outubro 2020 | Mudanças Climáticas
Como um vírus. Quando David Attenborough nasceu, em 1937, a população mundial era de 2,3 bilhões; a concentração de CO₂ na atmosfera, de 280 partes por milhão (ppm), e 66% da vida selvagem da Terra estavam preservados. Em 1954, quando o famoso naturalista inglês começou seu périplo pelo planeta, esses números tinham chegado a 2,7 bilhões, 310 ppm e 64%; e em 2020, a 7,8 bilhões, 415 ppm e 35%. A destruição da natureza, causada por uma única espécie, vem crescendo em velocidade exponencial, talvez só comparável à da propagação da Covid-19 pelo mundo. A população triplicou desde o nascimento de Attenborough e a quantidade de pessoas infectadas pelo novo coronavírus cresceu mais de 3.000 vezes entre 31 de janeiro e 31 de setembro de 2020, de acordo com a Universidade John Hopkins. Por outro lado, se a situação da Terra inspira cuidados, a descoberta da cura pode estar próxima.
Passados 83 anos, a temperatura média global subiu 1°C, 70% das aves do planeta são domesticadas e 50% de suas terras férteis estão ocupadas pela agricultura. O mundo nunca experimentou mudanças tão radicais em tão pouco tempo. São 4 bilhões de anos de história de vida na Terra e houve cinco grandes extinções em massa – a última, reduziu a população de dinossauros em 75% –, até a chegada do Holoceno. Nesta era geológica, o clima no planeta e suas atividades vulcânicas se estabilizaram. Em 10 mil anos, houve somente aquele 1°C de aumento da temperatura. Attenborough considera o Holoceno o nosso verdadeiro Jardim do Éden. Graças a ele, a espécie humana pôde se dedicar à agricultura em larga escala, pois o tempo e as estações se tornaram mais regulares. Logo, se tornou uma das mais numerosas e a mais daninha do planeta. Agora rumamos para a sexta grande extinção – e, desta vez, além de causá-la, podemos estar entre as vítimas.
Ao longo de quase 70 anos dedicados ao estudo da vida selvagem, o naturalista conta, no documentário “David Attenborough e o nosso planeta” (2020), que observou dois gatilhos que nos fizeram despertar para a necessidade da preservação do meio ambiente. O primeiro foi quando os astronautas da missão Apollo 8 filmaram a Terra a partir da órbita lunar pela primeira vez, em 1968: “Naquela imagem, havia toda a Humanidade”, diz ele. O ponto azul na imensidão escura fez com que o homem despertasse para o fato de que o planeta era sua casa, que era finita e que cuidar dele era essencial, pois não havia para onde correr. Não por acaso, o primeiro grande encontro internacional sobre meio ambiente aconteceu quatro anos depois, em Estocolmo. Não chegou a ser um salto gigante para a Humanidade, mas foi um primeiro pequeno passo.
Dez anos depois da Apollo 8, lá estava Attenborough com um gravador no Havaí, para registrar o som das jubartes. À época, as baleias eram alvo de caça indiscriminada e corriam risco de extinção. Aquele canto calou fundo no coração de gente do mundo inteiro e ali o naturalista identificou o segundo gatilho: “Ninguém queria que os animais fossem extintos. As pessoas passaram a se importar com a natureza quando se tornaram cientes dela”, diz ele. A comoção global foi tamanha que até Roberto Carlos, o cantor mais querido do Brasil no período, dedicou a elas uma de suas canções – “Seus netos vão te perguntar em poucos anos / Pelas baleias que cruzavam oceanos / Que eles viram em velhos livros / Ou nos filmes dos arquivos / Dos programas vespertinos de televisão”. Preservar era pop e a palavra ecologia entrou de vez para o vocabulário cotidiano. O maior mamífero do mundo foi salvo, mas momentaneamente, já que continuamos maltratando seu lar.
“David Attenborough e o nosso planeta” foi gravado antes de a Covid-19 se espalhar mundo afora. Fosse hoje, provavelmente o naturalista teria identificado a pandemia como o terceiro gatilho. A emergência de saúde é, muito provavelmente, consequência direta da má relação entre homem e floresta. É bom dizer que a situação já era prevista por especialistas, como o astrônomo inglês Martin Rees, em 2014: “Viagens aéreas podem espalhar pandemias ao redor do mundo em dias”. Um levantamento feito pelo portal Getty Images em 26 países no ano passado mostrou que 92% dos entrevistados já estavam preocupados com a forma como tratamos a casa que dividimos no cosmo. Mais do que um gatilho, o novo coronavírus pode ser nosso ponto de virada definitivo. “Como a pandemia nos fez lembrar, somos dependentes uns dos outros e dependentes da nossa mãe-terra”, disse o Papa Francisco em uma live na internet na última terça (13). Sobre a Terra, o pontífice foi direto ao ponto: “Não podemos continuar a espremê-la como a uma laranja”.
Nós derrubamos 15 bilhões de árvores por ano. A continuar neste ritmo, a Amazônia terá se tornado uma savana seca já na próxima década, a produção global de alimentos vai entrar em crise por volta de 2080 e o planeta estará 4°C graus mais quente até o fim do século. Quem viver, não verá. Mais de 1/3 dos medicamentos que usamos hoje em dia têm seus princípios ativos derivados da natureza – de plantas, microrganismos e animais. Entre 60% e 80% dos antibióticos e remédios contra o câncer também. “Se olharmos para a história do desenvolvimento da medicina moderna, ela foi quase inteiramente baseada no estudo de plantas medicinais e microrganismos, especialmente para a fabricação de agentes anti-infecciosos”, explica João Calixto, diretor do Centro de Inovação e Ensaios Pré-clínicos (CIEnP). Apenas nos últimos quatro anos, o número de plantas e fungos ameaçados de extinção dobrou, chegando a 40%. A cura para a Covid-19 e outras moléstias fatais pode desaparecer antes de ser descoberta.
Apesar de ser testemunha ocular privilegiada (sic) de tamanha devastação, David Attenborough mantém a esperança de que sairemos dessa. E um estudo publicado na última quarta-feira (14) na revista “Nature” – também depois de seu documentário ser filmado, portanto – certamente lhe deu um novo alento, pois a missão pode não ser tão impossível assim. O estudo foi conduzido por um grupo de 27 pesquisadores de 12 países (liderado pelo brasileiro Bernardo Strassburg, professor da PUC-Rio e diretor-executivo do Instituto Internacional para Sustentabilidade) e mapeou ecossistemas do mundo inteiro. Os cientistas calculam que a regeneração de 30% das áreas degradadas do globo poderia evitar mais de 70% das extinções de animais terrestres e absorver quase metade do CO₂ – ou 466 bilhões de toneladas – acumulado na atmosfera terrestre desde a Revolução Industrial. Para começar, vamos regenerar mentalidades.
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setembro 2020 | Desenvolvimento Sustentável
Está nos autos: o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso reconheceu a existência de uma “realidade imaginária paralela”. Evidências robustas atestam e dão fé à constatação. Ele, que é relator de uma ação contra o governo federal por não agir contra o avanço das mudanças climáticas, declarou em audiência que este subterfúgio vem sendo usado por quem se recusa a enfrentar a questão ambiental com dados concretos. Nesse mundo fictício, indígenas botam fogo na floresta; no real, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) certifica que em 2019, somente 7% das queimadas aconteceram em suas terras, que correspondem a 25% da região, enquanto 33% foram registrados em propriedades privadas, que somam 18%. Recuando no tempo, essa história fica ainda mais fantasiosa. Indígenas ocupam a Amazônia há pelo menos 8 mil anos. Em 1975, quando o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) mediu o desmatamento na região pela primeira vez, a porcentagem era de 0,5%; em 1988, tinha pulado para 5,5% e hoje, 20%. Adivinhem quem começou a invadir a mata há 25 anos…
Quando esteve no Fórum Econômico Mundial de Davos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, usou da imaginação ao responsabilizar os mais necessitados pela encruzilhada climática em que nos metemos. Enquanto isso, um relatório recém-divulgado pela ONG Oxfam, elaborado em parceria com o Instituto Ambiental de Estocolmo, comprova que os 10% mais ricos (630 milhões de pessoas) são responsáveis por mais da metade (52%) das emissões de CO₂ do planeta. Os dados se referem ao período em que elas dobraram, entre 1990 e 2015. O 1% de pessoas mais ricas (63 milhões) foi responsável por 15% das emissões globais no período – enquanto a metade mais pobre da população emitiu apenas 7%, menos da metade. Logo, sua cota de carbono está sendo usada para uns poucos passearem de jipes de luxo – segundo o relatório, o aumento do número de veículos dessa categoria em circulação foi um dos responsáveis pela disparada nas emissões. Concentração de renda ajuda a concentração de gases do efeito estufa (GGEs) aumentar.
É fato: os mais pobres também são os mais atingidos pelas mudanças climáticas; ou seja, a maioria paga duas vezes essa conta. Hoje, os desastres climáticos também são a causa principal das migrações forçadas e obrigaram mais de 20 milhões de pessoas por ano a deixarem as suas casas na última década, segundo outro estudo da Oxfam. O texto destaca que os mais pobres, justamente “os que menos contribuíram para a poluição causada pelo CO₂ são os que estão em maior risco”. Os dados da ONG se referem ao mundo inteiro, mas dizem muito em relação ao Brasil real, em particular. O país tem a segunda maior concentração de renda do mundo, de acordo com o relatório o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da ONU. Aqui, o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total – perdemos apenas para o Catar, onde 1% detém 29%.
Essa desigualdade se reflete no campo. Isso não é lenda, quem fala agora é a História com agá maiúsculo: há 170 anos, em 18 de setembro de 1850, o então imperador Dom Pedro II assinou a Lei de Terras que, em termos gerais, dividiu o campo brasileiro em latifúndios, em vez de pequenas propriedades. As consequências estão aí até hoje. Segundo o Censo Agropecuário do IBGE, 1% das propriedades agrícolas ocupa quase metade da área rural do país. O projeto Cortina de Fumaça, recém-lançado pela Ambiental Media, em parceria com o Pulitzer Center, através do Rainforest Journalism Fund, aponta que grandes fazendas concentraram 72% dos focos de calor nas principais áreas críticas de incêndios na Amazônia em 2019. Para se chegar ao resultado, os pesquisadores cruzaram os dados do Inpe com os do Cadastro Ambiental Rural (CAR) – ou seja, somente números oficiais. Não é só em tempos de pandemia que deveríamos evitar concentrações.
Estimativas do Sistema de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) do Observatório do Clima apontam que o desmatamento foi a principal fonte de emissões no Brasil em 2018, respondendo por 44% do total. O país é responsável por 3,4 % das emissões globais de GEEs. Num mundo de faz de conta esse número é pequeno, mas na dura realidade é maior que o de todos os países europeus, do Japão e da Austrália, por exemplo. Só ficamos atrás de EUA, China e Rússia. E o pior: fazemos isso dilapidando nossas maiores riquezas e arruinando a credibilidade do país no exterior – inclusive do agronegócio nacional. Em troca de quê? De acordo com uma pesquisa internacional publicada em julho na revista “Science”, 2% das propriedades agrícolas no Cerrado e na Amazônia são responsáveis por 62% do desmatamento ilegal. É essa minoria que vai nos impor o Brasil da realidade imaginária paralela?
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setembro 2020 | Desenvolvimento Sustentável
Ninguém mais anda com as próprias pernas nos caminhos da Internet. É como se você acionasse o piloto automático do avião e o instrumento decidisse fazer escalas não previstas ou o levasse ao destino que ele escolheu, não ao que você havia determinado. Parece enredo de ficção científica, mas quem diz isso são pessoas que ajudaram a criar os mecanismos – estratégias, algoritmos, inteligência artificial – da chamada “tecnologia persuasiva” que move as redes sociais. Esta máquina pode não ter sido criada com esse propósito, mas hoje está programada somente para gerar lucro, não o bem comum. Ela não tem consciência, sentimentos, ideologia ou moral e se tornou, em tempo recorde, o negócio mais lucrativo de todos os tempos. O produto que esse mecanismo vende é você. “Existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software”, disse o professor emérito de estatística, design gráfico e economia política da Universidade de Yale Edward Tufte. Ela proporciona prazer e manipula opiniões para fazer dinheiro.
Assim como a indústria tabagista, que acrescentou substâncias ao cigarro para viciar fumantes, as redes sociais têm seus métodos para criar dependência. Esses expedientes são baseados em nossos desejos e sentimentos, traduzidos de nossos cliques. E não falta quem se aproveite disso para influenciar corações e mentes. O caso mais famoso é a da Cambridge Analytica, escritório do crime banido do Facebook por violar informações de 50 milhões de usuários da rede nos EUA, com a intenção de influenciar eleições mundo afora.
Recentemente, outro nome envolvido em escândalos de disseminação de fake news, o estrategista político Steve Bannon, foi preso sob acusação de fraude. Se o ministro do Meio Ambiente do Brasil acreditou que o mico-leão-dourado vive na Amazônia, por que um leigo não pensaria que as mudanças climáticas ou a Covid-19 não existem? Quando se discute em pelo século XXI o formato da Terra é porque a própria noção de verdade está em risco. No caso da pandemia, espalhar fake news tem provocado mortes. Há quem acredite que a atmosfera de polarização nas redes possa causar guerras civis, como o ex-presidente do Pinterest e ex-diretor de monetização do Facebook, Tim Kendall.
Mas a mentira tem pernas curtas e em mais de um sentido; além de lhe faltar fôlego – leia-se argumentos sólidos – o que convence o seu vizinho pode não enganar alguém que more num bairro mais afastado e tenha outro ponto de vista. Assim, pode até existir brasileiro que acredite que Pantanal e Amazônia não estejam em chamas e que há um agente da Hydra ou da Spectre infiltrado no Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe); mas essa cascata não alcança o resto do mundo. “Enquanto os esforços europeus buscam cadeias de suprimento não vinculadas ao desflorestamento, a atual tendência crescente de desflorestamento no Brasil está tornando cada vez mais difícil para empresas e investidores atender a seus critérios ambientais, sociais e de governança”, diz o trecho que uma carta recebida esta semana pelo vice-presidente Hamilton Mourão, que também comanda o Conselho Nacional da Amazônia, dos embaixadores de Alemanha, Dinamarca, França, Itália, Holanda, Noruega, Reino Unido e Bélgica. O documento lembra ainda que no passado, o Brasil conseguiu expandir sua produção agrícola e, ao mesmo tempo, reduzir o desmatamento. Os dados que comprovam isso saíram do mesmo Inpe.
As redes sociais não são uma arma. Não servem apenas para assassinar reputações e ferir a realidade. Pelo contrário, o futuro preconizado por muitos dos envolvidos no desenvolvimento delas era de que o acesso à informação e à comunicação levaria à cooperação global. E, de fato, elas também vêm desempenhando um papel fundamental na luta contra o novo coronavírus. Antes de sua chegada, foi responsável por mobilizar jovens do mundo todo na luta contra o avanço das mudanças climáticas – em movimentos como o Fridays For Future, liderado pela ativista sueca Greta Thunberg – e, aqui no Brasil, país de dimensão continentais, têm papel fundamental na construção de estratégias conjuntas de luta de povos tradicionais e movimentos sociais. Uma Gota no Oceano nasceu com essa missão: prover informação consistente, independente e atraente à população, permitindo que ela tenha condições básicas para avaliação das decisões que definem nosso futuro. Informação de qualidade é a melhor estratégia, antídoto, enfim, reposta à tempestade de mentiras que nos atinge diariamente.
Portanto, não transfira sua vida para um celular, mas também não se sinta obrigado a abrir mão totalmente de uma ferramenta tão útil. Dormir longe do aparelho é uma dica simples para começar a se livrar do vício – nos links sugeridos abaixo há outras recomendações úteis. Contra as fake news, busque informações em fontes diferentes. Antes de compartilhar uma notícia, tenha certeza de que ela é verdadeira. A imprensa profissional não é infalível, mas tem uma reputação a zelar – os maiores jornais do Brasil são centenários – e CNPJ, ou seja, precisa seguir normas e responder à Justiça. Quem cria um blog ou perfil de rede social anônimo não tem responsabilidade com nada. Esse comportamento inconsequente gerou a necessidade de criação das agências de checagem de fatos. Essas empresas de comunicação têm como objetivo desmascarar boatos e se tornaram uma ferramenta fundamental nessa guerra contra a desinformação.
O mundo já passou por grandes revoluções na área de comunicação, da invenção da imprensa à massificação da televisão, e a mentira é uma invenção mais antiga do que a escrita; mas isso nunca de forma tão avassaladora, em tão pouco tempo. E esses meios logo ganharam regulamentação, enquanto a Internet é uma espécie de Velho Oeste, onde impera a lei do mais forte. Quem ajudou a criar as redes sociais alerta ela que pode se tornar incontrolável, pois a tecnologia que a criou avança em nível exponencial, numa velocidade nunca vista na História; e a responsabilidade de lhe impor marcos civilizatórios começa por quem hoje as comanda – até porque outro de seus efeitos colaterais foi o crescimento astronômico da concentração de renda global.
A filósofa e psicóloga Shoshana Zuboff, professora aposentada de administração da Harvard Business School, foi a introdutora do conceito de trabalho mediado por computador, em 1981. Ela compara o modelo de funcionamento e de negócios adotado por essas empresas ao comércio de órgãos e de seres humanos e defende medidas radicais, em depoimento ao documentário “O dilema das redes”, de Jeff Orlowski. Se hoje essas atividades odiosas deixaram de ser legais, é porque a sociedade exigiu.
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agosto 2020 | Desenvolvimento Sustentável
A Amazônia está na corda bamba, equilibrando uma bandeja cheia cristais em cada mão, sem rede de proteção. Cada um desses frágeis utensílios representa um serviço vital prestado pela floresta ao mundo. Se ela cair, caímos juntos. Há anos os cientistas Carlos Nobre e Thomas Lovejoy vêm alertando a população sobre a arriscada caminhada da região rumo ao ponto de inflexão – quando a mata foi devastada a tal ponto que perde seu poder de regeneração e tem início um processo de desertificação irreversível. Este ponto será atingido quando de 20% a 25% da Amazônia tiver ido abaixo. Hoje este número, segundo dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), está em 17%. Cerca de 700 mil km² (o equivalente a 23 Bélgicas) já foram devastados – sendo que desse total, 300 mil km² só nos últimos 20 anos – e a taxa de desmatamento de 2020 deverá ser 186% maior que a de 2012. Basta um sopro para o tombo.
Afora sua influência benéfica no clima do planeta e da quantidade de água que produz (via chuva) e armazena (em rios, lagos e aquíferos), o coronavírus nos deu mais uma razão para preservar a Amazônia. E isso tem a ver com outra riqueza sua, a biodiversidade. Uma pesquisa internacional, liderada University College London (UCL), compilou informações de 184 estudos e chegou à conclusão de que a maior fonte de novas pandemias está no entorno de florestas destruídas. Publicada no início deste mês na revista “Nature”, ela aponta que o desmatamento e a consequente redução da biodiversidade fazem com que cresçam as populações de certas espécies de roedores, aves e morcegos que são os melhores hospedeiros para os microrganismos que podem nos infectar.
Isso tem acontecido com cada vez mais frequência em países africanos e asiáticos e pode tomar efeitos catastróficos se começar a acontecer com igual intensidade aqui também. “Na Amazônia, tem uma quantidade de vírus imensa. A próxima epidemia, com o nível de agressão que nós estamos fazendo ao meio ambiente, já está a caminho”, alertou o médico sanitarista e ex-presidente da Anvisa Gonçalo Vecina. Alguns desses vírus, como “sabiá”, que causa a febre hemorrágica brasileira, uma doença rara e de alta mortalidade, já são conhecidos. Numa área equivalente a um campo de futebol (1,08 hectare) cabem 310 árvores, 96 trepadeiras, 160 pássaros, 33 anfíbios, 10 primatas e 1 bilhão de invertebrados. Eles formam uma barreira viva contra doenças – que, como vem mostrando a Covid-19, podem rapidamente se espalhar pelo globo.
O mito da Amazônia como fruto intocado da natureza começou a ir ao chão mais ou menos na época em que Carlos Nobre e Thomas Lovejoy lançaram seus primeiros estudos sobre o seu ponto de inflexão. Hoje já se conhece o papel fundamental dos povos originários em sua exuberância. O solo original da região é pobre; os indígenas o tornaram fértil ao misturá-lo com restos de cerâmica, carvão e resíduos orgânicos. Eles cobriram 10% da Amazônia com essa mistura chamada “terra preta”. Criaram uma civilização milenar que chegou a ter uma população de milhões de pessoas, mas que desapareceu, repentinamente, no século XVI. O motivo mais provável é o mesmo que assombra seus ancestrais hoje. “Os europeus encontraram povos com rara suscetibilidade a doenças, que se espalharam como fogo em palha seca”, explicou o biólogo Charles Clement, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). A Amazônia é obra deles; sem os povos indígenas não conseguiremos salvá-la – e nos salvar.
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julho 2020 | Desenvolvimento Sustentável
Como será o futuro das cidades no mundo pós-pandemia? O conselheiro de Uma Gota No Oceano Miguel Pinto Guimarães conversa sobre novos conceitos de planejamento urbano com o jornalista André Trigueiro.
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