O passo do jabuti

O passo do jabuti

Está difícil, né? A gente sabe. Para todo lado que se olha parecem pipocar mil notícias ruins e, justo quando achávamos que estaria passando, o Brasil entra no pior momento da pandemia. Às vezes dá vontade de correr para as montanhas. Mas, espera. Dá uma parada rápida no home office, respira fundo, coloca uma música boa e vem que esse texto é sobre renovar as energias e fazer uma reflexão.

Você sabia que temos um exemplo super positivo de organização, planejamento e estratégia contra o coronavírus? Isso mesmo, aqui no Brasil! Difícil de acreditar, né? Mas não é fakenews. No interior do Mato Grosso, o povo Kuikuro se organizou para fazer isolamento com auxílio de médicos durante o último ano e agora eles estão finalmente sendo vacinados. A comunidade tem 600 pessoas, todas sobreviveram à pandemia e agora estão imunizadas.

Você pode até falar: “Ai, gotas, o que eu tenho a ver com um povo indígena do interior do Mato Grosso?”. Por isso, te convidamos a olhar mais de perto. Você conhece os Kuikuro? Então nos permita contar um pouquinho sobre eles. Pesquisas arqueológicas encontraram registros de que este povo vive desde os anos 950 DC na região que hoje se chama Mato Grosso. A jornada dos Kuikuro vem de longe. Ao longo desses séculos, eles enfrentaram muitos problemas e a Covid-19 não é o primeiro vírus a cruzar o caminho deles.

Mil anos depois dos primeiros registros, nos anos de 1950, os Kuikuro enfrentaram uma epidemia de sarampo que dizimou metade de sua população. Foi tão catastrófico que eles precisaram abandonar uma aldeia. Seu nome era Lahatuá ótomo, e até hoje alguns anciãos ainda lembram deste triste capítulo em sua história. Mas, como prometido, esse texto é para falar de coisa boa. Isso tudo é para explicar que os Kuikuro sobreviveram ao sarampo. Sabe como? Com organização, coordenação, trabalho em equipe e… acreditando na ciência.

Na década de 1960 foram feitas campanhas de vacinação e o povo não apenas sobreviveu, como se fortaleceu e cresceu. Eles começaram a reocupar seus territórios tradicionais, que de fato nunca tinham sido abandonados, já que eram continuamente visitados e utilizados por conterem importância histórica e espiritual. E, já nos anos 1980, o crescimento populacional permitiu o surgimento de novas aldeias.

Quarenta anos depois, um novo vírus aparece. Mas agora os Kuikuro já têm todo o conhecimento que os anciãos traziam da experiência de Lahatuá ótomo. Em comum acordo entre todos, eles se isolaram e construíram uma casa para manter o distanciamento daqueles que apresentassem os sintomas. Também fizeram contato com especialistas em saúde indígena, compraram alimentos, álcool em gel, máscaras, cilindros de oxigênio e remédios para febre. Feito o estoque, eles se fecharam em suas aldeias até a chegada da vacina. Ela chegou este mês. Os Kuikuro receberam a segunda dose da vacina e a liderança Yanama Kuikuro deu o recado no Jornal Nacional: “O povo kuikuro não acredita em fake news. Acreditamos na ciência e tomamos a vacina”. E o técnico de enfermagem da aldeia, Kauti Kuikuro, explicou o segredo do sucesso: “Graças a nossa organização ninguém saiu para cidade, ninguém precisou fazer oxigênio, ninguém foi a óbito também”.

Ser Kuikuro — ou Kayapó, ou Guajajara, ou quilombola — passa por um conceito muito importante: a vida em comunidade, em busca do bem comum. Viver numa comunidade tradicional envolve essa noção de que as decisões são pelo bem do todo e que todos têm sua parcela de contribuição. Talvez seja difícil para uma pessoa que vive na grande cidade absorver completamente essa ideia, ainda mais quando estamos distantes fisicamente uns dos outros. Mas esse é um ensinamento muito importante que as comunidades tradicionais passam: para alcançar o bem comum é preciso um esforço conjunto e coordenado de todos.

E é porque tanto indígenas quanto quilombolas entendem que é preciso o todo, que eles foram ao Supremo Tribunal Federal no ano passado. Não adianta apenas as aldeias e os quilombos fazerem sua parte, os governos precisam fazer a parte deles também. E assim, as lideranças nacionais dessas duas comunidades foram ao Supremo para cobrar do governo federal um plano, o que gerou uma ação para indígenas e outra para quilombolas. Ora, os caciques conseguiram traçar e executar um plano em suas aldeias. Por que um presidente – e toda a equipe de inteligência que ele dispõe – não conseguiria?

Esse tipo de ação que foi aberta se chama Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). O nome é complexo e o processo também. Preceitos fundamentais são questões intrinsecamente conectadas aos valores mais profundos da sociedade, são como os alicerces da Constituição. Mexer em alicerces é algo muito difícil, delicado, que deve ser feito com paciência e atenção para que as coisas não desmoronem. Mas vamos combinar que, para quem veio lá de 950 dC e já enfrentou outras pandemias, a visão de tempo não é a mesma do imediatismo cibernético da maioria das pessoas.

“A gente é igual ao passo do jabuti: observando, vendo nossa estratégia para poder avançar”, diz a liderança Munduruku Alessandra Korap, primeira mulher brasileira a receber o prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, no ano passado, quando também recebeu o Taz Panter Preis, premiação alemã para defensores do meio ambiente.

Veja como realmente parecemos falar línguas diferentes num mesmo país: no dialeto do Congresso Nacional, jabuti é quando um parlamentar tenta inserir no texto de um projeto de lei um trecho completamente alheio, desconfigurando a lei. Mas nos idiomas milenares dos povos indígenas, jabuti significa persistência, e muitas vezes esse animal é retratado na espiritualidade como símbolo de astúcia, sabedoria. Se fosse uma entidade das religiões de matriz africana, muito respeitadas nos quilombos, ele seria um preto velho. Como canta o ponto: “Preto velho pisa no caminho devagar. Olha que o caminho tem espinho”.

Frente a situações muito difíceis, o pânico, a ansiedade e o medo têm o poder de nos paralisar momentaneamente. Ficamos chocados e queremos correr para as montanhas. Mas aqueles que há séculos mantêm a longa caminhada sabem o verdadeiro remédio: perseverança. É um pé depois do outro. É o passo do jabuti.

#PovosTradicionais #Indígenas #Quilombolas #Fakenews #Covid19 #Coronavírus

Leia Mais:
Aldeia no Alto Xingu, no Mato Grosso, é exemplo de enfrentamento à pandemia

Povos indígenas no Brasil — Kuikuro

Ações indígenas para salvar vidas

ADPF 709: a voz indígena contra o genocídio

Covid-19: STF decide que União terá de elaborar plano para quilombolas

Abandonados pelos governos, indígenas de Manaus criam sua própria unidade de saúde

Aldeia do Alto Xingu improvisa hospital, contrata médica e tem mortalidade zero por Covid-19

Aldeia do Xingu que fez esquema especial contra a Covid é vacinada e fecha ciclo sem mortes pela doença

Um mergulho sem refresco

Um mergulho sem refresco

Não se iluda com a água gelada da próxima vez que for à praia. Organizado por 20 cientistas de 13 instituições, um estudo divulgado este mês na publicação científica Advances in Atmospheric Sciences apontou que, em 2020, os oceanos registraram as temperaturas mais altas desde 1955. Sabe-se que os mares estão esquentando há, pelo menos, 70 anos. Acontece que o processo acelera como um tsunami que se aproxima da costa.

Entre 1986 e 2020, o aumento médio do calor acumulado nos mares foi 8 vezes maior que o verificado entre 1958 e 1985. E ganha uma estrela-do-mar dourada quem acertar qual dos cinco foi o oceano que mais esquentou no período. Sim, ele mesmo, o seu, o meu, o nosso Atlântico. Será que não é hora de darmos uma atenção maior a isso?

Oceanos não esquentam do nada. No caso em questão, pesquisadores como Lijing Cheng, da Academia Chinesa de Ciências, apontam o efeito estufa como origem do problema. “Mais de 90% do excesso de calor gerado pelo aquecimento global é absorvido pelos oceanos“, afirma ele. Há outros números de tirar o fôlego. Entre 1995 e 2020, nossos mares incorporaram uma quantidade de calor equivalente à explosão de 3,6 bilhões de bombas de Hiroshima. É muita energia para um período relativamente pequeno.

Como os oceanos têm ligação direta com o clima, as consequências começam a aparecer. No ano passado, o Atlântico registrou 29 tempestades, um recorde inédito. A umidade que alimentou furacões no Caribe e no sul dos Estados Unidos foi a mesma que fez falta na Amazônia e se traduziu em uma temporada de incêndios na floresta, segundo a Nasa. Ou seja, o aquecimento das águas já está bagunçando nosso regime climático. Só não vê quem não quer.

Como no começo do filme Tubarão, muita gente já começa a olhar preocupada para a confusão logo ali além da areia. A diferença é que, na vida real, ainda há o que ser feito. Um exemplo é a ONU, que vai celebrar entre 2021 e 2030 a Década Internacional do Oceano. Assim mesmo, no singular, para promover a ideia de que todos os mares são, na verdade, um só e devem ser preservados. Afinal, eles nos prestam bons serviços.

Você sabia que o habitat de algas, sardinhas e golfinhos absorveu 7 gigatoneladas de carbono só em 2019? O dado é do Global Carbon Project. Se todo este volume tivesse sido lançado na atmosfera, nosso planeta teria ficado muito mais quente. Por outro lado, este porre de CO2 está deixando o mar de ressaca. Nos últimos 2 séculos, a acidez das águas subiu cerca de 30%, o que afetou animais marinhos sensíveis a esta variação. Não é exatamente o tipo de problema que se resolve só com um antiácido.

Os impactos das mudanças do clima nos oceanos não param por aí. Com o calor, o gelo dos polos derrete e o aumento do nível do mar é outro fenômeno que tira o sono de muitos. As medições indicam uma subida média de 24 centímetros entre 1850 e 2010. Já para os próximos 79 anos, são esperados acréscimos entre 48 e 56 centímetros, segundo a WWF. Na primeira hipótese, 46 milhões de pessoas seriam afetadas; Na segunda, 49 milhões. Com 50 milhões de habitantes distribuídos por 9 mil quilômetros de litoral, o Brasil deveria estar mais atento a isso, não é? Não podemos deixar que a continental costa brasileira e toda sua biodiversidade deixem de ser um dos nossos maiores patrimônios e se tornem um problema.

Este calor todo também terá impacto nos animais. Se nada for feito, a tendência é que 90% dos corais do planeta estejam mortos até 2050, por exemplo. Mais quentes, os oceanos retêm menos oxigênio. A taxa de gás dissolvido na água já caiu 2% entre 1960 e 2010. Se nada mudar, pode cair 4% até o fim deste século. Se você gosta de iguarias como um bom atum, a boa é já começar a se despedir, porque neste cenário elas desapareceriam do mapa. Quer dizer, da água.

Como o protagonista do clássico O Velho e o Mar, não devemos nos desesperar na busca por nossos objetivos. Se o ser humano conseguiu desenvolver uma vacina eficaz contra um vírus letal em menos de 1 ano, ele é capaz de usar sua inteligência para reverter os riscos iminentes à vida marinha. De acordo com especialistas, o mais urgente é reduzir as emissões de CO2 para derrubar o volume de calor armazenado pelo mar. Não foi à toa que a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris foi anunciada por Joe Biden, o novo presidente americano, assim que assumiu seu posto na Casa Branca. Cuidar do assunto é algo, literalmente, para ontem. Se o Brasil quiser fazer sua parte, vai precisar mudar de atitude, já que as metas para 2030 anunciadas em dezembro soaram, no mínimo, acanhadas.

Outro esforço necessário é a criação de unidades de conservação marinha. É uma caminhada longa, na qual o país ainda está em seus primeiros passos. Em 2018, aumentamos de 1,5% para 26,4% a fatia de áreas protegidas na nossa Zona Econômica Exclusiva. Mas ainda há muito por fazer. Para além disso, é preciso prestigiar o papel desempenhado por pescadores e outras populações tradicionais na preservação do litoral – assim como as pesquisas de ponta desenvolvidas pelo Observatório do Clima. Composta por mais de 50 organizações (inclusive Uma Gota no Oceano), a rede criou um grupo para estudar a relação entre o mar e o clima, de onde bebemos muitos dos dados aqui apresentados.

Como diz a canção, quem é do mar não enjoa. Cada um é responsável por arregaçar as mangas e construir um futuro diferente.

#Oceanos #MudançasClimáticas #AcordoDeParis #C02 #EmissõesDeCO2 #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

Leia mais:

Eurekalert – Upper ocean temperatures hit record high in 2020

Upper Ocean Temperatures Hit Record High in 2020

Liga das Mulheres pelo Oceano – Recorde de calor no oceano em 2020. E eu com isso?

Nasa – Conditions Ripe for Active Amazon Fire, Atlantic Hurricane Seasons

ONU – UN designates 2021-2030 ‘Decade of Ocean Science’

Global Carbon Project – Global Carbon Budget 2019

IUCN – Ocean deoxygenation: Everyone’s problem

G1 – Retorno dos EUA ao Acordo de Paris e OMS estão entre primeiros atos do presidente Joe Biden

Uma Gota no Oceano – Cordão de Isolamento

Cordão de isolamento

Cordão de isolamento

Puseram um cordão de isolamento em torno do Brasil. A causa principal não foi a Covid-19, mas outro mal que ora aflige o país: a falta de credibilidade. É uma espécie de isolamento térmico; nos deram um gelo nas discussões sobre o clima. O país, que antes ocupava a cabeceira da mesa na Cúpula da Ambição Climática, não teve direito a nenhum dos 80 assentos disponíveis este ano. O evento serve para traçar metas e objetivos que serão negociados na próxima Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU (COP-26) – a ser realizada na Escócia somente no fim do ano que vem, devido à pandemia. Se antes o Brasil dava as cartas, agora não somos mais convidados para definir as regras do jogo. Perdemos este privilégio. E o pior: a troco de nada. Há uma contradição interessante em curso. A sensação é parecida com a daquela pessoa que chega mega entusiasmada a uma festa, mas com quem ninguém quer papo. É triste, mas é verdade: o Brasil se tornou um espalha-bolinho global.

O Acordo de Paris está fazendo cinco anos e a pandemia deixou claro que os países não só precisam cumprir o acertado, como reavaliar suas metas. Aqueles que entenderam o recado se apressaram em agir. Joe Biden, presidente eleito dos EUA, já adiantou que seu país voltará ao tratado e que apresentará ao Congresso um plano de US$ 2 trilhões para combater as mudanças climáticas. China, Coreia do Sul e Japão anunciaram que vão zerar suas emissões de carbono até 2050; já a União Europeia revisou sua meta até 2030 e aumentou a redução de 40% para 55%, em relação aos níveis de 1990; brigado com o bloco, até o Reino Unido deu sua contribuição e aumentou de 40% para 68% a fatia de poluição a ser reduzida até 2030, na comparação com 30 anos atrás. Juntos, esses países respondem por 2/3 das emissões globais.

Você deve estar se perguntando o que o Brasil fez em relação a isso, não é? Nosso país é o sexto maior emissor (3,2% do total), sendo que o desmatamento responde por 44% do CO₂ que despejamos na atmosfera. Em 2020, 11.088 km² de floresta foram abaixo. Isso dá quase três vezes mais que a meta de 3.925 km², estabelecida para este ano pela Política Nacional de Mudança do Clima, em 2009. A conta é simples. Numa prova em que precisávamos ter nota 10, tiramos menos que 5. E o pior é que, ao que tudo indica, nosso governo é aquele tipo de aluno que faz de tudo para tentar esconder a nota dos pais (no caso, somos todos nós, brasileiros).

No último dia 8, o Ministério do Meio Ambiente apresentou as novas metas climáticas do país no âmbito do Acordo de Paris. “Novas” é forma de dizer. O texto manteve o compromisso brasileiro de reduzir em 43% as emissões de carbono até 2030, em comparação aos números de 2015. Por si só, o fato já representaria um descompasso. É como se o mundo todo estivesse dobrando sua contribuição em uma vaquinha e o Brasil continuasse pagando o mesmo. Não tem jeito: sempre pega mal. Mas uma pegadinha mostra que o vexame foi ainda maior.

Quando o acordo foi firmado, em 2015, a estimativa de emissões de poluentes pelo país era de 2,1 bilhões de toneladas. Posteriormente, estudos mais apurados indicaram que a sujeira liberada tinha sido maior, na casa de cerca de 3 bilhões de toneladas. Adivinha em que indicadores se baseiam as novas metas de redução do governo? No maior, é claro. Foi o jeito que o Brasil arranjou de poder poluir mais dizendo que ia poluir o mesmo. Ficou parecendo uma daquelas promoções em que os produtos saem pela metade do dobro do preço. Isso para não falar em outras jogadas, como pedir US$ 10 bilhões por ano a outros países na forma de incentivo para cumprir o combinado e a promessa de descarbonizar a economia só em 2060 – ou seja, dez anos depois da China. Tem cabimento?

Se uma coisa este ano de 2020 nos provou é que, juntos somos capazes de driblar até as situações mais complicadas. Está aí a vacina contra Covid-19, que teve o desenvolvimento mais rápido da história graças a um esforço de cientistas do mundo todo e não nos deixa mentir. A máxima vale inclusive em relação à possibilidade de harmonizar preservação da natureza e crescimento econômico – algo que, na verdade, nem é tão difícil assim. Em 2019, as emissões na União Europeia diminuíram em 3,7% – o nível mais baixo dos últimos 30 anos – enquanto o PIB cresceu 1,5%.

Há milênios, os indígenas já perceberam que cuidar do meio ambiente é um belíssimo investimento. Falta agora que o restante de nós se dê conta disso. Quando o desmatamento na Amazônia despencou em 82%, entre 2004 e 2014, a pobreza extrema caiu 63% no país. Coincidência? Parece que não. Só não vê quem vive em outro mundo.

#MudançasClimáticas #COP26 #Desmatamento #Amazônia #MeioAmbiente #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

Saiba mais:

Cinco anos após Acordo de Paris, países apresentam novas metas para conter aquecimento global

Assinado há cinco anos, Acordo de Paris resiste a líderes que negam mudanças climáticas

Ambição climática não se improvisa (Izabella Teixeira e Gilberto Câmara)

Reino Unido vai parar de financiar projetos de petróleo, gás e carvão pelo mundo

Reino Unido e França apertam cerco a fósseis em cúpula do clima

Uma economia no verde (Lídia Pereira, eurodeputada do PSD; membro da Comissão do Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar no Parlamento Europeu)

Lídia Pereira e a recuperação verde europeia: “Temos que ser pragmáticos e ambiciosos”

Em 2019, as emissões de gases com efeito de estufa da UE desceram para o nível mais baixo desde há três décadas

Ex-potência climática, Brasil se afasta cada vez mais de metas do Acordo de Paris

Boi-bombeiro e Boitatá

Boi-bombeiro e Boitatá

O conto varia de um lugar para o outro, mas a essência da história é a mesma: um espírito incandescente toma conta das matas e espanta aqueles que nelas querem atear fogo ou causar destruição. O Boitatá muda de forma, mas a mais comum é a de uma grande cobra feita de chamas com brilho azulado. Ele persegue aqueles que fazem mal à natureza, cegando-lhes. O primeiro registro escrito da lenda é do jesuíta José de Anchieta, em uma carta assinada por ele em 1560. O folclore se relaciona a um fenômeno natural explicado pela ciência: fogo-fátuo é uma chama azulada e efêmera produzida pela combustão espontânea de gás metano em pântanos ou lugares úmidos onde há muita concentração de matéria orgânica em decomposição.

Praticamente cinco séculos depois de padre Anchieta está difícil para o Boitatá vencer a concorrência. Hoje outros mitos tomam conta do Brasil. Há quem acredite que a Amazônia não está sendo desmatada e que o Pantanal não está em chamas. Numa cegueira seletiva, fingem não ver o encolhimento do Cerrado ou o desequilíbrio climático que afeta todo o planeta. Falando nele, há os que dizem ser plano. Nega-se o racismo estrutural enraizado em nossa história. E, diante das imagens de covas comunitárias, há até mesmo os que relativizam a gravidade da pandemia de Covid-19. É tanto negacionismo que a gente chega a questionar a própria existência.

Em Brasília, as dúvidas se aprofundam. Ainda mais quando o assunto é meio ambiente. Existe uma política pública para cuidar da natureza (ou seria lenda)? Em 2019, o Ministério do Meio Ambiente tinha à disposição mais de R$ 10 milhões para combate às mudanças climáticas, mas só 13% foram usados; e dos R$ 3 milhões que iriam para a conservação e o uso sustentável de nossa biodiversidade, apenas 14% se converteram em ações concretas. Os dados são do relatório anual da Controladoria-Geral da União.

O ano virou e as proporções se tornaram ainda menores, segundo aponta o Observatório do Clima, em levantamento feito a partir dos dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento. Nos primeiros oito meses de 2020, o ministério tinha à disposição cerca de R$ 26,5 milhões para ações de prevenção, mas só usou 0,4% do dinheiro disponível. Do montante de R$ 1,388 milhão que deveria ser usado para cuidar de nossa biodiversidade, 96,4% permaneceram intocados; e dos mais de R$ 6 milhões que deveriam ser utilizados em fomento a pesquisas relacionadas às mudanças climáticas, nem um único tostão foi investido. O dinheiro está lá, mas não se converte em ações práticas. Seria este o orçamento de Schrödinger?

A justificativa oficial foi que “o ministério alterou seu planejamento estratégico, sua estrutura e suas prioridades orçamentárias, com prioridade para recursos destinados aos programas de Qualidade Ambiental Urbana: resíduos sólidos, saneamento e qualidade do ar”. Se buscamos qualidade ambiental urbana acima de tudo, porque só 6% dos R$ 6,5 milhões disponíveis para a área foram investidos?
Outro que parece nunca ter existido é o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). Mas não é lenda. No início deste século, nossa voracidade em relação ao verde tinha chegado a níveis pantagruélicos. Em 2004, inacreditáveis 27.772 km² de floresta foram abaixo. O plano se concretizou e o Brasil conseguiu reduzir em 83% a devastação na região entre aquele ano e 2012. Isso só foi possível porque houve um esforço em conjunto da sociedade brasileira, agronegócio incluído.

Já se sabia naquela época e repetimos hoje: preservar a natureza não é gasto, é investimento. Só em outubro de 2020 foram destruídos 7.899 km² de Amazônia, 50% a mais que no mesmo mês do ano passado, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Pagaremos muito mais caro depois.

Se não há investimento, então o que se propõe como solução prática para controlar o fogo? Uma das propostas é aumentar o espaço de criação de gado nos limites das reservas naturais para “reduzir o acúmulo de massa orgânica”. É claro! É só transformar a floresta em pasto que não tem mais incêndio, dizem eles. Não é assim que funciona? Respondemos: Não, não é.

Vejamos o Pantanal como exemplo. Há dois pontos que mostram a falácia. O primeiro é que o rebanho bovino no Pantanal cresceu nos últimos anos. Ou seja, se o boi é bombeiro, ele não está fazendo bem o seu trabalho, porque o número de focos de incêndio também aumentou. O segundo ponto é a conclusão da perícia na Reserva Natural do Sesc Pantanal: a causa do incêndio foi dada como queima intencional de vegetação desmatada para criação de área de pasto para gado em uma fazenda na região que entrou para a área da reserva. Mais uma vez, a ciência derruba a lenda.

O boi-bombeiro o boitatá às avessas. Não afasta os homens que querem destruir a natureza, antes pelo contrário, ele mesmo traz consigo o desmatamento. Aonde chegaremos se levarmos mitos ao pé da letra?

#Pantanal #Amazônia #Desmatamento #Queimadas #MeioAmbiente #MudançasClimáticas #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

Saiba mais:
G1 – Por que a teoria do ‘boi bombeiro’ no Pantanal, citada pela ministra da Agricultura, é mito

Estadão – Bolsonaro volta a defender o ‘boi-bombeiro’ para apagar fogo do Pantanal

Governo de Mato Grosso – Perícia constata que incêndio em reserva no Pantanal foi provocado por ação humana

O Globo – Governo gastou, em 2019, cerca de 70% a menos com ações de combate ao racismo em relação ao ano anterior

G1 – Ministério deixa de usar maior parte da verba para preservação ambiental, diz CGU

G1 – Ministério do Meio Ambiente não gastou nem 1% da verba para preservação, diz levantamento

Valor Econômico – Política ambiental, o que o orçamento mostra e promete

BBC Brasil – Ibama paralisa combate a incêndios alegando falta de caixa, mas 15% do orçamento não foi usado

El País – Dióxido de carbono na atmosfera baterá novo recorde em 2020 apesar da pandemia

Valor Econômico – UE dirá no G-20 que quer reforma “verde” na OMC

Folha de São Paulo – Brasil trava preparo do acordo de biodiversidade da ONU

G1 – Novo site do Ministério do Meio Ambiente não tem informações sobre áreas protegidas

O Globo – ‘Não esperamos nada de positivo do governo, mas jamais vamos desistir’, diz líder indígena brasileira que recebeu prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos

Basta ouvir o vento

Basta ouvir o vento

O ano de 2020 não cansa de se superar. Agora são tantos ciclones e furacões nascendo no Atlântico que a lista de nomes previstos no início do ano pelos cientistas acabou. Os meteorologistas passaram a identificá-los com o alfabeto grego. Por isso, o mais recente tem o nome Zeta. A tempestade que está assolando a costa da Luisiana (EUA) é a de número 27. Mas o que um furacão nos Estados Unidos teria a ver com a gente, aqui no Brasil? 

Outro nome esquisito: oscilação multidecadal do Atlântico. Significa que a superfície do mar do Atlântico Norte está esquentando. E esse fenômeno é responsável tanto pela maior quantidade de furacões nos Estados Unidos quanto pela maior seca dos últimos sessenta anos no pantanal brasileiro. 

É como se fosse um El Niño no Atlântico. Mas, enquanto o El Niño ocorre em períodos que variam de 2 a 7 anos no Pacífico, as oscilações do Atlântico acontecem a cada três ou quatro décadas. Cientistas da NASA (Agência Nacional da Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos) estão acompanhando de perto. O chefe do laboratório de biofísica da agência, Douglas Morton, explicou ao jornalista André Trigueiro: “Estamos no período mais quente no mar Atlântico. E pode durar mais uma década, mais duas décadas ou ir mais longe ainda, porque as temperaturas na superfície do mar estão crescendo pelo aquecimento global”. Como consequência, o Pantanal e o sul da Amazônia ficam mais secos. 

“No sul da Amazônia, a floresta está transpirando menos água”, disse o cientista Carlos Nobre. “Durante os meses secos – principalmente julho, agosto e setembro – a temperatura no sul da Amazônia chega a ser três graus mais quente do que era nos anos 80. Então o ar que chega no Pantanal, vindo da Amazônia, chega mais quente.” 

É dessa parte mais baixa da floresta que saem dois irmãos: o rio Xingu e o Tapajós. Eles correm lado a lado, do Mato Grosso até o coração do Pará, onde suas águas se unem ao rio Amazonas. E foi às margens desses rios que ouvimos lições tão importantes nos últimos dez anos. 

À beira do Xingu, o antropólogo Eduardo Viveiro de Castro nos alertou lá atrás, em 2011: 

“As obras que estão se fazendo aqui, as fazendas de gado que estão se abrindo na região de São Félix do Xingu, as fazendas de soja que estão envenenando o rio com agrotóxicos lá na cabeceira do Mato Grosso, isso é o passado. Os índios que estão aqui, os ribeirinhos que estão aqui, são o futuro. Eles são a garantia de que o país tenha um futuro. E um futuro diferente do resto do mundo. Nós, brasileiros, gostamos de nos sentir diferentes. E se a gente quer mesmo ser diferente, vamos fazer diferente. Vamos fazer diferente do que os americanos fizeram com o Mississipi, vamos fazer diferente do que os europeus fizeram com os rios e com as florestas de lá. Vamos tentar ser originais. Então a primeira coisa a fazer é tratar, de modo diferente do que eles trataram, da nossa natureza.” 

E, à beira do Tapajós, o cacique Juarez Munduruku nos banhou com sua sabedoria ancestral em pleno 2020: 

“Esse rio aqui se torna meu corpo. Por que eu quero dizer que o rio é meu corpo? Porque ele é o corpo de todo mundo. Por exemplo, esses igarapés, são as nossas veias. Os madeireiros estão destruindo as cabeceiras dos igarapés. Então o que está acontecendo? O rio está morrendo aos poucos, também. Os igarapés são os primeiros que secam. E eles que fortalecem o Tapajós. Daqui a uns tempos, daqui a uns cem anos, nós vamos brigar pela água.” 

Como se não fosse suficiente manter um modelo de vida que agrava a crise climática, a ilicitude humana eleva ainda mais a régua. Este ano, foram mais de 194 mil focos de incêndio no Brasil, dos quais 20.926 queimaram o Pantanal. E, de acordo com o Ibama, mais de 90% dos incêndios na região foram ilegais. “Quem planta fogo colhe cinzas”, diz um brigadista à repórter Cláudia Gaigher, da Rede Globo. Escolhas individuais se desdobram em consequências vividas pelo todo. Até quando? 

Aqueles que insistem em criar divisões têm dificuldade em ver que tudo está conectado. Os povos tradicionais aprenderam com a natureza que o planeta é um só, e que nós pertencemos à Mãe Terra, não o contrário. Para tratar da verdadeira riqueza da melhor forma é preciso parar e ouvir os que entenderam, lá atrás, que o cuidado dos rios é tão importante quanto o das artérias. 

A mensagem está aí. Para recebê-la basta abrir os olhos, os ouvidos e o coração. 

#MudançasClimáticas #MeioAmbiente #PovosTradicionais #Amazônia #Tapajós #Desmatamento

Leia mais 

Eduardo Viveiros de Castro: Expedição Gota d’Água Xingu 

Amazônia Sociedade Anônima (documentário) 

Jornal Nacional: Pantanal, maior planície alagada do planeta, está sendo destruído como nunca se viu antes

Por falta de recursos humanos e materiais, fauna no Pantanal é destruída pelo fogo 

WWF – O Bioma Pantanal 

Clima Info: O que o clima seco no Pantanal e no sul da Amazônia tem a ver com a crise climática?   

G1: Com 2.825 pontos de incêndio, Pantanal tem pior outubro da história 

Translate »