agosto 2022 | Amazônia, Cultura, Direitos humanos
Por Vinícius Leal*
Não é coisa de cinema, muito menos a lei da selva: a luta para se manter vivo na Amazônia é uma rotina real de quem habita a região e não é natural dela. Seja no meio da floresta, na beira do rio ou nas periferias das grandes cidades, cresce o acirramento das disputas pelo controle desses territórios, tomados à força por grupos criminosos ligados ao garimpo, grilagem, narcotráfico, pesca e extração de madeira clandestinas. Violência que vem aumentando a cada ano – das 30 cidades mais violentas do país, dez estão na região amazônica – e que, somada à desigualdade e ao abandono estatal, ocupa os noticiários ao redor do mundo. A dura realidade está se impondo.
Mas esse não é o único espaço que as histórias amazônidas estão conquistando: elas também vêm ganhando notoriedade na produção audiovisual e ocupando um lugar de prestígio no cinema brasileiro e internacional, pondo em evidência não só a narrativa indígena, como alçando os próprios povos tradicionais à condição de diretores, atores, roteiristas e produtores. Olhares e fazeres que ajudam a retratar uma realidade agonizante e febril, mas que também se apresenta resiliente e poética.
“A última floresta” (2021), documentário com elementos de ficção dirigido por Luiz Bolognesi, que assina o roteiro junto com a liderança Yanomami Davi Kopenawa, retrata bem esse cenário: um grupo de indígenas isolados tenta manter vivas suas tradições espirituais enquanto enfrenta e expulsa garimpeiros de seu território. Já disponível na plataforma de streaming Netflix e premiada em diversos festivais de cinema, incluindo os de Berlim e Seul, e no 21º Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, a obra retrata o cotidiano daquele povo no Brasil atual: segundo o último levantamento da Hutukara Associação Yanomami, divulgado em abril, há mais de 20 mil garimpeiros atuando em seu território, situado entre o Amazonas e Roraima, onde vivem cerca de 26 mil indígenas. O ritmo desacelerado do roteiro transmite bem a energia de quem vive dentro da floresta, um leve contraste diante da impactante realidade de fome, miséria e doenças causadas pela tragédia humana da busca incessante por ouro nos garimpos, financiados por grupos de empresários que fornecem aeronaves, combustível e constroem pistas de pouso ilegais – e movimentadíssimas – no meio da mata.
Outra obra cinematográfica que escancara essa Amazônia violentada pelo crime organizado é “O Território” (2022), longa documental que mostra os desafios enfrentados pelos Uru-Eu-Wau-Wau para se manterem vivos em suas terras ancestrais, no estado de Rondônia. Premiado em Sundance e em mais de 10 festivais pelo mundo, o filme, dirigido pelo norte-americano Alex Pritz e com produção executiva de Txai Suruí, jovem indígena que denunciou as violências contra seu povo na COP26, tem previsão de estreia no Brasil em setembro. “O Território” mostra como os próprios Uru-Eu-Wau-Wau arriscam suas vidas num grupo de monitoramento e vigilância constante da floresta para proteger o bioma e suas aldeias de grileiros e invasores, como os que mataram Ari Uru-Eu-Wau-Wau, espancado até a morte em abril de 2020, com destaque para os atores estreantes Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau e Neidinha Suruí, lideranças indígenas da região.
Já “Noites alienígenas” (2022) acabou de ganhar nada menos que seis Kikitos, o prêmio máximo do Festival de Cinema de Gramado, inclusive o de melhor filme. O longa de ficção acreano foi o grande destaque da edição especial de 50 anos do evento, o primeiro presencial depois do início da pandemia, e que homenageou o ator e ativista socioambiental Marcos Palmeira. Dirigido por Sérgio de Carvalho, “Noites alienígenas” traz à cena essa “nova Amazônia urbana”, com facções criminosas disputando “na bala” o comando de bairros e cooptando jovens para se tornarem soldados do narcotráfico – uma realidade já vivida por comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas espalhadas por territórios localizados nas fronteiras do Brasil com o Peru e a Colômbia e, também, nos municípios do interior e nas periferias da Amazônia.
Com estreia comercial prevista para 2023 e um elenco que uniu o veterano Chico Díaz a atores da região, como o indígena amazonense Adanilo e os acreanos Gleici Damasceno e Gabriel Knoxx, o filme conta a história de três jovens na periferia de Rio Branco, capital do Acre, que têm suas vidas impactadas pelo avanço do narcotráfico e pela atuação conflituosa de organizações pelo domínio de territórios para o comércio e o escoamento de drogas. A história, inspirada num livro homônimo escrito também por Sérgio de Carvalho em 2011, precisou ser adaptada para a atualidade, bem mais violenta que há dez anos, e que brinca com os limites entre cidade e floresta.
Já “Pureza” (2020), baseado numa história real, dirigido por Renato Barbieri e com Dira Paes interpretando a protagonista, retrata a luta de Pureza Lopes Loyola. Ela deixa Bacabal, no Maranhão, em 1993, e se embrenha no meio da Amazônia profunda para resgatar o filho de uma situação análoga ao trabalho escravo, num garimpo no Pará. Hoje considerada uma heroína abolicionista, cuja atuação libertou mais de 57 mil pessoas de condições análogas à escravidão, Pureza desnuda uma realidade ainda comum para quem decide ganhar a vida em campos de mineração ilegal no país. O filme, vencedor de 28 prêmios nacionais e internacionais, e disponível no streaming da Globoplay, também entra no rol dessa nova cinematografia que expõe uma Amazônia violenta e sem lei.
Outra produção audiovisual que retrata a ameaça do garimpo na Amazônia é o documentário “Amazônia: a nova Minamata”, que tem previsão de lançamento para o segundo semestre deste ano, mas que teve uma exibição prévia de um corte exclusivo no histórico Acampamento Terra Livre (ATL) deste ano, que reuniu mais de 8 mil indígenas em Brasília. Tendo como pano de fundo a luta do povo Munduruku, no Pará, contra o garimpo ilegal, o documentário do diretor Jorge Bodanzky acompanha a atuação de médicos e pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre a crise de saúde pública na população indígena, causada pela contaminação por mercúrio de garimpo ilegal na região do Rio Tapajós.
O documentário de Bodanzky traça um paralelo entre a realidade amazônica e a catastrófica contaminação por metais pesados ocorrida na década de 1950 na cidade de Minamata, no Japão. A intoxicação de mercúrio no solo, em rios e em peixes pela busca do ouro na Amazônia, também fora das telas, é uma tragédia ambiental e humana que vem afetando milhares de pessoas tanto em comunidades indígenas e tradicionais como nas cidades, comprometendo inclusive o turismo em Alter do Chão.
Em comum, essas e tantas outras obras audiovisuais que despontam Brasil afora têm muito mais do que os enredos sobre populações impactadas pelas diversas formas de violência que afetam a Amazônia, ou mesmo a “assinatura” dos povos tradicionais, cada vez mais protagonistas de suas próprias histórias. Elas são, também, uma ferramenta de luta pela proteção dos direitos e territórios desses povos. É a arte imitando a vida, ecoando a resistência dos povos amazônidas e nos provocando a refletir sobre nosso papel na proteção dessa sociobiodiversidade, como consumidores da floresta e da arte que vem dela.
*Vinícius Leal – jornalista com experiência em produção de notícias, redes sociais e comunicação estratégica em meio ambiente e povos tradicionais – é correspondente na Amazônia da Uma Gota no Oceano.
Saiba mais:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/txai-surui/2022/08/demarcando-o-espaco-indigena-nas-telas.shtml
https://www.festivaldegramado.net/es/noites-alienigenas-e-o-melhor-filme-de-longa-brasileiro-do-50o-festival-de-cinema-de-gramado/
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/festival-de-cinema-de-gramado/2022/noticia/2022/08/13/marcos-palmeira-recebe-o-trofeu-oscarito-no-50o-festival-de-cinema-de-gramado.ghtml
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2022/08/20/coproduzido-por-txai-surui-o-territorio-leva-luta-dos-uru-eu-wau-wau-aos-cinemas-americanos.htm
https://www.dw.com/pt-br/s%C3%B3-se-fala-da-amaz%C3%B4nia-quando-h%C3%A1-uma-trag%C3%A9dia-diz-jorge-bodanzky/a-52407978
https://protecao.com.br/geral/filme-pureza-conta-a-heroica-historia-da-maranhense-que-lutou-para-livrar-o-filho-do-trabalho-escravo-contemporaneo/
https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/yanomami-sob-ataque-garimpo-ilegal-na-terra-indigena-yanomami-e-propostas-para
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2022/06/13/interna_nacional,1372987/violencia-na-amazonia-e-estimulada-pela-omissao-no-combate-ao-crime.shtml
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/06/28/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica-2022.htm
https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/08/14/fantastico-revela-rede-de-avioes-e-helicopteros-a-servico-do-garimpo-ilegal-na-amazonia.ghtml
https://www.nytimes.com/interactive/2022/08/02/world/americas/brazil-airstrips-illegal-mining.html
Garimpo faz malária e desnutrição infantil explodirem entre os Yanomami
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/07/policia-prende-suspeito-de-matar-ari-uru-eu-wau-wau-lider-indigena-em-ro.shtml
https://portalamazonia.com/amazonia/faccoes-criminosas-veja-quais-sao-e-onde-atuam-na-amazonia-legal
https://globoplay.globo.com/v/10874252/
julho 2022 | Amazônia
Caso exista um futuro distante, os arqueólogos teriam que escavar quilômetros de lixo até encontrarem um esqueleto. O biólogo americano Eugene F. Stoermer e o químico holandês Paul Crutzen lançaram no ano 2000 o conceito de “antropoceno” para denominar uma nova era geológica, que teria surgido do impacto da atividade humana. Em 2020, o Instituto Weizmann da Ciência, de Israel, confirmou a teoria: naquele ano, a massa dos artefatos produzidos pelo homem havia superado a de todos os seres vivos do planeta pela primeira vez na História.
Por outro lado, existiu uma civilização que só muito recentemente começou a ser descoberta pelo motivo oposto: desaparecer sem praticamente deixar vestígios. Ela ficava na Amazônia e aponta para o futuro da região – e, não, não era Ratanabá. Calcula-se que essa cultura, totalmente integrada à natureza – por assim dizer, biodegradável –, chegou a ter uma população de mais de 8 milhões de pessoas. “A principal infraestrutura da Amazônia é a floresta em pé”, reafirma essa ideia Maura Arapiun, secretária do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns, provável descendente desse povo. Seus rios são suas estradas e a mata é capaz de prover alimento e até energia para os que lá vivem. É uma lição do passado que deve voltar a ser posta em prática se quisermos salvá-la, e dar uma importante contribuição para que todos os habitantes do planeta tenham um futuro melhor.
“Precisamos de projetos para a Amazônia e não apenas na Amazônia”, diz a Carta de Alter, destinada aos candidatos à Presidência da República, lançada no último dia 6, elaborada pelo GT Infraestrutura – grupo formado por ONGs ambientalistas, movimentos sociais e organizações indígenas e quilombolas. O Brasil vem adotando um modelo econômico em que despreza os mais valiosos recursos naturais da maior floresta tropical do mundo – suas imensas reservas de água, biodiversidade e multiculturalidade – para tratá-la como mina de ouro, futuro pasto ou lavoura, ou mera rota de commodities, que não beneficiam a população local, hoje estimada em 38 milhões de habitantes.
“Infraestrutura não pode ser sinônimo de estradas, portos para o trânsito de commodities, minérios e produção de energia, como tem sido até aqui. É necessária uma infraestrutura para a vida das pessoas e suas atividades econômicas”, diz Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia Ambiente da USP e autor do livro “Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”. Para se ter uma ideia, quatro das cinco maiores hidrelétricas do país ficam na Amazônia, enquanto 70% da população sem acesso à energia mora na região. Para esses brasileiros sobra apenas o bagaço da laranja.
Um dos efeitos colaterais da Usina de Belo Monte, por exemplo, foi fazer de esgoto a céu aberto o Rio Xingu em Altamira. Somente 58,9% da população da Região Norte têm água tratada e apenas 13,1% têm acesso a saneamento básico. Por que não investir mais nessa área? “Considerar o desenvolvimento urbano como processo fundamental para a sustentabilidade e bem-estar humano na Amazônia, com infraestruturas adequadas ao contexto local” é uma das propostas da Carta de Alter. “A proposta da Ferrogrão, por exemplo, a questão não é se o projeto é bom ou ruim, se pode melhorar, mas é anterior: por que o caminho é esse? Por que essa soja não pode sair por outro porto, como o de Santos?”, indaga o engenheiro civil especialista em políticas ambientais Sérgio Guimarães, secretário executivo do GT Infraestrutura.
Para o grupo, é fundamental que a participação da sociedade civil no processo que decide a necessidade de implementar novos megaempreendimentos na região. “Discutir um modelo novo de logística para a Amazônia, repensando prioridades e institucionalizando o processo decisório, resultando em boas práticas de planejamento, incluindo a avaliação de alternativas, ampla participação da sociedade em todas as etapas e o atendimento às demandas de promoção dos produtos da sociobiodiversidade”.
O que os amazônidas de hoje – e, por consequência, o Brasil e o planeta – precisam é de energia renovável sustentável, que não barre ou polua seus rios; investimento melhores condições de vida e em biotecnologia, que será a ponta-de-lança da nova economia; e de internet, para se conectarem com o resto do mundo para espalhar as boas novas que certamente virão da floresta.
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junho 2022 | Amazônia, Direitos humanos
“É uma região inóspita, afastada de tudo”, declarou o vice-presidente Hamilton Mourão, nove dias depois do desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, na Terra Indígena Vale do Javari. Mourão já se disse descendente de indígenas; ele é gaúcho de Porto Alegre, mas seu pai é amazonense. Hoje general da reserva, foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva em São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), de 2005 a 2008, e preside há dois anos o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL). Deveria saber que na região onde a dupla sumiu vivem mais de 190 mil pessoas. Como assim “inóspita”?
“Num local onde o povo indígena consegue achar até um miquinho ou uma arara-canindé, o Brasil não sabe encontrar dois homens adultos que foram desaparecidos num trecho de floresta que é tão conhecido e em que pescadores e todo mundo andam por lá, e que agora está sendo controlado por traficantes”, desabafou o escritor e liderança Ailton Krenak. A alegada ascendência de Mourão e sua experiência de comandante na Amazônia e no atual cargo que ocupa não o têm ajudado nas buscas por Bruno e Dom. Aliás, o presidente da CNAL age como se não tivesse nada a ver com o caso. Na verdade, talvez seja melhor ele se manter afastado, mesmo.
O Conselho Nacional da Amazônia Legal foi reativado em fevereiro de 2020, vinculado à vice-Presidência da República. Originalmente, o órgão foi criado em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, subordinado ao Ministério do Meio Ambiente, embora nunca tivesse mostrado ao que veio. Tudo leva a crer que devia ter continuado assim: as três missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) promovidas pelas Forças Armadas no combate a crimes ambientais na Amazônia consumiram R$ 550 milhões e não reduziram o desmatamento na maior floresta tropical do mundo. Muito ao contrário, só em maio último, foram abaixo 1.180km² de verde, a maior destruição para este mês desde 2016. Essa dinheirama equivale a quase seis vezes o orçamento do Ibama em 2020 para fiscalização e licenciamento ambientais, e gestão da biodiversidade.
Os militares também se aboletaram na Funai: eles ocupam as chefias de 19 das 39 coordenações regionais da fundação, contra duas de servidores públicos, como o Bruno Pereira – as demais foram tomadas por policiais militares e federais, ou por funcionários de cargos comissionados. Desde 2017 já se sabia que o crime organizado estava tomando conta da região onde o jornalista e o indigenista desapareceram; mas de lá para cá, a situação só piorou. Entre 2018 e 2019, a Base de Proteção Ituí-Itacoaí foi atacada a tiros oitos vezes; em setembro de 2019, assassinaram o funcionário da Funai Maxciel Pereira dos Santos, que denunciava e combatia invasões naquela área. O crime permanece impune. Três meses depois, a Justiça condenou o governo federal por omissão e determinou que as bases locais fossem reforçadas; a ordem, porém, foi ignorada.
Há seis meses, do outro lado da fronteira, um posto da polícia peruana de Puerto Amelia foi atacado por 20 criminosos que roubaram oito fuzis, uma metralhadora e três mil cartuchos de bala. Os tiros foram ouvidos em Atalaia do Norte, cidade de 20.868 habitantes, que fica na região onde Bruno e Dom desapareceram. “As duas pessoas entram numa área que é perigosa sem pedir uma escolta, sem avisar efetivamente as autoridades competentes e passam a correr risco, né?”, também disse Mourão sobre o episódio. “Se o lugar onde a gente trabalha é perigoso e precisa de escolta armada, tem uma coisa muito errada aí. E a culpa não é nossa”, rebateu a antropóloga Beatriz Matos, mulher de Bruno. O general da reserva procurou uma justificativa e achou um veredicto: culpado.
A autoproclamada eficiência militar virou lenda do boitatá? Como esquecer a desastrosa passagem de outro general, Eduardo Pazuello, pelo Ministério da Saúde, no auge da pandemia de Covid-19? Os amazonenses, em especial, talvez jamais se curem desse trauma. Antes de assumir a pasta, em 2020, ele foi comandante da 12ª Região Militar, em Manaus. Considerado especialista em logística, esqueceu-se de abastecer os hospitais da capital amazonense com cilindros de oxigênio. Seu, digamos, descuido levou os hospitais da cidade a entraram em colapso e pelo menos 31 pessoas à morte, em dois dias. Quando foi efetivado ministro da Saúde, em 16 de maio de 2020, o Brasil contabilizava 233 mil casos e 15.633 mortes por Covid-19; ele deixou o cargo em 15 de março do ano seguinte com mais de 11,5 milhões de infectados, e cerca de 280 mil mortos.
Depois de sair do Ministério da Saúde, Pazuello foi designado para chefiar a Secretaria de Assuntos Estratégicos do Executivo. O que nos leva a pensar: será que não é incompetência, mas estratégia? Para Ailton Krenak, não há dúvida: “A Amazônia está sendo devorada, e o Brasil entrou no rodo com uma disposição voluntária de ser usado e abusado. Quando os sujeitos do governo falam em preocupação acerca da soberania, eles ocultam a má intenção de entregar todo esse território e virar as costas para a morte de Yanomami, a violência contra o corpo de crianças indígenas, o ataque contra lideranças e defensores dos que estão sendo assassinados semanalmente”.
Não é a natureza hostil que oferece perigo no Vale do Javari, mas os invasores e sua ganância, que se espalham como ervas daninhas – com a indisfarçável negligência ou até cumplicidade do poder público. “Vemos agora o último assalto a uma região do mundo com muita riqueza. É como se estivessem descobrindo de novo a América”, reflete Krenak. O que fazer? O autor do best-seller “Ideias para adiar o fim do mundo” aconselha: “A coisa está virulenta. Não se sabe mais de onde pode sair um ataque. Mas a gente vai superar esse momento. Não dá para nos desencorajarmos. Precisamos não cultivar a mentira e não nos associarmos a versões fajutas da realidade”. Que a verdade seja a nossa arma.
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junho 2022 | Amazônia, Direitos humanos
No 7 de junho se comemora o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa e não há como não relacionar isso ao desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do servidor da Funai Bruno Araújo Pereira. A Terra Indígena Vale do Javari, localizada no Amazonas, é uma conhecida área de conflitos e alvo de grupos com interesses econômicos ilegais, incluindo o narcotráfico. Liberdade de imprensa não significa salvo-conduto para o repórter ou escrever, publicar ou falar o que bem entender; mas, principalmente, ter sua segurança garantida pelo Estado. Ele precisa disso para exercer sua atividade, que é fundamental para a democracia. E o descaso manifestado pelo governo é revoltante. Que nota foi essa do Comando Militar da Amazônia? Como assim “as ações serão iniciadas mediante acionamento por parte do Escalão Superior”?
Não é fake news: o mesmo governo que bate na tecla da soberania nacional, deixa entregue um território fronteiriço ao Deus dará – leia-se ao crime organizado, incluindo o tráfico de drogas internacional. “A maioria das drogas sai do Peru, mas aí elas vão pra Colômbia e também para o Acre, e para aquela região. Para sair, elas têm que cruzar a terra indígena, que é supostamente a área mais segura pros traficantes”, explica o indigenista Antenor Vaz, consultor para povos isolados da América do Sul. Madeireiros e garimpeiros se sentem igualmente à vontade para cometer ilegalidades na região.
A TI Vale do Javari tem dono. E não são apenas os 6.317 indígenas de 26 povos que lá vivem, como toda a população brasileira, já que é um bem da União. Mas é tratada como terra de ninguém. Ela é a segunda maior do Brasil e foi homologada em 2001, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. Mas seus 85.445 km² continuam desprotegidos. Ainda há o agravante de ela abrigar a maior concentração de povos isolados do mundo. É uma população extremamente vulnerável. Não zelar por seu bem-estar é uma omissão criminosa. E coisas, digamos, inexplicáveis andam acontecendo por lá.
Em setembro de 2019, Maxciel Pereira dos Santos, funcionário da Funai que trabalhava na terra indígena, morreu em Tabatinga, no Amazonas. Ele levou dois tiros na cabeça e o crime ainda não foi solucionado. No mês seguinte, o ora desaparecido Bruno Araújo foi exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados. Quando de seu desligamento, ele combatia o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomani, em Roraima – a maior do país e uma obsessão pessoal do presidente Bolsonaro. Coincidência?
Este dia também nos traz à lembrança que esse bem, tão duramente conquistado, não sofria tantas ameaças desde os tempos da ditadura. Em 2021, o Brasil caiu quatro posições no ranking mundial da Liberdade de Imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras. Hoje, o país ocupa a 111ª posição e o relatório ressalta que a situação se tornou especialmente tóxica desde a posse de Jair Bolsonaro, autor de boa parte das agressões dirigidas a jornalistas: “Insultos, estigmatização e orquestração de humilhações públicas de jornalistas se tornaram a marca registrada do presidente, sua família e sua entourage”. Como fez com as vítimas das enchentes no Brasil este ano, ele preferiu culpar as vítimas: “Realmente duas pessoas apenas em um barco, em uma região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça”. Bolsonaro se refere a dois profissionais experientes como se fossem irresponsáveis.
Segundo o relatório “Violações à Liberdade de Expressão”, da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), o país chegou a 145 casos de violência contra profissionais da imprensa no ano passado – o que dá uma média de 2,7 por semana. O número é 21,69% maior que o de 2020. Para a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), ele é ainda mais absurdo: foram registradas 430 ocorrências. “Violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil” diz que “a continuidade das violações à liberdade de imprensa no Brasil está claramente associada à ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República”. De acordo com o relatório, Bolsonaro pessoalmente foi responsável por 147 ataques à imprensa em 2021.
Não podemos nos calar. Todos nós somos gotas no imenso oceano da preservação ambiental e da defesa incondicional dos direitos humanos. Temos que exigir que Dom Phillips e Bruno Araújo Pereira sejam encontrados o mais rápido possível e que os povos indígenas sejam protegidos. E reafirmar: a Terra Indígena Vale do Javari e a liberdade de imprensa são bens inalienáveis do povo brasileiro.
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maio 2022 | Amazônia, Desmatamento
A expressão “desvio de finalidade” está na moda, mas não explica adequadamente como vêm agindo algumas instituições no atual governo. O caso do Ministério do Meio Ambiente, então, é muito instrutivo. O último lance infeliz da pasta foi bater mais um recorde de desmatamento. Imagine que o zagueiro de seu time seja torcedor fanático do adversário e marque, de propósito, um gol contra na final?
O Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou na última sexta-feira que foram abaixo 1.012 km² de floresta em abril – 75% a mais que no mesmo período em 2021. O número é particularmente impressionante porque chove muito nessa época na Amazônia, o que costuma dar um tempo na devastação. É a primeira vez na história que a área desmatada ultrapassa os 1.000 km² num mês de abril.
De acordo com um levantamento feito pelo MapBiomas, 97% dos alertas de desmatamento emitidos desde 2019 foram ignorados pelos órgãos de fiscalização ligados à pasta. Não foi por falta de disposição dos aguerridos jogadores do Ibama que, não custa lembrar, tem entrado em campo desfalcado; o seu técnico é que gosta de jogar recuado. E quem achar ruim vai pro banco de reservas.
Na última segunda-feira, a Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), que reúne funcionários do instituto, do ICMBio e do Serviço Florestal Brasileiro, divulgou uma nota na qual acusa o governo de dificultar suas ações: “Sem fiscalização, as atividades criminosas ganharam espaço para se desenvolver livremente, colocando sob risco não apenas os povos originários do Brasil, mas também toda a população, as futuras gerações, bem como a nossa megabiodiversidade”. O texto também diz que “há ainda dezenas de casos de perseguições e assédio aos servidores do Ibama e ICMBio, especialmente àqueles que atuam na fiscalização ambiental. Por fim, mas não menos importante, temos queda drástica de servidores nas diversas autarquias ambientais”.
Quem quer jogar pra frente é tratado como pereba ou desequilibrado: “Muita gente louca e os loucos gostam de direito ambiental porque eles se sentem confortáveis na área, inventando coisas”, respondeu Eduardo Bim, presidente do Ibama. Não contente, ele emendou: “Tem gestor que se sente constrangido por reportagem de jornal. Eu não. Eu sou um psicopata”. No ano passado, Bim foi afastado do cargo por três meses pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando a Polícia Federal o investigava por suspeita de favorecimento a madeireiras ilegais. Coisa de perna de pau.
O Ministério do Meio Ambiente tem a missão de “formular e implementar políticas públicas ambientais nacionais de forma articulada e pactuada com os atores públicos e a sociedade para o desenvolvimento sustentável”. Para quem não se lembra, uma das primeiras jogadas do atual governo foi entrar de carrinho na participação da sociedade civil nas comissões da pasta; mas no último dia 28, o STF lhe deu cartão vermelho. Na primeira votação do chamado “Pacote Verde”, o Supremo restituiu sua representação no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA).
No mesmo dia, o tribunal também declarou ilegal o decreto que que afastou governadores de estados da Amazônia legal do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) e o que extinguiu o Comitê Organizador do Fundo Amazônia (Cofa). Isso obrigou o governo a mudar sua tática: no dia 30 de abril, aumentou, voluntariamente, o número de representantes do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 23 para 36. Ainda faltam 60 para os 96 originais, mas o recuo mostra que o jogo ainda está longe de acabar.
A pasta do Meio Ambiente não é o único a jogar contra. O escrete da Funai, vinculado ao Ministério da Justiça, hoje é comandado por ruralistas. Sua missão institucional é “proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil”. Essa regra é desrespeitada diariamente; mas em março a Polícia Federal interrompeu uma jogada especialmente desleal: desbaratou uma quadrilha chefiada pelo coordenador-geral do órgão em Ribeirão Cascalheira (MT), onde fica a Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante.
Militar inativo da Marinha, Jussielson Gonçalves Silva é acusado, junto com três PMs, de arrendar áreas protegidas para criadores de gado. Antes de ser pego no antidoping, chegou a ser elogiado por Marcelo Xavier, presidente da Funai: “Esse é o caminho. O coordenador regional Jussielson Gonçalves e a prefeitura de Canarana estão de parabéns. Isso pode ser reproduzido em outras aldeias. Pode servir de modelo”.
O jogo só termina quando o juiz apita; então, ainda dá para virar. Mas é preciso reforçar o time do meio ambiente, e as eleições de outubro são a nossa oportunidade de levar para Brasília gente que honre a camisa.
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‘Pacote Verde’ do STF: entenda quais são as 7 ações ambientais em pauta pelo tribunal
‘Pacote Verde’ do STF: ambientalistas comemoram primeira decisão da corte
Supremo impõe derrota ao governo Bolsonaro na área ambiental
STF derruba três decretos ambientais do governo Bolsonaro
STF suspende decreto de Bolsonaro que eliminou participação da sociedade em conselho ambiental
Em meio a ação no STF, governo eleva de 23 para 36 número de conselheiros do Conama
MapBiomas: 97% dos alertas de desmatamento desde 2019 continuam sem ação
Governo Bolsonaro fiscalizou menos de 3% dos alertas de desmatamento no país
Dados sobre fiscalização mostram que impunidade ainda predomina no combate ao desmatamento
Presidente do Ibama compara órgão ambiental a manicômio: “cheio de maluco”
Associação afirma que servidores do ICMBio e Ibama não fiscalizam Terra Yanomami há 5 meses
PF prende servidor da Funai em operação para coibir exploração ilegal de terra indígena
Preso por arrendar terra indígena, coordenador da Funai era considerado “modelo” pelo governo
“A Funai parou de ajudar as pessoas que estão defendendo a floresta”, diz líder Kayapó
Despacho da Funai indica assédio e suposta tentativa de retaliação a servidores
Inquérito detalha apoio de militar da Funai a arrendamento de área indígena
Funai contratou servidores para proteger isolados, mas não construiu base onde eles atuariam
‘A Funai acabou’, diz Sebastião Salgado, o artista da floresta
MPF obtém liminar para suspender em SP norma da Funai que põe em risco terras indígenas ainda em demarcação