Um norte para o Brasil

Um norte para o Brasil

A desinformação está empurrando a maior floresta tropical do mundo para o seu ponto de inflexão. Se isso acontecer, a Amazônia deixará de prestar os serviços ambientais vitais que ajudam o planeta a manter o clima equilibrado. Pior: ela pode se transformar em uma fábrica de proporções continentais de gases de efeito estufa e agravar ainda mais a situação. E daí é ladeira abaixo em velocidade galopante até se concretizar a previsão de que a floresta vai virar deserto. Ou, para sermos mais exatos, uma enorme savana.

Do ponto de vista de pesquisadores de uma outra ciência, a da comunicação, boa parte da Amazônia já é um deserto – de informações. É assim que o Atlas da Notícia, um censo da imprensa brasileira, classifica os municípios que não têm nenhum veículo de imprensa atuando. Hoje, em todo o país, são cinco em cada dez. A maior parte deles está justamente na Região Norte, onde 63% do território não conta com nenhum tipo de cobertura jornalística; no Amazonas, 35 dos 62 municípios são desertos de notícia.

Cobrir a região demanda muito tempo e dinheiro para vencer distâncias continentais. O levantamento do Atlas aponta a sustentabilidade financeira como um dos maiores obstáculos para resolver o problema, que se concentra, sobretudo, nas pequenas cidades. Como a audiência é insuficiente para custear o funcionamento de jornais, a imprensa fica à mercê de interesses econômicos e políticos.

Quem não vive em território amazônico tem dificuldades de mensurar a dimensão deste desafio. Conta a lenda que, depois de dez dias de viagem, cinco deles presos nos atoleiros das estradas que cortam a floresta, um jornalista recebeu um pedido inusitado do seu editor: “Você poderia voltar lá para regravar as passagens?”. Não passava pela cabeça do chefe que seu repórter precisaria vencer novamente 1.064 quilômetros de estrada de chão e lama, em período de chuva.

Além das longas distâncias, é preciso encarar o vazio do Estado e a presença de criminosos. Cada vez mais organizado, o crime toma conta de ruas e até florestas públicas, controlando quem entra e quem sai e obrigando os profissionais da imprensa a pedir permissão para trabalhar. Há casos em que é preciso mostrar o conteúdo das gravações para obter autorização de saída de uma área dominada. E é nas pequenas cidades do interior que os crimes se concentram, sejam ambientais ou as mortes violentas. Enquanto em 2021 a violência diminuiu no resto do Brasil, na região Norte ela cresceu; quase metade das cidades mais violentas do país estão na Amazônia.

Hoje os riscos à integridade física são iminentes, mas a tecnologia é uma grande aliada. Mesmo assim, há muitos relatos de jornalistas que tiveram drones abatidos a tiros em áreas de preservação desmatadas ilegalmente ou dominadas pelo garimpo ilegal. O assassinato do jornalista britânico Dom Philips enquanto trabalhava no Vale do Javari e as investigações em curso deixam claro o tamanho do risco.

Os desertos de notícia da Amazônia são ricos em sociobiodiversidade. O jornalismo profissional na região pode ser incipiente, mas a comunicação não é. E isso vem da tradição dos povos originários com a transmissão de informação – são povos de cultura oral, que se comunicam uns com os outros e com o meio ambiente onde vivem. Eles pedem permissão para se relacionar com a natureza, numa condição de respeito mútuo, de plena harmonia. E têm sido ouvidos por ela há séculos.

A ausência de vozes dos povos tradicionais na mídia favorece os capitães da devastação do mato pela disseminação fake news sobre a Amazônia. A informação consistente e independente é fundamental para a conscientização da sociedade sobre a importância da floresta e o papel dos amazônidas na sua preservação.

A comunicação da floresta é patrimônio imaterial da Amazônia. E pode apontar o norte para o futuro justo e sustentável da maior sociobiodiversidade do planeta.

 

Saiba Mais:
Atlas da notícia identifica redução de desertos e liderança do jornalismo online no Brasil

Falta de veículos abre espaço para desinformação e reprodução de releases em sites do Amazonas

30 cidades nortistas deixaram de ser desertos de notícias em 2021

14% da população brasileira vive em desertos de notícias

Levantamento inédito do MapBiomas Amazônia mostra que perda de cobertura vegetal em 36 anos equivale a um Chile

Na véspera das eleições, Amazônia tem pior setembro em alertas de desmatamento da série histórica

Amazônia está mais perto de ponto de virada, diz novo estudo

Pauta ambiental some na mídia local da Amazônia

Jogo de cartas marcadas

Jogo de cartas marcadas

por Cláudia Gaigher*

E a bola da vez é… C 2! Após o anúncio, começou a marcação. É um jogo de estratégia onde vence quem ocupar mais espaços. A bola da vez, a C 2, na realidade, é o Parque Estadual do Cristalino II, um dos últimos refúgios de Floresta Amazônica na região do Arco do Desmatamento, entre Mato Grosso e Pará, onde tombaram milhões de árvores nos últimos anos.

O placar de 3 x 2 no Tribunal de Justiça de Mato Grosso deu vitória ao avanço da agropecuária. Empresários têm se valido de ‘brechas’ nas legislações estaduais para questionar os limites e até a criação das Unidades de Conservação (UCs) estaduais, e também do silêncio do Poder Executivo Estadual. “O governo de Mato Grosso teve quatro meses para recorrer dessa decisão e não recorreu. Ou seja, o governo de Mato Grosso decidiu abrir mão de um parque por W.O., ele nem entrou no jogo”, disse a diretora-executiva da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação, Ângela Kuczach.

Uma jogada errada abriu espaço para uma prorrogação quando ‘esqueceram’ de citar o Ministério Público Estadual (MP-MT) no processo, mas a manutenção do Parque Cristalino II está, agora, nos minutos finais dos acréscimos. E, antes mesmo do jogo acabar, abriram uma cicatriz de mais de 1.800 hectares no parque. “Assim que saiu a decisão, houve 10 pedidos para extração de ouro dentro do parque, que impactam 75 mil hectares. É um ataque de gafanhoto. Com isso, abre-se precedentes para outros. Não tenho dúvida que os 18 parques [estaduais] de Mato Grosso, nesse momento, estão passando por um pente fino”, afirmou Kuczach.

Eles miram um ‘strike’. A mesma tática foi usada contra outros dois parques estaduais em Mato Grosso: Serra de Santa Bárbara e Serra Ricardo Franco, este último com 158.620 hectares, criado em 1997, ainda no embalo da Eco 92. Um mosaico ecológico composto por paredões de arenito e mais de 100 cachoeiras em um ecossistema único: o ecótono, área de transição entre a Amazônia, Cerrado e Pantanal. A palavra Ecótono, aliás, vem do grego ‘oikos’ e do latim ‘tonus’. A tradução é algo como “casa onde reina a tensão”.

Em abril de 2017, a Assembleia Legislativa do Mato Grosso aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 2/2017, que extinguia o Parque Serra Ricardo Franco. O MP-MT conseguiu um acordo e o projeto foi engavetado. Mas, em maio deste ano, ele foi desengavetado e teve parecer favorável à extinção, sob o argumento que a área é ocupada por fazendas há mais de meio século.

Acionamos o VAR e eis que, após analisar imagens de satélite, o MapBiomas constatou que 13.731 hectares de florestas foram derrubados depois da criação do parque, o que equivale a nada menos que 86 parques do Ibirapuera. Agora, fazendeiros tentam um acordo para levar no tapetão: indenização por desmatar ilegalmente terras públicas e protegidas para criar gado.

E não é só a biodiversidade única do Mato Grosso que está em jogo, um pedaço de sua história também. Vamos ao jogo da memória: A região das serras Ricardo Franco, Santa Bárbara e o Vale do Guaporé foi ocupada pelos primeiros habitantes da América do Sul, já tendo sido encontrados vestígios da presença humana de 12 mil anos. Lá foi fundada a primeira capital da então província de Mato Grosso, pelos idos de 1752. E foi na Serra Ricardo Franco que, no século 16, surgiram os primeiros quilombos da região, que acolhiam negros e indígenas, e onde ascendeu uma liderança que é símbolo da luta quilombola: Tereza de Benguela, do quilombo Quariterê. A façanha de uma mulher negra que administrou um quilombo como um parlamento 300 anos atrás foi reconhecida com a criação do Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, em 2014.

Três séculos depois, em vez de cavalos e mosquetões, são tratores, motosserras e canetadas as armas usadas pelos novos ‘colonizadores’, que jogam sempre no ataque. E, no jogo das commodities, os povos tradicionais acabam empurrados pra escanteio. Mudam os jogadores, mas as estratégias são as mesmas, e o resultado também: mais devastação e impunidade. Em time que está vencendo não se mexe.

Aproveitando a onda favorável, a Associação de Produtores Rurais da Serra de Santa Bárbara entrou com uma ação na Justiça Federal este ano para extinguir o Parque Estadual Serra de Santa Bárbara, criado em 1997. Alegam décadas da presença de produtores nas terras, mas o parque Santa Barbara é território ancestral dos Chiquitanos, que tiveram a TI Portal do Encantado demarcada em 2010, em território vizinho ao parque.

Os Chiquitanos chamam a Serra de Santa Bárbara de a ‘Coroa do Mundo’ e a consideram um local sagrado, morada das nascentes e do ‘hitchi’ das águas, protetor dos rios. Para os indígenas, os ‘hitchis’ são a alma dos elementos da natureza e a destruição deles pode levar a nocaute a vida na terra. Pensamento parecido têm os Nambiquara, outro povo que habita a região e para quem os espíritos da floresta detêm a sabedoria ancestral: sem floresta, não há futuro.

E para quem prioriza os cifrões, um estudo da Conservação Internacional revelou que, além dos serviços ambientais, os parques e UCs podem alavancar a economia, pois para cada real investido em uma UC, R$ 7 retornam. Para ter uma ideia, no ano passado os parques nacionais receberam 16,7 milhões de visitantes, que movimentaram R$ 3 bilhões nas regiões das UCs. Nos EUA, que investem na proteção dos parques, esse valor é até sete vezes maior. Outro ‘7×1’.

Mas tem jeito: proteger os parques e aumentar em 20% os visitantes nas UCs brasileiras pode gerar de 15 a 42 mil empregos e movimentar até R$ 1,2 bilhões por ano. Isso sim é uma jogada de mestre: garantir a preservação ambiental, os direitos dos povos ancestrais e a geração de empregos verdes. Bingo!

 

*Cláudia Gaigher é jornalista ambiental, repórter e escritora. Nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, no Espirito Santo, onde começou a sua carreira como repórter na TV Gazeta. Em 1998 se mudou para Mato Grosso do Sul para ser repórter de rede nacional da Rede Globo, baseada em Campo Grande. Foram 24 anos de reportagens nos biomas Pantanal, Cerrado, Mata Atlântica e Amazônia, fazendo reportagens especiais para o Jornal Nacional, Fantástico, Globo Reporter e para outros telejornais nacionais e regionais. Trabalhando na TV Morena, afiliada regional da Rede Globo, percorreu o Pantanal em toda a sua extensão conhecendo as histórias, noticiando descobertas científicas, revelando ao Brasil um pouco da essência pantaneira em importantes coberturas. No Cerrado, que cerca a planície, também mostrou em reportagens as transformações e as belezas desse outro bioma tão importante.

 

 

Saiba mais:

Relatório Final do Projeto Fronteira Ocidental: Arqueologia e História

Quanto Vale o Verde

Relatório Banco Mundial 1992 / Financiamento para Criação de UC’s em MT

Sobre a PDL 02/2017

Tramitação da PDL 02/2017

Ações do MPE garantem bloqueio de valores para recuperação de áreas degradadas 

MPE e Governo do Estado firmam TAC para garantir Proteção do Parque Serra de Ricardo Franco

Nota Técnica Pela Proteção do Parque Estadual Serra Ricardo Franco

Estudo de Caso Parque Ricardo Franco do Greenpeace

 

Rios e redes tecendo culturas

Rios e redes tecendo culturas

Por Vinícius Leal*

Se fosse um país, a Amazônia Legal – que inclui Amazonas, Acre, Pará, Amapá, Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Maranhão e Tocantins –, com seus 5 milhões de km², seria o sexto maior do mundo. A floresta, que se espalha por uma área de 7,8 milhões de km² no total, cobrindo também Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela, Equador, Guiana, Guiana Francesa e Suriname, abriga um terço das árvores do mundo, além de 20% da água doce. Seus serviços ambientais – que vão desde mandar chuva para boa parte da América do Sul a ajudar a regular o clima do planeta – são reconhecidamente inestimáveis. Nossa própria existência depende de sua sobrevivência.

Em 2007, essa jovem senhora de 2,5 milhões de anos de idade, casa de 38 milhões de pessoas (28,1 milhões no Brasil, segundo estimativa de 2020), ganhou uma data comemorativa para chamar de sua: o 5 de setembro. Não é de hoje que ela vem sendo saqueada por gente que não enxerga um palmo de futuro adiante do nariz, mas a pilhagem vem crescendo vertiginosamente nos últimos anos. Por isso, outro fruto da terra, tão valioso quanto a sua biodiversidade, que é a sua cultura multifacetada, plantou a ideia de fazer este Dia da Amazônia não passar em branco, mas em verde. Até o dia 10 acontece uma virada cultural com o objetivo conscientizar a população sobre a necessidade de protegê-la, com eventos em sete estados da Amazônia Legal – e outros 15 Brasil afora.

“É por meio da cultura que a gente aprende a se relacionar com as pessoas, conversar e dialogar e, sobretudo, aprende a aprender. São as culturas dos povos da Amazônia que podem ensinar o que é o bem viver, o que é a política do compartilhamento de bens, saberes e, sobretudo, do compartilhamento daquilo que se colhe da natureza”, explica a jornalista, cineasta e produtora cultural Joyce Cursino, que coordena e integra diversos eventos nos estados da Amazônia dentro da programação da virada cultural. Ou seja, a viver da e na floresta de forma sustentável. E haja povos e culturas diferentes. Só indígenas, são mais de 180, cada qual com conhecimentos próprios.

Há também quilombolas – 873 comunidades, segundo dados preliminares do IBGE, que começou em agosto o primeiro censo oficial desta população –, seringueiros, ribeirinhos, pescadores artesanais, agricultores familiares, piaçabeiros (que vivem da extração da fibra da palmeira da piaçava, utilizada na fabricação de vassouras) e peconheiros, que tiram seu sustento do açaí. E, para que não restem dúvidas, garimpeiros não são um povo tradicional da floresta, como querem alguns. “A cultura amazônida é invisibilizada por um pensamento eurocêntrico, que põe à margem outros saberes e conhecimentos. Não haverá democracia, justiça e transformação social enquanto as culturas dos povos brasileiros não estiverem no centro do debate político, social e ambiental desse país”, reforça Joyce.

Mas se a puseram à margem, essa cultura se espalha de forma literalmente marginal. A Bacia do Amazonas, a maior da Terra, tem 25 mil km de rios navegáveis. Muito antes da invenção da internet era por essa via que ela já circulava e os amazônidas trocavam informações, formando uma espécie de rede. Quem já teve o prazer de fazer uma viagem de barco entre Manaus e Belém, as duas maiores cidades da região, é testemunha desse intercâmbio e diversidade. Cada cidade, comunidade ou povoado tem suas peculiaridades. E mesmo os povos mais antigos sabem que a cultura é dinâmica e que todo conhecimento tem sua utilidade.

A virada cultural pelo Dia da Amazônia acontece não só em cidades da região, como Belém, Manaus, Macapá e Santarém, mas em outras espalhadas pelo Brasil, porque preservar a maior floresta tropical do planeta é do interesse de todos os brasileiros: São Luís, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte também estão na lista. A intensa programação terá atrações gratuitas que vão dos shows musicais a cine-debates, saraus, passeios e mobilização nas ruas; um conglomerado multicultural com mais de 520 atividades espalhadas por 22 estados brasileiros.

Arte e ciência também têm um caráter subversivo do bem, ambas têm o poder de passar mensagens subliminares, que são compreendidas somente por seus destinatários. “A gente acredita no poder da cultura de transformação social, de movimentar imaginários e atingir diversos territórios. A cultura é capaz de ‘hackear’ os sistemas e, através de sua voz, a gente pode falar coisas que muitas vezes são censuradas. Historicamente, a cultura tem um papel muito importante em movimentos sociais e políticos”, explica Helena Ramos, uma das coordenadoras da iniciativa.

A mobilização pró-Amazônia pretende validar a cultura como uma ferramenta de luta pela proteção da floresta e, principalmente, pelo reconhecimento dos povos tradicionais que ajudam a manter essa biodiversidade. E esse reconhecimento começa com a garantia de proteção desses territórios, por meio da demarcação de terras indígenas, titulação de comunidades quilombolas e defesa de outras áreas de proteção ambiental onde vivem ribeirinhos, extrativistas e tantos outros povos amazônicos. Reconhecidamente os guardiões da floresta, as populações tradicionais são capazes de frear a derrubada da mata nativa e, assim, preservar essas áreas altamente vulneráveis. Uma das principais metas da virada cultural Amazônia de Pé é justamente turbinar essa colheita.

“Somos a última geração que pode salvar a Amazônia”, diz o mote da mobilização. Sentiram a responsa? “A ideia é que, na semana do Dia da Amazônia, todos os equipamentos culturais, todos os artistas, onde quer que estejam, falem sobre isso”, diz Helena. Ou seja, o convite é aberto a todos. Mais do que nunca, a Floresta Amazônica precisa que a gente ponha a boca no trombone – e no microfone.

*Vinícius Leal – jornalista com experiência em produção de notícias, redes sociais e comunicação estratégica em meio ambiente e povos tradicionais – é correspondente na Amazônia da Uma Gota no Oceano.

 

Saiba mais:

Programação da virada cultural do Dia da Amazônia nos estados

Mais da metade do desmatamento na Amazônia ocorreu em terras públicas

A concessão de terras para comunidades indígenas é chave para a contenção do desmatamento Amazônia

Amazônia bate novo recorde de desmatamento no primeiro semestre de 2022

Queimadas na Amazônia atingem o maior número desde 2010

Clima mundial piora a partir de 2030, e Amazônia poderá virar floresta seca

As florestas tropicais estão perdendo a capacidade de absorver carbono, aponta estudo

Estudo registra na Amazônia o recorde mundial de poluição por mercúrio

Fatos da Amazônia

Quilombolas no Brasil

A Idade da Floresta

Raio X da Ocupação da Amazônia

Os povos da Floresta

Luz, Câmera, Amazônia

Luz, Câmera, Amazônia

Por Vinícius Leal*

Não é coisa de cinema, muito menos a lei da selva: a luta para se manter vivo na Amazônia é uma rotina real de quem habita a região e não é natural dela. Seja no meio da floresta, na beira do rio ou nas periferias das grandes cidades, cresce o acirramento das disputas pelo controle desses territórios, tomados à força por grupos criminosos ligados ao garimpo, grilagem, narcotráfico, pesca e extração de madeira clandestinas. Violência que vem aumentando a cada ano – das 30 cidades mais violentas do país, dez estão na região amazônica – e que, somada à desigualdade e ao abandono estatal, ocupa os noticiários ao redor do mundo. A dura realidade está se impondo.

Mas esse não é o único espaço que as histórias amazônidas estão conquistando: elas também vêm ganhando notoriedade na produção audiovisual e ocupando um lugar de prestígio no cinema brasileiro e internacional, pondo em evidência não só a narrativa indígena, como alçando os próprios povos tradicionais à condição de diretores, atores, roteiristas e produtores. Olhares e fazeres que ajudam a retratar uma realidade agonizante e febril, mas que também se apresenta resiliente e poética.

“A última floresta” (2021), documentário com elementos de ficção dirigido por Luiz Bolognesi, que assina o roteiro junto com a liderança Yanomami Davi Kopenawa, retrata bem esse cenário: um grupo de indígenas isolados tenta manter vivas suas tradições espirituais enquanto enfrenta e expulsa garimpeiros de seu território. Já disponível na plataforma de streaming Netflix e premiada em diversos festivais de cinema, incluindo os de Berlim e Seul, e no 21º Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, a obra retrata o cotidiano daquele povo no Brasil atual: segundo o último levantamento da Hutukara Associação Yanomami, divulgado em abril, há mais de 20 mil garimpeiros atuando em seu território, situado entre o Amazonas e Roraima, onde vivem cerca de 26 mil indígenas. O ritmo desacelerado do roteiro transmite bem a energia de quem vive dentro da floresta, um leve contraste diante da impactante realidade de fome, miséria e doenças causadas pela tragédia humana da busca incessante por ouro nos garimpos, financiados por grupos de empresários que fornecem aeronaves, combustível e constroem pistas de pouso ilegais – e movimentadíssimas – no meio da mata.

Outra obra cinematográfica que escancara essa Amazônia violentada pelo crime organizado é “O Território” (2022), longa documental que mostra os desafios enfrentados pelos Uru-Eu-Wau-Wau para se manterem vivos em suas terras ancestrais, no estado de Rondônia. Premiado em Sundance e em mais de 10 festivais pelo mundo, o filme, dirigido pelo norte-americano Alex Pritz e com produção executiva de Txai Suruí, jovem indígena que denunciou as violências contra seu povo na COP26, tem previsão de estreia no Brasil em setembro. “O Território” mostra como os próprios Uru-Eu-Wau-Wau arriscam suas vidas num grupo de monitoramento e vigilância constante da floresta para proteger o bioma e suas aldeias de grileiros e invasores, como os que mataram Ari Uru-Eu-Wau-Wau, espancado até a morte em abril de 2020, com destaque para os atores estreantes Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau e Neidinha Suruí, lideranças indígenas da região.

Já “Noites alienígenas” (2022) acabou de ganhar nada menos que seis Kikitos, o prêmio máximo do Festival de Cinema de Gramado, inclusive o de melhor filme. O longa de ficção acreano foi o grande destaque da edição especial de 50 anos do evento, o primeiro presencial depois do início da pandemia, e que homenageou o ator e ativista socioambiental Marcos Palmeira. Dirigido por Sérgio de Carvalho, “Noites alienígenas” traz à cena essa “nova Amazônia urbana”, com facções criminosas disputando “na bala” o comando de bairros e cooptando jovens para se tornarem soldados do narcotráfico – uma realidade já vivida por comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas espalhadas por territórios localizados nas fronteiras do Brasil com o Peru e a Colômbia e, também, nos municípios do interior e nas periferias da Amazônia.

Com estreia comercial prevista para 2023 e um elenco que uniu o veterano Chico Díaz a atores da região, como o indígena amazonense Adanilo e os acreanos Gleici Damasceno e Gabriel Knoxx, o filme conta a história de três jovens na periferia de Rio Branco, capital do Acre, que têm suas vidas impactadas pelo avanço do narcotráfico e pela atuação conflituosa de organizações pelo domínio de territórios para o comércio e o escoamento de drogas. A história, inspirada num livro homônimo escrito também por Sérgio de Carvalho em 2011, precisou ser adaptada para a atualidade, bem mais violenta que há dez anos, e que brinca com os limites entre cidade e floresta.

Já “Pureza” (2020), baseado numa história real, dirigido por Renato Barbieri e com Dira Paes interpretando a protagonista, retrata a luta de Pureza Lopes Loyola. Ela deixa Bacabal, no Maranhão, em 1993, e se embrenha no meio da Amazônia profunda para resgatar o filho de uma situação análoga ao trabalho escravo, num garimpo no Pará. Hoje considerada uma heroína abolicionista, cuja atuação libertou mais de 57 mil pessoas de condições análogas à escravidão, Pureza desnuda uma realidade ainda comum para quem decide ganhar a vida em campos de mineração ilegal no país. O filme, vencedor de 28 prêmios nacionais e internacionais, e disponível no streaming da Globoplay, também entra no rol dessa nova cinematografia que expõe uma Amazônia violenta e sem lei.

Outra produção audiovisual que retrata a ameaça do garimpo na Amazônia é o documentário “Amazônia: a nova Minamata”, que tem previsão de lançamento para o segundo semestre deste ano, mas que teve uma exibição prévia de um corte exclusivo no histórico Acampamento Terra Livre (ATL) deste ano, que reuniu mais de 8 mil indígenas em Brasília. Tendo como pano de fundo a luta do povo Munduruku, no Pará, contra o garimpo ilegal, o documentário do diretor Jorge Bodanzky acompanha a atuação de médicos e pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre a crise de saúde pública na população indígena, causada pela contaminação por mercúrio de garimpo ilegal na região do Rio Tapajós.

O documentário de Bodanzky traça um paralelo entre a realidade amazônica e a catastrófica contaminação por metais pesados ocorrida na década de 1950 na cidade de Minamata, no Japão. A intoxicação de mercúrio no solo, em rios e em peixes pela busca do ouro na Amazônia, também fora das telas, é uma tragédia ambiental e humana que vem afetando milhares de pessoas tanto em comunidades indígenas e tradicionais como nas cidades, comprometendo inclusive o turismo em Alter do Chão.

Em comum, essas e tantas outras obras audiovisuais que despontam Brasil afora têm muito mais do que os enredos sobre populações impactadas pelas diversas formas de violência que afetam a Amazônia, ou mesmo a “assinatura” dos povos tradicionais, cada vez mais protagonistas de suas próprias histórias. Elas são, também, uma ferramenta de luta pela proteção dos direitos e territórios desses povos. É a arte imitando a vida, ecoando a resistência dos povos amazônidas e nos provocando a refletir sobre nosso papel na proteção dessa sociobiodiversidade, como consumidores da floresta e da arte que vem dela.

*Vinícius Leal – jornalista com experiência em produção de notícias, redes sociais e comunicação estratégica em meio ambiente e povos tradicionais – é correspondente na Amazônia da Uma Gota no Oceano.

 


Saiba mais:

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/txai-surui/2022/08/demarcando-o-espaco-indigena-nas-telas.shtml

https://www.festivaldegramado.net/es/noites-alienigenas-e-o-melhor-filme-de-longa-brasileiro-do-50o-festival-de-cinema-de-gramado/

https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/festival-de-cinema-de-gramado/2022/noticia/2022/08/13/marcos-palmeira-recebe-o-trofeu-oscarito-no-50o-festival-de-cinema-de-gramado.ghtml

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2022/08/20/coproduzido-por-txai-surui-o-territorio-leva-luta-dos-uru-eu-wau-wau-aos-cinemas-americanos.htm

https://www.dw.com/pt-br/s%C3%B3-se-fala-da-amaz%C3%B4nia-quando-h%C3%A1-uma-trag%C3%A9dia-diz-jorge-bodanzky/a-52407978

https://protecao.com.br/geral/filme-pureza-conta-a-heroica-historia-da-maranhense-que-lutou-para-livrar-o-filho-do-trabalho-escravo-contemporaneo/

https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/yanomami-sob-ataque-garimpo-ilegal-na-terra-indigena-yanomami-e-propostas-para

https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2022/06/13/interna_nacional,1372987/violencia-na-amazonia-e-estimulada-pela-omissao-no-combate-ao-crime.shtml

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/06/28/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica-2022.htm

https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/08/14/fantastico-revela-rede-de-avioes-e-helicopteros-a-servico-do-garimpo-ilegal-na-amazonia.ghtml

https://www.nytimes.com/interactive/2022/08/02/world/americas/brazil-airstrips-illegal-mining.html

Garimpo faz malária e desnutrição infantil explodirem entre os Yanomami

https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/07/policia-prende-suspeito-de-matar-ari-uru-eu-wau-wau-lider-indigena-em-ro.shtml

https://portalamazonia.com/amazonia/faccoes-criminosas-veja-quais-sao-e-onde-atuam-na-amazonia-legal

https://globoplay.globo.com/v/10874252/

InfrAmazônia S.A.

InfrAmazônia S.A.

Caso exista um futuro distante, os arqueólogos teriam que escavar quilômetros de lixo até encontrarem um esqueleto. O biólogo americano Eugene F. Stoermer e o químico holandês Paul Crutzen lançaram no ano 2000 o conceito de “antropoceno” para denominar uma nova era geológica, que teria surgido do impacto da atividade humana. Em 2020, o Instituto Weizmann da Ciência, de Israel, confirmou a teoria: naquele ano, a massa dos artefatos produzidos pelo homem havia superado a de todos os seres vivos do planeta pela primeira vez na História.

Por outro lado, existiu uma civilização que só muito recentemente começou a ser descoberta pelo motivo oposto: desaparecer sem praticamente deixar vestígios. Ela ficava na Amazônia e aponta para o futuro da região – e, não, não era Ratanabá. Calcula-se que essa cultura, totalmente integrada à natureza – por assim dizer, biodegradável –, chegou a ter uma população de mais de 8 milhões de pessoas. “A principal infraestrutura da Amazônia é a floresta em pé”, reafirma essa ideia Maura Arapiun, secretária do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns, provável descendente desse povo. Seus rios são suas estradas e a mata é capaz de prover alimento e até energia para os que lá vivem. É uma lição do passado que deve voltar a ser posta em prática se quisermos salvá-la, e dar uma importante contribuição para que todos os habitantes do planeta tenham um futuro melhor.

“Precisamos de projetos para a Amazônia e não apenas na Amazônia”, diz a Carta de Alter, destinada aos candidatos à Presidência da República, lançada no último dia 6, elaborada pelo GT Infraestrutura – grupo formado por ONGs ambientalistas, movimentos sociais e organizações indígenas e quilombolas. O Brasil vem adotando um modelo econômico em que despreza os mais valiosos recursos naturais da maior floresta tropical do mundo – suas imensas reservas de água, biodiversidade e multiculturalidade – para tratá-la como mina de ouro, futuro pasto ou lavoura, ou mera rota de commodities, que não beneficiam a população local, hoje estimada em 38 milhões de habitantes.

“Infraestrutura não pode ser sinônimo de estradas, portos para o trânsito de commodities, minérios e produção de energia, como tem sido até aqui. É necessária uma infraestrutura para a vida das pessoas e suas atividades econômicas”, diz Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia Ambiente da USP e autor do livro “Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”. Para se ter uma ideia, quatro das cinco maiores hidrelétricas do país ficam na Amazônia, enquanto 70% da população sem acesso à energia mora na região. Para esses brasileiros sobra apenas o bagaço da laranja.

Um dos efeitos colaterais da Usina de Belo Monte, por exemplo, foi fazer de esgoto a céu aberto o Rio Xingu em Altamira. Somente 58,9% da população da Região Norte têm água tratada e apenas 13,1% têm acesso a saneamento básico. Por que não investir mais nessa área? “Considerar o desenvolvimento urbano como processo fundamental para a sustentabilidade e bem-estar humano na Amazônia, com infraestruturas adequadas ao contexto local” é uma das propostas da Carta de Alter. “A proposta da Ferrogrão, por exemplo, a questão não é se o projeto é bom ou ruim, se pode melhorar, mas é anterior: por que o caminho é esse? Por que essa soja não pode sair por outro porto, como o de Santos?”, indaga o engenheiro civil especialista em políticas ambientais Sérgio Guimarães, secretário executivo do GT Infraestrutura.

Para o grupo, é fundamental que a participação da sociedade civil no processo que decide a necessidade de implementar novos megaempreendimentos na região. “Discutir um modelo novo de logística para a Amazônia, repensando prioridades e institucionalizando o processo decisório, resultando em boas práticas de planejamento, incluindo a avaliação de alternativas, ampla participação da sociedade em todas as etapas e o atendimento às demandas de promoção dos produtos da sociobiodiversidade”.

O que os amazônidas de hoje – e, por consequência, o Brasil e o planeta – precisam é de energia renovável sustentável, que não barre ou polua seus rios; investimento melhores condições de vida e em biotecnologia, que será a ponta-de-lança da nova economia; e de internet, para se conectarem com o resto do mundo para espalhar as boas novas que certamente virão da floresta.

 

Saiba mais:

O antropoceno: a era em que o artificial tem mais peso que o natural

Global human-made mass exceeds all living biomass

Amazônia, arqueologia da floresta

Amazônia teve milhões de indígenas antes dos europeus, indica novo estudo

Carta de Alter: propostas de infraestrutura para a Amazônia

A floresta é a infraestrutura da Amazônia, propõem ONGs em carta a presidenciáveis

‘Infraestrutura para a Amazônia’: por um modelo sustentável

A principal infraestrutura da Amazônia é a floresta em pé

Organizações rechaçam megaempreendimentos na Amazônia

“Grande casa do bem comum”: floresta é a principal infraestrutura da Amazônia

O que aprender com o desastre de Belo Monte

Norte do Brasil continua com baixos indicadores referente aos serviços de saneamento básico

 

Translate »