Reconstruindo o caminho para o futuro

Reconstruindo o caminho para o futuro

Destruir é mais fácil que construir. Foram necessários 3 bilhões de anos para a Floresta Amazônica se formar e ela se manteve relativamente intocada até os anos 1980, quando a coisa degringolou. Segundo o Mapbiomas, até 2021 ela já havia perdido 17% de sua vegetação nativa. Durante o governo (sic) anterior, foi abaixo toda a estrutura que cuidava de sua preservação e, junto com ela, 35.193 km² de mata. Por isso, 2023 foi, antes de mais nada, o ano da reconstrução; porém de esperança também: entre janeiro e novembro foi registrada uma queda de 62% no desmatamento, a menor desde 2017. Podem espoucar a champanhe, mas lembrem-se que cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém.

Reconstruir o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) foi uma obra regida pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, em retorno triunfal à frente de trabalho ambiental. O novo governo começou com o pé direito logo na subida do presidente Lula na rampa do Planalto, de braços dados com Raoni. Depois vieram a volta de Marina, a criação do Ministério dos Povos indígenas – sob a batuta de Sonia Guajajara – o comando da Funai foi entregue à Joênia Wapichana e a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) a Ricardo Weibe Tapeba – todos indígenas, seguindo o lema que os povos defendem: nada sobre eles sem eles. 

Os quilombolas também ganharam representatividade nos ministérios da Igualdade Racial e do Desenvolvimento Agrário e, finalmente, deram o primeiro passo para sair da invisibilidade em que vivem há mais de 350 anos com o primeiro Censo do IBGE a incluir os quilombos. Dados fundamentais para a formulação de políticas públicas voltadas para esse povo tradicional, que também é fundamental para a preservação da biodiversidade e a regeneração de solos, com suas técnicas ancestrais.

Com essas medidas, o Executivo pretendia retomar o protagonismo do país nas discussões sobre o clima e a preservação ambiental e, ainda em 2023, colheu os primeiros frutos. O Fundo Amazônia, paralisado por quatro anos – por obra e graça do ex-ministro do Meio Ambiente, hoje investigado por contrabando de madeira e outros crimes – foi retomado logo em janeiro e com novos doadores: além de Noruega e Alemanha, entraram para a confraria Reino Unido, União Europeia, Dinamarca, Suécia e Estados Unidos. Mas, peralá, calminha no Brasil! Nem tudo são flores nessa história que deveria ter um desfecho feliz.

Temos hoje o Congresso mais antivida de nossa História e ele não para de aprontar: a menos de 15 dias do fim do ano e a quatro dias do recesso legislativo, a Câmara aprovou uma proposta que flexibiliza o licenciamento ambiental e permite o uso de recursos do Fundo para asfaltar a BR-319, que liga Porto Velho a Manaus, cortando 885 km de floresta – e abrindo caminho para o desmatamento de uma área de florestas maior que o estado de São Paulo. O projeto é comprovadamente desastroso, não apenas ambientalmente, como economicamente. E de nascença: “A BR-319 não tinha nenhum raciocínio econômico. Era tudo paranoia de que a Amazônia seria tomada pela cobiça internacional”, diz o biólogo Philip M. Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Será que os doadores internacionais vão engolir esse agá de nossos parlamentares? Difícil vem, fácil vai. Já foi uma vez.

E tem mais: no último dia 14, deputados federais e senadores derrubaram os vetos do presidente Lula a trechos do PL 2903, incluindo o que cria o “marco temporal” para demarcação de terras indígenas, que já havia sido considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O caso deve voltar à Justiça, mas até a resolução final, garimpeiros e madeireiros ilegais vão fazer a festa. Fora a pressão para a construção de outro desastre artificial, a Ferrogrão, estrada de ferro de 933 km que vai ligar Sinop (MT) ao Porto de Mirituba (PA) e seguir Rio Tapajós adentro, numa hidrovia de riscos mal calculados. Sua única serventia será exportar soja

É como se os congressistas tivessem esquecido que a Amazônia vem enfrentando a pior seca que se tem notícia e o Sul passou por uma temporada recorde de temporais – um ciclone extratropical provocou a maior catástrofe natural no Rio Grande do Sul em 40 anos, além de o aumento de 238% do desmatamento no Cerrado em novembro. Foram destruídos 571,6 km², mais do que o triplo do registrado no ano passado, 168,8 km². O segundo maior bioma do país está virando uma imensa lavoura de commodities. 

Sejamos justos, entretanto: essa amnésia seletiva não atinge só o Congresso brasileiro. A cada ano, o IPCC da ONU apresenta um relatório mais cataclísmico que o outro e as nações continuam postergando soluções. As emissões globais de CO2 devem crescer 1,1% até o fim do ano, de acordo com o Global Carbon Project – o que dá 36,8 bilhões de toneladas. Os efeitos já podem ser sentidos na pele: o serviço climático europeu Copernicus anunciou, no início de dezembro, que 2023 será o ano mais quente já registrado. Novembro foi o sexto mês consecutivo em que recordes de temperatura foram quebrados, chegando a uma média global de 14,22°C. 

Uma semana antes do início da COP-28, António Guterres, secretário-geral da ONU, alertou para a aceleração “absolutamente devastadora” do degelo da Antártida. Segundo o National Snow and Ice Data Center (NSIDC), em julho, o gelo marinho que cerca o continente estava 2,6 milhões km² abaixo da média de 1981 a 2010, uma perda de quase uma Argentina em superfície. Esse derretimento acaba influenciando na perda das geleiras terrestres, o que, por sua vez, influencia diretamente no aumento do nível do mar.

Não é ficção científica: daqui a pouco a água vai bater em nossas canelas. Até 2050, centenas de grandes cidades costeiras vão perder terreno – literalmente. Falemos do Brasil: no Rio de Janeiro, as projeções mais pessimistas indicam uma elevação do mar em 20 cm até meados do século e 48 cm até o fim dele; em Belém, serão 21,6 cm e 49 cm; e em São Luís e Fortaleza, 50 cm até 2100. Bairros inteiros vão ficar submersos.

Apesar de tantos alertas vermelhos, a COP de Dubai foi praticamente um showroom da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Convidado para entrar no clube, o governo brasileiro esqueceu parte das promessas que fez e liberou o leilão de 21 blocos para exploração de petróleo e gás na Amazônia. O Instituto Internacional Arayara lançou um relatório que aponta que 15 Unidades de Conservação, 23 terras indígenas e cinco territórios quilombolas serão afetados. Em que pese os seus acertos, o presidente Lula tem uma relação ambígua com o meio ambiente – quiçá porque sua formação vem do chão de fábrica e não do de terra.

Se boas novas vieram de Dubai foi a crescente participação dos povos originários, quilombolas e extrativistas, mostrando que os movimentos populares dos povos da floresta precisam ser não apenas ouvidos, mas reconhecidos como parte da solução. Já sabíamos que não seria fácil, e não será. Mas é como se diz, enquanto tem bambu, tem flecha. Em 2024, precisaremos nos unir aos guardiões da floresta pelo que temos de mais importante a construir no momento: um futuro. Mãos à obra. 

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Clima de fim de festa

Amazônia em colapso

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Precisamos ver a Terra como uma grande aldeia

Precisamos ver a Terra como uma grande aldeia

Por Toya Manchineri*

Nós, povos indígenas, vivemos na Amazônia há 14 mil anos, sem causar destruição. Ao contrário: como temos consciência de que somos parte da floresta, ajudamos a transformá-la no gigante vital para o planeta. Vemos nossas terras como um espaço de convivência de todos e usamos seus recursos coletivamente e pensando nas gerações futuras. A forma desordenada de exploração adotada por outros povos causou esse colapso climático, social e ambiental. Logo, não há ninguém mais capacitado do que nós para cuidar desse bem que pertence a toda Humanidade.

O Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) é uma ferramenta da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), criado por decreto em 2012. É tão importante para nós que muitas comunidades o chamam de Plano de Vida; uma construção coletiva que trata não só da utilização da terra, mas de nossa organização social: da proteção do território ao fortalecimento de nossa identidade cultural. Uma forma de os indígenas mostrarem para a sociedade não indígena que é possível usar as riquezas naturais para todos, desde que se respeite a capacidade de regeneração da terra.

Vemos países desenvolvidos com população de rua grande e faminta; ao mesmo tempo 1% das pessoas mais ricas do mundo emitem a mesma quantidade de CO₂ que as 66% mais pobres. Temos que distribuir irmanamente nossas riquezas e a explorá-las com sabedoria. Sempre fizemos o manejo sustentável da terra; cultivávamos em uma área e depois mudávamos para outra, para deixar o solo descansar – um saber ancestral. Mas não estamos parados no tempo: incorporamos a ele técnicas não-indígenas. 

É preciso que não só os indígenas, mas todos, unam seus saberes e tecnologias. Sozinhos não somos capazes de travar o aquecimento global. A emergência climática chama os povos da Terra para essa aliança. Precisamos proteger nossa casa, que é o lugar mais importante e sagrado para todos. E os governantes têm o dever de nos chamar para participarmos não só dos debates e decisões sobre desenvolvimento econômico, mas da repartição de benefícios – e acesso ao financiamento climático

O Governo Federal está ouvindo a sociedade civil sobre o programa de transição energética e o desenvolvimento da bioeconomia. Sem dúvida é um passo importante para o país, para a Amazônia e para povos indígenas; mas são as nossas terras que conservam e preservam grande parte das florestas. Por isso, temos que estar diretamente envolvidos em todos os debates sobre essa transformação, como a implantação do REDD, mecanismo concebido com o objetivo de reduzir emissões de CO₂ provenientes do desmatamento, por meio de incentivos financeiros. Não podemos ficar à margem dessas decisões.

Se fomos capazes de manejar essa floresta por mais de 14 milênios e dela depende o futuro do planeta, por que não estamos presentes nesse espaço? Nós cuidamos de 80% da biodiversidade do planeta, mas temos acesso a 1% do financiamento climático global. Enquanto isso, os recursos beneficiam quem está acelerando o colapso climático e financiando a pressão contra nossos territórios.

O desafio está posto. E, para isso, garantir o direito dos povos indígenas à sua terra é o primeiro passo na busca do bem-comum. É preciso que todos os povos vejam a Terra como uma grande aldeia.

*Toya Manchineri é Coordenador da Coordenação das Organizações indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Liderança do povo Manchineri, no Acre, está presente na COP28.

Transição energética e a seca

Transição energética e a seca

Especialistas já avisavam que hidrelétricas poderiam interferir no curso dos rios e na dinâmica dos ciclos de cheia e vazante

Por Ricardo Baitelo*

Será que precisamos mesmo explorar petróleo na Foz do Amazonas para bancar nossa transição energética? A produção de energia eólica e solar cresce de vento em popa e de sol a sol. Como estamos falando de futuro, é bom lembrar que o mito de que “hidrelétrica é energia limpa” ficou no século passado. Belo Monte está aí para provar isso. E o agravamento das mudanças climáticas — que impõe aos rios da Amazônia a maior seca da História e, no início do mês, levou a Hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira, a desligar as turbinas — reforça esse alerta.

Como contra-argumento à construção de Belo Monte, que está matando o Rio Xingu, já falávamos sobre o potencial das fontes renováveis. Quando a obra começou, já havia acontecido o primeiro leilão de energia eólica. Os primeiros leilões de fotovoltaicas saíram entre 2013 e 2014.

Previa-se que sol e vento tivessem uma participação relevante na descarbonização da matriz energética brasileira em 2050, mas isso aconteceu já nesta década. Nos últimos dois anos, as fontes eólica e solar passaram de 30 GW para mais de 60 GW de capacidade instalada. De agosto de 2022 a agosto de 2023, foram quase 20 GW de crescimento de energia solar distribuída, fazendas solares e parques eólicos, avanço que corresponde ao previsto por projeções governamentais passadas para um período de dez anos — superando o que Belo Monte produz por ano.

Entre os fatores que puxaram esse crescimento, estão incentivos às fontes e condições para sua competitividade nos leilões de energia; a evolução do mercado livre e a aprovação de um marco legal para geração distribuída, que passou a ser respaldada por uma lei federal. A redução de incentivos também provocou uma corrida para a instalação de sistemas fotovoltaicos em 2022.

Mas é preciso que haja planejamento e equilíbrio nessa transição. A instalação de parques eólicos vem causando impactos socioambientais no Nordeste, onde, segundo o MapBiomas, 40 quilômetros quadrados de Caatinga foram desmatados só em 2022 para a construção de complexos eólicos e solares. Isso sem falar em contratos injustos de arrendamento de terras.

O próximo passo para que o Brasil descarbonize sua geração de energia a partir de uma transição justa é aperfeiçoar os critérios socioambientais de aprovação e instalação desses projetos, que muito em breve dividirão o protagonismo da matriz brasileira com as hidrelétricas, altamente vulneráveis a secas e cheias extremas, cada vez mais frequentes.

O cenário atual de seca na Região Norte era previsto. Especialistas já avisavam que o regime hídrico seria impactado cada vez mais por fenômenos climáticos, que as hidrelétricas poderiam, no longo prazo, interferir no curso dos rios e na dinâmica dos ciclos de cheia e vazante e que as mudanças climáticas reduziriam a produção de energia de hidrelétricas na Amazônia. Enquanto os dias de sol e calor batem sucessivos recordes, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) paralisa hidrelétricas por causa da seca e usa diesel para suprir a demanda. A estratégia do governo contra a seca foi acionar termelétricas — elevando nossas emissões, agravando a crise do clima e afastando o Brasil do Acordo de Paris.

O problema de situações de crise é que raramente há alternativas milagrosas de curto prazo. Mas podemos aprender com as oportunidades, para que o cenário não se repita — e para que regiões do país não fiquem vulneráveis em cenários de seca e sujeitas ao acionamento de termelétricas poluentes e caras.

Uma transição energética justa pode fazer a diferença na busca do Brasil por um papel de protagonista global. Para isso, ela deve acompanhar um debate que envolva a proteção das populações tradicionais e a biodiversidade. Afinal, os bons ventos precisam chegar ao país inteiro, e o sol brilhar para todos.

*Ricardo Baitelo, doutor em planejamento energético pela Escola Politécnica da USP, é gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente

Sinais que vêm do céu

Sinais que vêm do céu

Por Mariazinha Baré e Toya Manchineri*

Os povos indígenas conhecem a Amazônia como a palma da mão. Não se trata de força de expressão; é um conhecimento fundamentado em incontáveis milênios de convivência harmônica. Nossa ciência segue os mesmos princípios que a dos não indígenas: observação, questionamento, formulação de hipótese, experimentação, análise e conclusão. Foi assim que nossos ancestrais ajudaram a natureza a cultivar a maior floresta tropical do mundo – e é assim que concluímos que o modelo de desenvolvimento adotado para a região traria consequências catastróficas. Não é de hoje que observamos os efeitos das mudanças climáticas e alertamos sobre suas causas.

Esta semana, o Rio Negro em Manaus chegou ao seu menor nível desde 1902. A Amazônia está passando pela mais grave seca em 43 anos: a falta de água impacta os 63 povos indígenas do Amazonas. Rondônia, Pará e Roraima também enfrentam uma vazante extrema, enquanto o Acre decretou emergência nos seus 22 municípios. As lavouras estão murchando e, os peixes, morrendo. Os rios secos impedem o acesso às aldeias; eles são nossas ‘estradas’.

Enquanto isso, a floresta arde em chamas e o problema não é só nosso: a mesma fumaça que nos sufoca faz o dia virar noite em Manaus. E a água que falta à Amazônia cai sem parar no sul – em Santa Catarina, em 15 dias choveu mais do que o esperado para todo o mês de outubro. Indígena ou não, a ciência comprova que a estiagem no norte do Brasil e os temporais na Região Sul estão interligados. Porém, mesmo com os sinais que vêm do céu, os políticos não parecem dispostos a mudar o rumo

Em setembro, o Congresso enviou para sanção presidencial o Projeto de Lei 2903, que o presidente Lula tem até sexta (20/10) para vetar. Além de desafiar o STF, que julgou inconstitucional o marco temporal para demarcação de nossas terras, o PL expõe nossos territórios à mineração e ao agronegócio, acelerando a devastação das florestas e agravando os impactos das mudanças climáticas. Tudo que alertamos há tempos, virou um apelo da Mãe Terra

Esse apelo precisa ser ouvido não só em Brasília, mas também nos estados que compõem a Amazônia brasileira. O Amazonas, por exemplo, que detém a maior população indígena do país e a maior área de floresta preservada, decidiu tomar o sentido contrário. O governo estadual anunciou que os Mura deram aval para a mineradora Potássio do Brasil explorar a terra deles, o que não é verdade: os poucos que o fizeram não representam a vontade do povo Mura e sua população de 12 mil indígenas. E tampouco dos que vivem na Terra Indígena Soares/Urucurituba, a mais afetada e que está em processo de demarcação. As reuniões da empresa com os indígenas sequer respeitaram o protocolo de consulta dos povos e a Convenção 169 da OIT. O nome disso é aliciamento. 

Os sintomas mais conhecidos da extração de potássio são imensas crateras que tomam o solo e ameaçam lençóis freáticos, mas há um pior: abrir caminho para a mineração em terras indígenas, um dos efeitos colaterais do PL 2903. Por isso, estamos determinados a evitar esse desastre anunciado, cobrando o veto integral ao PL 2903, a demarcação das terras indígenas e a declaração de uma emergência climática na Amazônia. 

Afinal, nossos territórios são as principais barreiras contra o desmatamento – apenas 1% de vegetação nativa foi derrubada dentro deles nas últimas três décadas. Nós somos a verdadeira transição ecológica: representamos os 5% da população do planeta que protegem 80% de sua biodiversidade. E somos os que mais sofrem com os efeitos dos fenômenos climáticos extremos

A Terra é morada de todos os povos; cuidar dela não é um dever só nosso. Não precisa ser cientista para saber que, se Amazônia desaparecer, nós, povos da floresta, não seremos os únicos afetados. A contagem regressiva para o seu ponto de inflexão não cessa. Quantas crises ainda enfrentaremos para que todos – a começar pelos governantes – façam sua parte?

*Mariazinha Baré é coordenadora da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), que representa os 63 povos indígenas do Estado do Amazonas

*Toya Manchineri é coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que representa 180 povos indígenas da Amazônia

Atualização: No fim da tarde desta sexta-feira, 20, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou parcialmente o PL 2903/2023. Com a decisão, foi barrado o ponto principal do projeto, que estabelecia o limite das demarcações em 1988.

  Links relacionados:

Governador do AM cooptou indígenas Mura para favorecer gigante da mineração, denunciam lideranças

https://www.brasildefato.com.br/2023/10/12/governador-do-am-cooptou-indigenas-mura-para-favorecer-gigante-da-mineracao-denunciam-liderancas 

Lobby da mineração busca cooptar indígenas no Amazonas

https://vocativo.com/lobby-pro-mineracao-busca-cooptar-indigenas-no-amazonas/ 

Indígenas falam em pressão para apoio à exploração de potássio em Autazes

https://www.bandnewsdifusora.com.br/indigenas-falam-em-pressao-para-apoio-a-exploracao-de-potassio-em-autazes 

More insane pictures of Russian potash mining destruction

https://www.mining.com/more-insane-pictures-of-russian-potash-mine-disaster-43899/ 

Mega-projeto para exploração de potássio no Amazonas gera controvérsias

https://brasil.mongabay.com/2020/01/mega-projeto-para-exploracao-de-potassio-no-amazonas-gera-controversias/ 

Amazon’s Indigenous people urge Brazil to declare climate emergency as rivers dry up

https://www.reuters.com/business/environment/amazons-indigenous-people-urge-brazil-declare-climate-emergency-rivers-dry-up-2023-10-10/  

Articulação de indígenas do AM pede que governos declarem emergência climática diante de seca

https://oglobo.globo.com/blogs/lauro-jardim/post/2023/10/articulacao-de-indigenas-do-am-pede-que-governos-declarem-emergencia-climatica-diante-de-seca.ghtml 

Indígenas da Amazônia pedem que governo declare emergência climática em meio à seca grave

https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/10/indigenas-da-amazonia-pedem-que-governo-declare-emergencia-climatica-em-meio-a-seca-grave.shtml 

União reconhece emergência nas 22 cidades do Acre devido à seca extrema

https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2023/10/17/uniao-reconhece-emergencia-nas-22-cidades-do-acre-devido-a-seca-extrema.ghtml 

As Terras Pretas de Índio da Amazônia: o entendimento de sua formação e evolução

https://www.embrapa.br/busca-de-projetos/-/projeto/31443/as-terras-pretas-de-indio-da-amazonia-o-entendimento-de-sua-formacao-e-evolucao

Sobe para mais de 24 mil o número de desabrigados em 78 municípios de SC

https://www.defesacivil.sc.gov.br/noticia-destaque/sobe-para-mais-de-24-mil-o-numero-de-desabrigados-em-78-municipios-de-sc/ 

Mais de 26 mil pessoas seguem desabrigadas em Santa Catarina e a cidade de Taió decreta calamidade pública por conta das chuvas

https://www.defesacivil.sc.gov.br/noticia-destaque/mais-de-26-mil-pessoas-seguem-desabrigadas-em-santa-catarina-e-a-cidade-de-taio-decreta-calamidade-publica-por-conta-das-chuvas/ 

Chuvas em SC: estado confirma novas mortes, 145 municípios afetados e Rio do Sul decreta estado de calamidade pública

https://www.defesacivil.sc.gov.br/noticia-destaque/chuvas-em-sc-estado-confirma-novas-mortes-145-municipios-afetados-e-rio-do-sul-decreta-estado-de-calamidade-publica/ 

Com chuvas no Oeste, SC tem risco alto de inundações e segue com chance de deslizamentos

https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2023/10/18/com-chuvas-no-oeste-sc-tem-risco-alto-de-inundacoes-e-segue-com-chance-de-deslizamentos.ghtml 

Amazônia em colapso

Amazônia em colapso

Por Vinícius Leal e Monica Prestes

Focos de queimadas por todo lado, fumaça encobrindo florestas e cidades, rios secando em uma velocidade nunca antes registrada, provocando a mortandade de animais, com recordes de temperatura dentro e fora da água. No desidratado lago de Tefé, no Médio Solimões, interior do Amazonas, onde mais de 120 botos morreram desde a semana passada, a água chegou a 40°C, oito acima da média. Enquanto isso, os termômetros em Manaus bateram o recorde histórico três vezes em uma semana. 

Fenômenos naturais que ensinaram as populações amazônidas a serem resilientes, como as ‘terras caídas’, erosão nas margens dos rios provocada pela vazante, este ano estão ganhando dimensões e contornos dramáticos, com desbarrancamentos engolindo casas e ruas, tragédia que aconteceu em Beruri, no interior do Amazonas, e que ameaça outras comunidades às margens dos rios Purus, Amazonas e Solimões. 

Cidades inteiras, cujo acesso só se dá pelos rios, correm o risco de ficar isoladas – 40 dos 62 municípios do Amazonas já decretaram emergência. Único meio de transporte em muitas delas, barcos e balsas estão encalhados nos leitos dos rios, carregados com alimentos, mantimentos e medicamentos que, em breve, devem faltar na mesa dos mais pobres e pesar no bolso de quem ainda puder pagar por eles. E sabe o que já está faltando? Água potável. Na maior bacia hidrográfica do mundo. 

Um cenário apocalíptico que é resultado das mudanças climáticas somadas ao aquecimento anormal do Atlântico, e que ainda devem receber o reforço do El Niño nos próximos meses. Fórmula que transformou a tragédia, antes anunciada, numa rotina, com uma sucessão de notícias e cenas estarrecedoras, que chocam até quem é da região e convive com o ciclo das águas todos os anos, e trazem um alerta: a Amazônia está entrando em colapso.

 De 2009 pra cá, a Amazônia vem enfrentando sucessivos recordes de cheias. As enchentes extremas do Rio Negro – quando seu nível ultrapassou a marca de 29 metros –, que aconteceram três vezes entre 1989 e 2008, triplicaram nos últimos 15 anos. Apesar dos inegáveis impactos das cheias, é a vazante dos rios que mais castiga a Amazônia. E os intervalos entre as secas extremas também vêm diminuindo. 

Desde 1902, quando a medição do Rio Negro começou a ser feita no porto de Manaus, a cota mínima só ficou abaixo de 15 metros nove vezes. Em duas dessas ocasiões – 2010, ano da maior seca já registrada, e 1963 – o Negro chegou a menos de 13 metros. O diferencial de 2023 é que em nenhuma dessas secas a vazante se deu num ritmo tão intenso: desta vez, o rio chegou a baixar mais de 30 centímetros por dia durante duas semanas consecutivas. 

Com o rio em 14,90 metros, esta vazante já é a 9ª maior em 121 anos e o rio deve seguir baixando até meados de novembro. Com chuvas abaixo da média nos próximos três meses, os impactos podem se estender até 2024 e os rios ‘podem não se recuperar’ nem no próximo ciclo de cheia, alertam pesquisadores. Se as previsões se confirmarem, os rios Negro, Solimões, Purus, Madeira e Amazonas devem ter a maior seca da história, afetando milhões de vidas, humanas e não humanas – a fauna é extremamente sensível, dependente das águas. Só no Amazonas já são mais de 257 mil pessoas afetadas e podemos chegar a 500 mil em toda a região. 

O cenário é dramático também na bacia do Rio Branco, no Acre, onde há falta de água potável e a produção rural despencou. Em Rondônia, a vazante do Rio Madeira levou o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a suspender as operações na Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, a quarta maior do país – mesmo risco de paralisação que vem sendo monitorado nas hidrelétricas do Amapá.

Até o principal vetor de desmatamento da Amazônia está sendo afetado: no sudeste do Pará, o pasto morreu e produtores de gado não têm como alimentar os animais. Mais de 100 já morreram de fome, numa estiagem que castiga há meses as calhas dos rios Araguaia e Tocantins. Segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), 79 municípios da Região Norte tiveram mais de 80% de suas áreas agrícolas impactadas pela seca. E quando os ‘rios voadores’, que alimentam o agronegócio do Centro-Oeste, também secarem? 

Especialistas alertam que essa tragédia sem precedentes que assola a região é uma pequena amostra do que pode acontecer quando a Amazônia atingir o ponto de não retorno. O que, pelos cálculos da ciência, está bem perto de se concretizar. Já desmatamos 19% da floresta e o ponto de inflexão se dará quando atingirmos entre 20% e 25% de desmatamento no bioma.

Confirmando as previsões da ciência, indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhos estão entre as primeiras populações afetadas. É o que chamam de racismo ambiental: apesar de serem responsáveis pela proteção de 80% da biodiversidade do planeta e de mais de um terço das florestas do Brasil, os povos tradicionais seguem à margem dos debates e decisões políticas que os impactam. 

Foi assim com o Projeto de Lei (PL) 2903, proposta recheada de inconstitucionalidades que abre as terras indígenas, últimas barreiras contra o desmatamento, para o agronegócio e mineradoras – o que deve agravar ainda mais as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e os impactos das mudanças climáticas. O projeto de lei, que passou pelo Senado e foi enviado para sanção presidencial em uma velocidade maior do que a vazante dos rios, teve o apoio da maioria da bancada da Amazônia no Senado: apenas seis dos 27 senadores dos estados da Amazônia Legal votaram contra a proposta, que foi rechaçada pelos movimentos indígena, quilombola e extrativista, que apoiaram a eleição de Lula e agora esperam que ele vete integralmente o texto.  

Outra ameaça que pode agravar a crise ambiental na Amazônia é a decisão do governo federal de explorar petróleo no Amapá, que vai de encontro às metas assumidas pelo Brasil no Acordo de Paris e a todos os alertas do IPCC e da Agência Internacional de Energia para evitar o aumento da temperatura média global.  

A demarcação e proteção de terras de povos tradicionais, a elaboração de planos de mitigação baseados na justiça climática, a promoção de uma transição energética sustentável e a construção de um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia que considere direitos e conhecimentos dos povos tradicionais são parte da solução. Mas é preciso agir rápido, pois a roda do fim do mundo parece já ter começado a girar. Sem água e sufocada, – não pela falta de oxigênio, como na pandemia, mas pela fumaça das florestas em chamas – até quando a Amazônia terá fôlego para resistir?

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