junho 2023 | Amazônia, Direitos humanos, Direitos indígenas, Política
Fazer justiça a Bruno e Dom não é apenas punir os responsáveis por suas mortes. Não aprovar o marco temporal é, também, honrar a memória deles.
Por Beatriz Matos e Alessandra Sampaio*
Completamos um ano sem Bruno e sem Dom. São 365 dias sem o aconchego de seus abraços, sem as conversas confidentes, sem a vida compartilhada. Para os filhos, são 8.760 horas sem o canto de Bruno que embalava seu ninar, sem o seu “colo grandão”, sem as tantas plantas que ele ensinava a nomear e cultivar. Para os amigos, são 52 semanas sem as suas gargalhadas, sem seus conselhos precisos, sem as mãos estendidas, sem o ombro acolhedor. Perdemos muito e perdemos todos. Além de nós, foi o mundo que perdeu dois grandes defensores dos direitos humanos, dois grandes defensores da floresta, dois grandes defensores do direito à diversidade, pois lutavam pelo direito indígena ao usufruto exclusivo das terras tradicionais.
Neste longo ano, vivemos de tudo que vocês possam imaginar. Vimos o ex-presidente da República vilipendiar as memórias de nossos entes queridos, sugerindo seu envolvimento com o tráfico de drogas, vimos o ex-vice-presidente da República afirmar que eles estavam fazendo mal a pobres trabalhadores ribeirinhos, vimos o advogado de defesa dos assassinos construir uma narrativa repugnante que tenta transformar Bruno em vilão e Dom em aventureiro, tal qual fez, este mesmo advogado, com a memória da irmã Dorothy Stang. Mas vimos também muita solidariedade vinda de todos os cantos do planeta, de pessoas que compartilham desse amor pela floresta e desse amor pela autonomia dos povos originários. Vimos os indígenas realizarem as buscas pelos corpos quando o Estado desdenhou da urgência em procurá-los, vimos grandes artistas cantarem em memória de nossos amores e vimos jornalistas comprometidos com a verdade dos fatos para rebater tantas mentiras disseminadas.
Hoje, depois de tanta dor e sofrimento, nós seguimos fortalecidas com a luta de Bruno e de Dom. E, na esteira da luta deles por um mundo mais justo, por um planeta mais vivo e por uma sociedade mais diversa, nós acompanhamos, atentas, a dois grandes julgamentos que, para nós, dizem respeito a essa luta: o julgamento pela condenação dos culpados de suas mortes e o julgamento sobre a instituição de um marco temporal de ocupação para as terras indígenas. O resultado de ambos os casos nos dirá o que, de fato, o Brasil pensa sobre os defensores da floresta e sobre as garantias constitucionais dos direitos territoriais indígenas.
Estes dois julgamentos dizem respeito à quantidade de preocupação que o Brasil deposita na proteção do meio ambiente. São indissociáveis. O Brasil, infelizmente, ainda figura entre os países com taxas preocupantes de desmatamento e entre os países que mais matam defensores de direitos humanos, dentre os quais estão muitos indígenas. Precisamos urgentemente sair deste ranking nefasto. Isso somente ocorrerá se nos unirmos em torno deste ideal, que deve ser de todos nós. Garantir os direitos indígenas às terras que eles tradicionalmente ocupam é, a um só tempo, defender a nossa Constituição, a nossa Democracia e o nosso futuro no planeta.
Fazer justiça a Bruno e Dom não é apenas punir os responsáveis por suas mortes, mas, também, assegurar que os indígenas tenham garantidos e efetivados os seus direitos territoriais constitucionais. Com o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, o STF terá a oportunidade de nos dizer que Bruno e Dom não morreram em vão. Não aprovar um marco temporal de ocupação é, também, honrar a memória deles.
Beatriz Matos – esposa do indigenista Bruno Pereira, é antropóloga e Diretora de Proteção Territorial e Povos Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas
Alessandra Sampaio, esposa do jornalista britânico Dom Phillips, trabalha para concluir o livro que ele estava escrevendo: “Como Salvar a Amazônia”
março 2023 | Amazônia, Desmatamento, Direitos humanos, Direitos indígenas, Política, Povos Tradicionais
Márcio Santilli, sócio fundador do ISA, presidente da Funai (1995-1996) e deputado federal pelo MDB (1983-1986)
Juliana de Paula Batista, mestre em Direito pela UFSC e advogada do ISA
O 3º mandato do presidente Lula começa com uma grande novidade: o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Sônia Bone Guajajara foi escolhida para comandar a pasta e Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita deputada federal, para assumir a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que estará vinculada ao MPI. Já Weibe Tapeba assumiu a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. Outros indígenas ocuparão mais cargos na administração federal.
Lula governará com 37 ministérios, com espaço para 15 partidos e vários movimentos sociais. As contradições entre esses vários campos vão se expressar dentro do próprio governo. Com a presença de uma ministra indígena, pela primeira vez, os conflitos entre direitos indígenas e interesses contrários serão tratados de forma direta, sem intermediários, embora com a eventual mediação do Presidente e do núcleo do governo.
Mas também haverá fortes embates com as oposições, não apenas no Congresso, mas também com ruralistas extremistas e bolsonaristas, empresários do garimpo, grileiros de terra e outros atores anti-indígenas. Parte deles envolveu-se no movimento antidemocrático e na depredação das sedes dos poderes em Brasília. As ligações entre quem financiou os atos e deles participou não deixam dúvidas. Os mesmos grupos estão em regiões críticas da Amazônia, onde se concentram os crimes socioambientais e proliferam os clubes de tiro, áreas sob o domínio de grupos golpistas e do crime organizado.
Levará tempo para recuperar órgãos, políticas e orçamentos públicos deteriorados relacionados à agenda socioambiental. Mesmo com vontade política, outros fatores serão determinantes para que ocorram avanços nesse tema. Por exemplo, o presidente Lula já definiu que será retomada a demarcação das Terras Indígenas e há uma lista de 14 áreas cuja oficialização poderá ser concluída nos próximos meses por decretos de homologação. Parte das pendências demarcatórias, porém, está sub judice e sujeita ao ritmo lento da Justiça.
No Legislativo, tramitam projetos que podem trazer retrocessos aos direitos já conquistados, como no caso da demarcação de Terras Indígenas e a possibilidade de abrir essas áreas para grandes empreendimentos. Parlamentares ruralistas, representantes do “ogronegócio”, têm investido pesado em atacar esses direitos, inclusive relacionando-se com pessoas envolvidas em crimes ambientais e invasores de terras indígenas. No momento, são os maiores responsáveis por radicalizações e ataques à segurança jurídica, como no caso da Terra Indígena Apyterewa (PA), já homologada, mas constantemente invadida.
Longe de voltar seu olhar para os graves problemas do setor, como o combate ao desmatamento, as cadeias produtivas que ainda utilizam trabalho escravo, o incentivo a novas tecnologias para o aumento da produtividade, parte da bancada ruralista ainda investe seus vultosos recursos em atacar indígenas e queimar ainda mais o filme do país no exterior.
Ninguém quer investir numa Amazônia cheia de ilegalidades e crimes ou ver as Terras Indígenas, as áreas mais ambientalmente conservadas do país, arrasadas pelo garimpo, pela mineração ou convertidas em pasto. Esses territórios não podem ser convertidos em grandes canteiros de obras, sob pena de deixarem de ser o que são. Ainda é cedo para saber se o Legislativo já entendeu o ativo que o país tem na mão. Mas parece que não.
Em janeiro, a imprensa divulgou as mortes de 570 crianças Yanomami por desnutrição e doenças evitáveis, resultado de uma crise sanitária provocada pela invasão garimpeira e a conivência do antigo governo. Em resposta, Lula foi a Roraima, junto com vários ministros, avaliar a situação e anunciar providências emergenciais para assistir as comunidades afetadas. A questão impactou a opinião pública, dominando o noticiário e as redes sociais.
No Senado, uma Comissão Externa constituída, em sua maioria, por parlamentares historicamente apoiadores da ilegalidade foi formada com o aval do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ele envia um sinal ruim para a sociedade, que neste momento encontra-se chocada com as barbaridades cometidas contra os Yanomami. Perdeu uma boa oportunidade de mostrar protagonismo na construção de uma agenda que coloque limites à política de terra arrasada e sem lei que o último governo tentou impor à maior floresta tropical do planeta.
O discurso anti-indígena do governo passado deve ter aumentado o preconceito contra os povos originários entre os segmentos mais radicais de direita, além de fortalecer os interessados na apropriação das Terras Indígenas e dos seus recursos naturais. Por outro lado, a rejeição desse processo pela maioria da sociedade ampliou a adesão à defesa dos direitos dessas populações. A fidelização desse engajamento e a ampliação de novos apoios dependerão do desempenho dos que estão no governo e dos movimentos sociais como um todo, e será essencial para garantir a sustentabilidade futura dessas políticas.
Uma coisa é certa: a defesa dos direitos indígenas e das florestas não interessa apenas aos próprios indígenas e setores envolvidos com a defesa do meio ambiente. A expressiva votação da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL), em Minas Gerais, mais votada que políticos tradicionais como Aécio Neves (PSDB), e de Sônia Guajajara (PSOL), em São Paulo, mostram que a sociedade está mobilizada e seguirá atenta.
janeiro 2023 | Amazônia, Direitos indígenas, Garimpo, Povos Tradicionais
Enock Taurepang*
“O que os olhos não veem, o coração não sente”, diz um ditado do homem branco. As últimas imagens da campanha de extermínio contra os Yanomami ganharam páginas de jornais, sites e emissoras de TV do planeta. São cenas que preferíamos que não fossem reveladas, em respeito aos que sofrem e porque elas também nos envergonham como seres humanos – sim, nós fazemos parte da mesma espécie de quem nos faz mal. Não fomos todos gerados por Omama? Tínhamos nossas razões para não querer olhar para aquilo; vimos 570 de nossas crianças morrerem nos últimos anos. O resto do mundo, não. Este tinha o dever.
Agora, diante das fotos de anciãos e crianças esqueléticos, não faltaram comparações ao horror nazista. A diferença é que o Holocausto que assassinou milhões judeus, homossexuais, ciganos, negros, durou 12 anos e o os seus carrascos foram derrotados e julgados; enquanto o Yanomami é uma lenta agonia, como uma doença dolorosa e incurável, de número incerto de perdas. Esse sentimento de empatia é bem-vindo, pois nós, indígenas, não somos apenas Guardiões da Floresta, mas também pais, mães, filhos, filhas, avôs e avós que choram a perda de seus entes queridos.
A ideia de Brasil grande nunca foi para todos. Os garimpeiros começaram a chegar 20 anos depois, mas a invasão de garimpeiros se acelerou na década de 1970, graças à construção de estradas e de projetos de mineração pela ditadura. Não é possível calcular o número de vítimas, mas obras como a da BR-210 causaram contatos involuntários entre trabalhadores e Yanomami. Segundo a Comissão da Verdade, não se pode afirmar quantos se foram por doenças transmitidas por essa proximidade ou por conflitos, mas se sabe que a vacinação dos indígenas foi negligenciada.
Hoje, calcula-se que haja por volta 20 mil garimpeiros ilegais na Terra Indígena (TI) Yanomami – mais ou menos quanto a população indígena no território. Mas, acredite: já foi muito pior. A partir de 1987 eles começaram a entrar aos milhares, de uma vez. Mais de 100 aeroportos clandestinos foram abertos em meio à mata e acredita-se que, em 1990, 40 mil garimpeiros haviam invadido. A situação se tornou insustentável e a Terra Indígena Yanomami, que cobre uma área de 96.650 km², na fronteira com a Venezuela, foi homologada em 25 de maio de 1992.
A ironia é que quem assinou o documento foi Jarbas Passarinho, então ministro da Justiça de Collor, que já havia servido à ditadura – tão exaltada por Bolsonaro. O relatório da Comissão da Verdade responsabilizou não apenas o regime militar, mas também o governo do ex-presidente José Sarney pelas invasões. Mas nada disso foi o suficiente para manter a segurança do povo. A chacina de 12 Yanomami por garimpeiros, em 1993, gerou a primeira condenação por genocídio no Brasil. O julgamento do massacre de Haximu durou três anos. Em 1996, Pedro Emiliano Garcia, Eliézio Monteiro Neri, Juvenal Silva, João Pereira de Morais e Francisco Alves Rodrigues foram condenados por tentativa de extermínio de etnia, e não só por homicídio. Mas, atualmente, os assassinos se vangloriam do que fizeram e ganharam o respeito e a admiração dos demais criminosos.
Um laudo recente da Polícia Federal revelou que quatros rios da Terra Indígena Yanomami têm uma contaminação por mercúrio absurda: 8.600% maior que o permitido. Em 2019, um estudo de pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) constatou uma contaminação de 56% das mulheres e crianças Yanomami na região de Maturacá, no Amazonas. Não podemos regar hortas, beber água, nem comer peixe de nossos rios. Dá para imaginar morrer de fome e sede na maior concentração de água doce e biodiversidade do planeta? Não é exagero afirmar que a população da capital de Roraima também se encontra já com um grau de contaminação por mercúrio, uma vez que os rios que cortam a TI Yanomami são os mesmos que desaguam no principal rio que abastece a capital Boa Vista.
Bolsonaro está mais próximo de Haia do que imagina. Sua própria obsessão o condena; a compulsão de produzir provas contra si é incalculável. “Torna sem efeito o Decreto de 25 de maio de 1992, que homologa a demarcação administrativa da terra indígena Yanomami”, diz o projeto de decreto legislativo 365/1993, escrito por ele de próprio punho, no estilo lacônico que caracterizou sua passagem pela presidência. Ele, que iniciava seu primeiro mandato, não se deu ao trabalho de inventar uma justificativa qualquer.
O documento foi arquivado e o ex-presidente tentou levá-lo mais três vezes à votação. “A Cavalaria brasileira foi muito incompetente”, afirmou na Câmara, em 16 de abril de 1998. “Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”, continuou. Só em 2007 a ideia foi sepultada de vez. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) vai acrescentar o Holocausto Yanomami à denúncia que apresentou em 2021 a Haia, e que está em processo de avaliação. Entre as provas apresentadas há 21 ofícios com pedidos de ajuda dos Yanomami que foram ignorados.
“Estamos apreensivos, para além de nossa própria vida, com a da terra inteira, que corre risco de entrar em caos. Os brancos não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu. Mas um dia talvez tenham tanto medo disso quanto nós!”, alertou um sábio do povo Yanomami, Davi Kopenawa. Muitos já perceberam que o céu já está caindo. Nenhuma pessoa sensata não acredita nas mudanças climáticas e em seus efeitos devastadores. Nós, povos indígenas, ajudamos a sustentar o céu desde tempos imemoriais. Mas há uma minoria que não entende que, quando se mata o indígena, está também matando sonhos e a possibilidade de um futuro. E que vidas indígenas importam.
* Enock Taurepang, vice-coordenador geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização que atua nas 35 terras indígenas de Roraima, atendendo uma população de 58 mil indígenas das etnias Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona, Sapará, Taurepang, Wai-Wai, Yanomami, Yekuana e Pirititi.
janeiro 2023 | Mudanças Climáticas, Povos Tradicionais
Eduardo Souza Lima
Jornalista e articulista
Maria Paula Fernandes
Jornalista e diretora da Uma Gota No Oceano
Bastou a Terra voltar a ser redonda para o mundo dar voltas. Lula e Raoni, que subiram a rampa do Planalto de braços dados, estavam em lados opostos em 2011, quando a gente começou a testemunhar essa história: o primeiro, como fiador da construção de Belo Monte, enquanto o segundo era uma das vozes mais ativas contra aquela monstruosidade. Coincidência ou não, as duas palavras que caracterizaram o movimento contra a usina, união e reconstrução, viraram mote do governo; e um conceito nascido na floresta, o socioambientalismo, foi adotado como inspiração.
União e reconstrução: milhares de cidadãos brasileiros que viviam às margens do Rio Xingu, um dos mais importantes afluentes do Amazonas, tiveram que refazer suas vidas por causa de Belo Monte, no Pará. A hidrelétrica não só tornou mais miserável as vidas dos povos indígenas que moram na região da Grande Volta, como as de ribeirinhos, extrativistas, quilombolas e até mesmo da população urbana da maior cidade local, Altamira. Unidos, os movimentos sociais se fortaleceram e acabaram se tornando determinantes na oposição mais eficaz contra o último governo, que já foi tarde e deixou muito estrago.
Que a usina, como ferida aberta na floresta, sirva de advertência para evitar novos erros; mas, passados mais de 10 anos, existem demandas mais urgentes. A devastação promovida na Amazônia nos últimos quatro anos é motivo mais que nobre para rever pensamentos e promover reconciliações. A paz é elemento fundamental para uma reconstrução sólida. “Eu decidi participar para mostrar para todo mundo que agora não é mais tempo de ódio”, disse Raoni sobre sua presença na cerimônia de posse. É uma causa acima de diferenças, mesmo que justificáveis. Hoje, os povos da floresta também governam.
“Ninguém conhece melhor nossas florestas nem é mais capaz de defendê-las do que os que estavam aqui desde tempos imemoriais. Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental”, reconheceu Lula em seu discurso de posse no Congresso Nacional, ao anunciar a criação do tão esperado Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Quem assume a pasta é ex-coordenadora executiva da Apib, candidata à vice-Presidência da República em 2018 e deputada federal recém-eleita Sonia Bone Guajajara. Guerreira de metro e meio que se agiganta diante do maior galalau, Sonia Guajajara foi uma voz fundamental para tornar a causa indígena brasileira conhecida em todo o mundo. Não à toa, foi eleita uma das cem pessoas mais influentes de 2022 pela revista “Time”.
A Funai agora se chama Fundação Nacional dos Povos Indígenas (e não mais “do Índio”) e foi vinculada ao MPI. Cabe à instituição demarcar territórios e Joênia Wapichana será, mais uma vez, pioneira, ao se tornar não só a primeira indígena, como também a primeira mulher a ocupar sua presidência. Ela também foi a primeira advogada indígena a exercer a profissão no Brasil e a primeira a ocupar uma cadeira na Câmara Federal. Mestre pela Universidade do Arizona (EUA), Joênia fez a defesa oral do caso da demarcação da Serra Raposa do Sol frente ao STF, um marco na luta pelos direitos dos povos originários.
Já o conceito de socioambientalismo nasceu a partir de ações de Chico Mendes (1944-1988). O Patrono Nacional do Meio Ambiente percebeu que, entre os milhões de seres vivos que compõem essa explosão de biodiversidade que é a Amazônia, está o Homo sapiens. Ele está por lá há pelo menos 14 mil anos, vivendo em harmonia como seus demais companheiros de ecossistema. Seres humanos e floresta são indissociáveis. Povos tradicionais não a prejudicam; ao contrário, cuidam dela.
Esta ideia chegou ao governo por sua conterrânea e discípula acreana Marina Silva, outra ambientalista reconhecida no mundo inteiro. Ainda na primeira gestão de Lula, como ministra do Meio Ambiente, ela se inspirou nesse pensamento para experimentar outro conceito, o da transversalidade. O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDam), que deve ser retomado, é o melhor exemplo de gestão transversal – pois atravessa ministérios, instituições diversas, governos estaduais e municipais – bem-sucedida: reduziu o desmatamento na região de 27 mil km² em 2004 para 4,5 mil km², em 2012.
A visão socioambiental de Marina a guiou também na criação do Fundo Amazônia, ainda na primeira passagem pelo Ministério do Meio Ambiente e, este ano, da novíssima Secretaria Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável, no agora rebatizado Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Seu objetivo é apoiar os povos e comunidades da floresta em seu trabalho imprescindível de preservação do verde e, por conseguinte, ao equilíbrio climático. Já os quilombolas, que desenvolveram técnicas sustentáveis de regeneração de solos, terão secretarias próprias no Ministério da Igualdade Racial, comandado por Anielle Franco, e no de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, chefiado por Paulo Teixeira – que também vai abrigar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Nos últimos quatro anos a Amazônia foi devastada como nunca e não adianta fingir que nada aconteceu. É preciso regenerar, replantar, reconstruir, unir e pacificar. Os povos da floresta estão chegando ao poder neste governo, mas vão precisar de toda ajuda possível, pois os desafios são imensos. O povo brasileiro forma um ecossistema dos mais sofisticados, porque diverso, e tem que fazer parte dessa transversalidade. Não “tá tudo dominado” enquanto tudo não estiver interligado.
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dezembro 2022 | Biodiversidade, Desenvolvimento Sustentável, Direitos humanos
Diz a sabedoria popular que o apressado come cru. No fim do ano passado, sugerimos que 2022 fosse usado para semear esperança e votos. Nada de pressa agora: a colheita fica para depois de 2023. Primeiro precisamos cuidar bem das sementes e mudas que plantamos, regá-las todo dia com carinho, regenerar terrenos, tornar o solo novamente fértil. Só assim elas irão florescer. Há muito a ser feito na terra arrasada que o país se tornou.
A começar por reestruturar o Ministério do Meio Ambiente, que precisa voltar a contar com a participação da sociedade civil, e apoiar os indígenas na criação do Ministério dos Povos Originários, mas também garantir a proteção dos quilombolas, extrativistas e ribeirinhos, cujos direitos foram ignorados ao longo dos últimos anos. Só assim vamos garantir safras saudáveis pelas próximas décadas.
Destruir é mais rápido e fácil que construir. Calcula-se que a Amazônia, como conhecemos hoje, formou-se há pelo menos 2 milhões de anos. Seus 6,7 milhões km² de área permaneceram praticamente intocados até meados dos anos 1970. A partir daí, a motosserra pintou e bordou: segundo um estudo do Mapbiomas, em apenas 37 anos – entre 1985 e 2021 – ela perdeu 750 mil km². Dá 11% de sua área original e pouco menos que um Chile inteirinho.
O Brasil é o país que mais desmatou, com 19% da Amazônia posta abaixo, bem perto do ponto de não retorno, calculado pelos cientistas entre 20% e 25%. Em setembro passado, foi descoberta, na fronteira do Amapá com o Pará, a árvore mais alta da floresta, um angelim vermelho de 88,5 metros de altura. Ela tem pelo menos 400 anos de idade que poderiam ser abreviados em minutos por um espírito do mal.
Assim como “liberdade”, a palavra “narrativa” costuma de ser dita por gente que não entende, ou finge não entender, seu significado. Mais importante que o novo presidente que escolhemos é o que ele prometeu em campanha, a narrativa que escolheu. E ela é baseada nos anseios de qualquer pessoa que sabe da sinuca de bico em que o mundo se meteu: economia sustentável, desmatamento zero, terras indígenas demarcadas – as primeiras já foram escolhidas –, participação da sociedade civil, biotecnologia, a opção pela ciência, fontes de energia verdadeiramente sustentáveis e o fim do garimpo e do contrabando de madeira. E, claro, democracia. Poderemos e devemos cobrar – incluindo a nossa participação na tomada das decisões mais importantes. Nós votamos num projeto.
Já os compromissos assumidos pelo governo que ora já vai tarde, só quem não estava bem-informado queria ver cumpridos. E olha que os resultados foram impressionantes: a Amazônia perdeu 45.586 km² em apenas quatro anos. E quem achasse ruim era exonerado. Outro relatório do Mapbiomas aponta que as áreas de garimpo dobraram entre 2010 e 2021 no Brasil e que 91% dessa exploração está concentrada na Amazônia, especialmente em áreas protegidas. Nas terras indígenas, por exemplo, o garimpo cresceu 632% nesse período. Além do garimpo, a mineração industrial, a agropecuária e o avanço da infraestrutura urbana foram justamente as atividades mais favorecidas com a política ambiental adotada na administração que se despede, que afrouxou regras de licenciamento ambiental, não demarcou nenhuma terra indígena ou quilombola, e levou à UTI órgãos de fiscalização como o Ibama e o ICMBio.
“O Brasil voltou”, cantaram na COP27. Mas, para que tenha voltado para ficar, é preciso plantar não pensando somente na próxima safra. Vamos cuidar de nossas mudinhas e sementes com muito cuidado e carinho para garantir a colheita de um futuro social e ambientalmente mais justo. Que 2023 seja regido pelo afeto.
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Semeadura
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