivendo num território do tamanho de Sergipe. O mundo é cheio de exemplos de conflitos envolvendo situações semelhantes. Os povos macuxi, wapichana, taurepang, patamona e ingarikó têm seus próprios costumes, mas as diferenças nos atraem, em vez de nos repelir. A união e o respeito são a base de nossa relação; e a Raposa Serra do Sol, a prova concreta da eficiência da política de demarcações.

* Enock Taurepang é vice-coordenador geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização que representa nove povos em 35 terras indígenas do estado, incluindo a Raposa Serra do Sol, Alcebias Constantino Sapará é vice-coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira

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