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Precisamos falar de racismo ambiental

Precisamos falar de racismo ambiental

O racismo ambiental também é estrutural: já percebeu que quando se fala de mudanças climáticas, sempre aparece o urso polar se equilibrando num toco de iceberg? Ninguém se lembra que o primeiro mamífero extinto foi o rato de cauda em mosaico, um roedor marrom, endêmico de uma ilhota do Pacífico engolida pela subida do nível dos oceanos. Da mesma forma, o mundo inteiro acompanha sobressaltado a destruição causada por incêndios na Europa e nos Estados Unidos (país também ameaçado pelos furacões que assolam o Atlântico Norte). No entanto, o Hemisfério Sul, banda pobre do planeta, é o mais afetado e o menos responsável pelo desequilíbrio climático.

Essa relevância seletiva também afeta o reconhecimento dos povos que vivem abaixo da Linha do Equador e do Trópico de Câncer no combate a esse inimigo comum da Humanidade, como observa Ellen Acioli, indígena sateré-mawé e coordenadora programática do Vozes pela Ação Climática (VAC). Por isso, seis entidades, WWF Brasil, Hivos, Fundación Avina, SouthSouthNorth (SSN), Akina Mama wa Afrika e Shack Dwellers International (SDI) criaram o VAC, programa que apóia e divulga ações promovidas contra as mudanças climáticas em sete países: Brasil, Bolívia, Indonésia, Paraguai, Quênia, Tunísia e Zâmbia.

Se, ao menos no papel, acabaram os tempos do colonialismo – quando Ocidente fazia das nações mais pobres sua despensa — seus efeitos permanecem. É o que se chama de colonialidade; é como se a estrutura de poder colonial culturalmente ainda vigorasse (através do consumismo insano que tomou o planeta), mesmo séculos depois do fim do período colonial e da independência dos países explorados. Descolonizar é coisa do passado; agora é preciso decolonizar as relações entre países.

O VAC elegeu associações comandadas por mulheres e jovens da Amazônia Legal como suas porta-vozes, não só porque os povos de lá estão entre os mais atingidos, como porque há séculos eles vêm combatendo a destruição da região com ensinamentos passados de mãe para filha. É uma tecnologia, antes desprezada, que começa a ser reconhecida no mundo inteiro como a mais eficaz.

Um trabalho de décadas de conscientização sobre o manejo do pirarucu para a sua pesca sustentável, na comunidade de Tapará Mirim (Bacia do Tapajós, PA), está indo por água abaixo. Motivo: as secas constantes que vêm castigando a região. Na comunidade de São Luiz Gonzaga, onde a Associação Comunitária de Educação em Saúde e Agricultura (Acesa) cultiva agroflorestas no Médio Mearim (MA), não só os peixes estão sumindo, mas também pássaros antes abundantes, como beija-flores, bem-te-vis e anabus. Até as borboletas bateram asas para bem longe.

Por outro lado, a Arraia Mãe, encantado que protegia o Lago Verde de Alter do Chão, balneário do Tapajós — que havia se refugiado em outros mundos, assustada com o turismo predatório — prepara sua volta ao lar. Se não fisicamente, ao menos no imaginário popular, por meio do trabalho da Associação de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós. A colonialidade também se combate com narrativas, diz Ianny Borari, conselheira fiscal dessa entidade.

Combater a violência contra a mulher indígena e o racismo, promovendo o acolhimento e o fortalecimento da autoestima, além de contribuir para o empoderamento econômico e político e para a defesa de seus territórios, são os principais objetivos das Suraras. Estes serão alguns temas que elas, a VAC e outras organizações parceiras levarão à COP27, que acontece até 18 de novembro de 2022 em Sharm El Sheikh, no Egito. Se quisermos salvar o planeta, essas ideias precisam ser passadas adiante. Decolonizar é uma questão de sobrevivência.

É fogo!

É fogo!

Parece notícia do ano passado ou retrasado, mas o Hemisfério Norte está pegando fogo e recordes de temperatura são batidos todos os dias. As projeções para o Brasil são igualmente preocupantes – a gente fala disso mais adiante. Até segunda-feira (18/7), Portugal registrou 659 mortes por causa das altas temperaturas; na Espanha, já morreram pelo menos 500 pessoas e se espera que no fim de semana passe dos 44° C em Sevilha. A área destruída pelos incêndios no continente já é maior que a de 2021 e poderá superar a de 2017, a maior já registrada. É fogo!

Na Inglaterra, os termômetros marcaram 40,2°C em Londres, um calor nunca visto no país, praticamente uma febre alta – segundo as previsões, isso só aconteceria em 2050. Para quem vive num país tropical já é o maior perrengue; agora imaginem para um cidadão inglês médio, que mora em casas com janelas minúsculas, não tem ar-condicionado ou sequer um ventilador em casa e não pode nem pegar um refresco em algum prédio com sistema de refrigeração central, já que são raros? 

A coisa está tão feia na França que fazendeiros estão fazendo a colheita à noite, para evitar que o calor dos tratores cause incêndios. No sudoeste do país, mais de 100 km² queimaram e obrigaram 16 mil pessoas a fugirem de suas casas. A Terra gira em torno de seu eixo; mas como ele é ligeiramente inclinado, o sol bate mais diretamente no sul do que no norte. Por isso, faz mais frio por lá. Por isso os europeus têm se empenhado tanto em reduzir suas emissões de efeitos do gás estufa. A invasão da Ucrânia pela Rússia puxou o feio de mão do processo, pois eles estão sendo obrigados a usar mais carvão na produção de energia.

As mudanças climáticas são uma consequência do aquecimento global. É por causa desse desequilíbrio que, por exemplo neva com cada vez mais frequência no sul do país. Funciona assim: o Brasil recebe da Antártida correntes de ar frio e manda para lá massas de ar quente. É uma espécie de sintonia fina que pode ser bagunçada à menor variação. Como tem feito um calor anormal na Região Sul – as secas estão aí como prova – há uma perturbação nesse delicado sistema de trocas, que abre espaço para a entrada de frentes frias cada vez mais violentas. Mas, diferentemente do pessoal do norte, temos uma matriz energética relativamente limpa. O que pega é a famosa “vontade política”.

Como prometemos no primeiro parágrafo, vamos adiantar a previsões para as próximas temporadas de incêndio no país. E elas são de arrepiar. Até meados do mês passado, 6. 220 km² de Amazônia já tinham sido carbonizados – contra 4.400 km² do mesmo período em 2021. O número é 30% superior à média histórica para o primeiro semestre e o Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe) detectou 2.562 focos de calor, a maior quantidade desde 2007. No ano passado, a maior floresta tropical do mundo perdeu 18 árvores por segundo, mas as autoridades responsáveis prometem se empenhar para superar a marca.

Para começar, inventaram a pedalada pirotécnica: criaram um grupo para definir o que pode ou não ser classificado como desmatamento e queimada. A tal comissão de notáveis não tem sequer um nome ligado ao Inpe, órgão reconhecido internacionalmente pela sua excelência, mas gente ligada aos ministérios da Defesa, da Justiça e Segurança Pública, da e da Economia. Ou seja, só gente que entende do riscado – no sentido de riscar florestas do mapa. E a cereja encharcada de querosene do bolo: o governo gastou só 18% do orçamento destinado à prevenção e ao combate a incêndios. O pior é que, como a situação piora a cada ano, esses ainda serão considerados os bons velhos tempos, caso a gente não forme nosso próprio corpo de bombeiros. Os hidrantes são as urnas.

 

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Só o Brasil real salva o Brasil do Brasil oficial

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“O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”, dizia Machado de Assis, em 1861. Não é de hoje que quem manda no Brasil (o país oficial) não está à altura de seu povo (o real); mas raras vezes essa disparidade ficou tão evidente quanto agora. Enquanto o governo toma decisões que agridem nossa dignidade e nos isolam cada vez mais do resto do mundo, cidadãos brasileiros buscam soluções para essas adversidades e ganham até reconhecimento internacional. Ao mesmo tempo em que descobrimos que 33 milhões de pessoas, quase meia França, passam fome no Brasil, a etnobióloga Patrícia Medeiros é premiada naquele país por seus estudos sobre o uso de plantas silvestres como alimento. Não só comemos pouco, como comemos mal.

A pernambucana de 35 anos, que é professora da Agroecologia e Engenharia Florestal na Universidade Federal de Alagoas (Ufal), foi uma das 15 ganhadoras do International Rising Talents, concedido a jovens cientistas mulheres pela Fundação L’Oréal, em parceria com a Unesco. “Hoje nós comemos pouquíssimas coisas. No Brasil e no mundo, nossa alimentação é baseada em poucas espécies convencionais”, diz Patrícia. O problema é que esses alimentos têm deficiências de micronutrientes, como ferro, cálcio e outros minerais fundamentais para uma boa nutrição. Já as plantas silvestres são ricas nessas substâncias.

No cardápio elaborado por ela entram araçá, jenipapo, taioba, cambuí e ouricori, que muitas vezes não chegam aos nossos pratos por puro preconceito. Esse menu mais variado ajudaria a atacar mais duas calamidades: a perda da biodiversidade – muitas dessas plantas estão dando espaço para monoculturas como o da soja, do milho e da cana-de-açúcar – e o uso cada vez mais desmedido de agrotóxicos e fertilizantes químicos, já que são naturalmente adaptadas aos seus biomas nativos.

Em seus estudos, Patricia mira outro problema que vem sendo solenemente ignorado pelo “país oficial”: as consequências das mudanças climáticas. “Quanto mais diversas forem nossas opções alimentares, há mais chances de ter elementos com os quais contar no futuro incerto. Há espécies mais resistentes às altas temperaturas e, principalmente, à ausência de chuvas”, explica. E foi justamente a preocupação com o caos que pode ser causado pelo desequilíbrio climático que rendeu a outro brasileiro, o climatologista Carlos Nobre, uma honraria inédita: ser o único brasileiro eleito para a Royal Society, a academia de ciências mais antiga do mundo, sediada em Londres – Dom Pedro II chegou lá antes, mas por causa de seu pistolão de imperador (o “país oficial”), não por suas pesquisas.

Um estudo publicado em março pelo jornal científico “Nature Climate Change” mostrou que, nos últimos 20 anos, a maior floresta tropical do mundo, também vital para ajudar a regular o clima do planeta, vem demorando cada vez mais para conseguir se recuperar dos longos e cada vez mais constantes períodos de seca. Isso está a deixando mais perto de seu ponto de inflexão, quando não terá mais capacidade de regeneração.

Nobre foi o primeiro a calcular este limite, em 2007: isso aconteceria se 40% da Floresta Amazônica fossem abaixo. Dez anos depois, as estimativas foram refeitas, mostrando-se ainda mais preocupantes: 20% de destruição decretaria sua sentença de morte – ou mesmo aterradoras, se levarmos em conta que, segundo a ONG The Nature Conservancy, essa porcentagem já foi atingida. “Nos últimos três anos e meio, com o atual governo federal do Brasil, vimos um descontrole proposital, uma política de expandir a agropecuária, de levar a mineração a tomar tudo ali, áreas indígenas, protegidas, tudo. Nós voltamos, por incrível que pareça, para as décadas de 1970 e 1980”, denuncia Nobre.

O Brasil real dos povos originários é a nossa maior esperança de salvar a Amazônia. O papel das terras indígenas tem sido fundamental: segundo um levantamento da plataforma Mapbiomas, entre 1985 e 2020 só 1,6% da perda de cobertura florestal no país se deu nesses territórios, e quase 20% de toda a vegetação nativa do país estão localizados neles. Não à toa, enquanto o presidente da República foi barrado no último encontro do G7, Sonia Guajajara, uma das vozes mais ativas do movimento indígena, entrou para a prestigiada lista das cem pessoas mais influentes do mundo da “Times”.

Outro brasileiro lembrado pela revista americana foi o pesquisador Tulio de Oliveira, descobridor variante Ômicron do novo coronavírus. Desnecessário relembrar o desempenho catastrófico do “país oficial” no combate à Covid-19. Mas um estudo do Banco Mundial diz que a pandemia fez o Brasil andar dez anos para trás. Segundo o relatório, desperdiçamos 40% do potencial de nossas crianças – o PIB do país poderia ser 158% maior, caso o aproveitamento fosse de 100%. As razões são diversas, vão da falta de emprego, educação e alimentação deficientes, às desigualdades de gênero e raciais.

Além disso, os cortes promovidos pelo governo na área de ciência e tecnologia ainda tem provocado uma fuga de cérebros. Tulio de Oliveira, por exemplo, é diretor do Centro de Resposta e Inovação Epidemiológica da África do Sul. O Banco Mundial estima que o Brasil precisaria de 60 anos para alcançar o nível de capital humano alcançado pelos países desenvolvidos há três anos. É muito tempo para recuperar. O capital humano é outro recurso natural do qual somos ricos, mas que também não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar. É hora de o Brasil real salvar o Brasil do Brasil oficial.

 

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Tragédia anunciada aos quatro cantos

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Por Gabriela Helena Borges*

Eu morava no Recife e tinha 8 anos quando percebi que o córrego que corria em frente à minha rua não vinha de um rio, pelo cheiro ou pelas queixas da minha mãe ao me ver brincando na porta de casa. Com 10, descobri o significado de desabamento, quando o teto de casa caiu na cabeça do meu pai. Já aos 12, ouvia a chuva lá fora e pensava: hoje não vai ter aula – não porque a escola fecharia ou algo do tipo, mas por entender que na minha condição, se chovia, só restava à gente rezar. Sorte de quem pode ouvir falar sobre a previsão do tempo sem sentir um arrepio por saber que o pior pode estar por vir.

Hoje, aos 23 anos, vivo no sertão, em Garanhuns, e acompanho de longe angustiada o que acontece por lá. Vejo os amigos participando dos esforços para ajudar os mais necessitados e tenho vontade de me juntar a eles. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, Recife é a capital brasileira mais vulnerável aos efeitos do aquecimento global e a 16ª cidade do mundo. Os dados são de 2014, mas nem todos têm acesso a essa informação: “Faleceu minha irmã, meu cunhado… faleceram 11 pessoas da minha família, foi difícil. Difícil mesmo. Não esperava isso”, desabafou o recifense Luiz Estevão de Aguiar, que perdeu os parentes em Jardim Monte Verde, área limítrofe entre o Recife e Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana.

Mais de 100 pessoas morreram até esta quarta-feira (1/06). São vítimas daqueles que conheciam o risco, poderiam ter tomado providências, mas não fizeram nada. Isso quando não dividem a culpa com quem perdeu a vida, entes queridos e os poucos bens materiais que tinham: “A população poderia colaborar também, evitando. Nós sabemos da dificuldade, de fazer sua residência em locais que é sabidamente provável, em havendo um excesso de precipitação, a tragédia se fazer presente”, disse o presidente Bolsonaro em fevereiro, quando catástrofe semelhante atingiu São Paulo. Uma política consistente de construção de moradias para pessoas que são obrigadas a criar seus filhos em áreas de risco, que é bom, não há.

Não é difícil explicar os motivos pelos quais a cidade, que acompanhou parte da minha existência, hoje chora pela vida inteira que poderia ter sido, e que não foi, como disse o poeta Manuel Bandeira. A tragédia é anunciada aos quatro cantos, até quem não queria, viu. A primeira enchente registrada no Recife aconteceu em 1632, muito antes de eu sonhar em nascer. De lá pra cá, a coisa só piorou. Isso porque, de acordo com a “Análise de Riscos e Vulnerabilidades Climáticas do Município”, lançado na Conferência Brasileira de Mudanças Climáticas (CBMC), o seu litoral tem 45,7% de sua extensão sob zona de alta vulnerabilidade; ou seja, a região será rapidamente atingida com a subida do nível do mar.

Além disso, o relatório diz que a cidade, erguida sobre manguezais, não tem infraestrutura de drenagem suficiente e que as chuvas irão intensificar os danos nas áreas de ocupação inadequadas. Essa soma de fatores resulta numa projeção de aumento de risco de 68,44% até 2040. Porém, temos que ter cuidado para que esses dados não sirvam de justificativa para afirmações do tipo “infelizmente, essas catástrofes acontecem, um país continental tem seus problemas”, também feita pelo presidente.

Como se os fatos de Bolsonaro ter extinguido a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, pouco depois de sua posse; cortado em 93% os gastos para estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas; e reduzido em 45,6% a verba prevista no orçamento de 2022 para combate a desastres – que vem em queda livre desde 2019 – não tivessem nada a ver com isso.

O descaso não é apenas na esfera federal, é claro. A prefeitura do Recife ignorou o aviso sobre o risco de chuvas intensas e deslizamentos, emitido na quarta-feira passada (25 de maio) pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Mas antes de me mudar para Pernambuco eu, que nasci em Minas Gerais, morei na Bahia; e todo mundo viu o que aconteceu nesses dois estados na virada do ano. As chuvas no Nordeste já afetaram mais de 1,2 milhão de pessoas em apenas seis meses, segundo levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM).

O direito à moradia está na Constituição Federal desde 1988 e é um dos deveres do poder executivo. Não temos mais tempo para deixar em segundo plano a construção e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, por isso é necessário um investimento constante em políticas públicas neste sentido. A negação desse direito é um problema que se arrasta por gerações e, apesar de não sabermos exatamente quando vai acabar, há uma data que se apresenta como um possível início desta solução: em outubro, com as eleições deste ano. Nós precisamos ter mais voz ativa e o voto pode decidir o nosso futuro. O nosso maior abaixo assinado está nas urnas!

*Não binárie, graduanda em Psicologia, ativista e pesquisadora, Gabriela Helena Borges atua nas mídias sociais da Uma Gota no Oceano e como comunicadora no GT de Gênero da ONG Engajamundo.

 

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O país do futuro

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E não é que finalmente o Brasil cumpriu a profecia e se tornou o país do futuro? Infelizmente, não o da aurora cintilante de uma nova era, como preconizado por Gene Roddenberry, criador da série “Jornada nas estrelas” (“Star trek”); está mais para um cenário apocalíptico à “Mad Max”. Quando foi concebido em 2015, o Acordo de Paris tinha 2050 como data de referência; porém, os últimos relatórios do IPCC da ONU adiantaram esse relógio do Juízo Final em 20 anos. Se 2030 é a data limite para a Humanidade evitar o pior, aqui ele já chegou. Por ironia do destino, só foi possível realizar essa façanha (sic) graças a um governo que prometeu que nos faria regredir 40, 50 anos.

Estudos de entidades como o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e o Woodwell Climate Research (WHRC) atestam que a mudança no ciclo de chuvas já é uma realidade brasileira. Ondas de calor, os temporais que levaram morte e destruição a 11 estados brasileiros, na virada do ano, e a seca que assola o sul do país desde 2019 serão cada vez mais frequentes e imprevisíveis. Ponha as barbas de molho.

Ganha um guarda-chuva ou uma sombrinha quem disser qual a principal causa. Sim, ele mesmo, o suspeito de sempre, o desmatamento. E, segundo o Ipam, só na Amazônia ele aumentou 56,6% de agosto de 2018 a julho de 2021, em comparação com o mesmo período entre 2015 e 2018. Em janeiro, o Imazon revelou que o desflorestamento na região em 2021, quando 10.362 km² de verde desapareceram – o equivalente a meio Sergipe –, foi o pior dos últimos dez anos. “É um fato que a Amazônia bombeia água para várias regiões do mundo, inclusive o Sudeste brasileiro. Existe uma relação direta entre desmatamento e disponibilidade de água que chega para outras regiões”, explica André Guimarães, diretor-executivo do Ipam e integrante da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.

Uma única árvore pode mandar mil litros de água para a atmosfera por dia. Embora o desmatamento explique os cada vez mais longos e frequentes períodos de estiagem, de onde vem tanta chuva? Da mesmíssima causa, conforme conta o meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador-geral do Cemaden: “A quantidade de água suspensa na atmosfera hoje é maior do que tínhamos séculos atrás. Ou seja, o mesmo fenômeno meteorológico hoje consegue provocar mais chuvas que anos atrás”. O fenômeno é outro efeito colateral do aumento da temperatura média global: a atmosfera está mais quente e, por causa disso, retém mais água. E as florestas tropicais esfriam o planeta em mais de 1°C, de acordo com um estudo realizado pela Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos.

Já o Inmet coletou dados em 271 estações meteorológicas espalhadas pelo país e concluiu que a temperatura e os temporais aumentaram nas últimas décadas. Só na cidade de São Paulo, comparando a década passada com a de 1991 a 2000, o número de dias com chuva acima de 50 mm diminuiu (de 16 para nove dias), mas pés d’água acima de 80 e 100 mm aumentaram (de dois para sete dias). O calor também aumentou: as madrugadas estão 1,6°C mais quentes na capital paulista, em média, do que há 20 anos. “A alteração no padrão de precipitação fica ainda mais evidente quando comparada à última década com o período inicial de análise (1961-1970)”, diz o relatório.

Este futuro/presente distópico já causa – ou ao menos devia causar – pesadelos em quem tira o seu sustento do campo. “Existe principalmente uma mudança de distribuição de chuvas. A chuva está chegando cada vez mais tarde e acabando cada vez mais cedo. O produtor acaba tendo que plantar mais tarde, prejudicando a produtividade. E não adianta chover o mesmo volume se a planta e o solo ficam com mais sede”, explica Ludmila Rattis, pesquisadora do WCRC e do Ipam.

Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e com a Universidade de Bonn, na Alemanha, publicada em maio do ano passado na revista “Nature Communications”, estimou um prejuízo de R$ 5,7 bilhões por ano até 2050, causado pelo desmatamento na Amazônia. Duvidam? Pois na semana passada, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) baixou a estimativa para o PIB da agropecuária em 2022 de 2,8% para 1%. Ou seja, a previsão já está se tornando realidade.

É o famoso tiro no pé: o agronegócio é um dos grandes responsáveis pela destruição da maior floresta tropical do mundo. A Amazônia se aproxima a passos largos de seu ponto de inflexão, quando nada mais poderá salvá-la. Um amanhã sombrio que está logo ali, no país do futuro que se fez presente. O apressado come cru, diz o velho ditado; e, pelo andar dessa máquina do tempo com pinta de trem fantasma, pode nem ter o que comer.

 

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