InfrAmazônia S.A.

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Caso exista um futuro distante, os arqueólogos teriam que escavar quilômetros de lixo até encontrarem um esqueleto. O biólogo americano Eugene F. Stoermer e o químico holandês Paul Crutzen lançaram no ano 2000 o conceito de “antropoceno” para denominar uma nova era geológica, que teria surgido do impacto da atividade humana. Em 2020, o Instituto Weizmann da Ciência, de Israel, confirmou a teoria: naquele ano, a massa dos artefatos produzidos pelo homem havia superado a de todos os seres vivos do planeta pela primeira vez na História.

Por outro lado, existiu uma civilização que só muito recentemente começou a ser descoberta pelo motivo oposto: desaparecer sem praticamente deixar vestígios. Ela ficava na Amazônia e aponta para o futuro da região – e, não, não era Ratanabá. Calcula-se que essa cultura, totalmente integrada à natureza – por assim dizer, biodegradável –, chegou a ter uma população de mais de 8 milhões de pessoas. “A principal infraestrutura da Amazônia é a floresta em pé”, reafirma essa ideia Maura Arapiun, secretária do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns, provável descendente desse povo. Seus rios são suas estradas e a mata é capaz de prover alimento e até energia para os que lá vivem. É uma lição do passado que deve voltar a ser posta em prática se quisermos salvá-la, e dar uma importante contribuição para que todos os habitantes do planeta tenham um futuro melhor.

“Precisamos de projetos para a Amazônia e não apenas na Amazônia”, diz a Carta de Alter, destinada aos candidatos à Presidência da República, lançada no último dia 6, elaborada pelo GT Infraestrutura – grupo formado por ONGs ambientalistas, movimentos sociais e organizações indígenas e quilombolas. O Brasil vem adotando um modelo econômico em que despreza os mais valiosos recursos naturais da maior floresta tropical do mundo – suas imensas reservas de água, biodiversidade e multiculturalidade – para tratá-la como mina de ouro, futuro pasto ou lavoura, ou mera rota de commodities, que não beneficiam a população local, hoje estimada em 38 milhões de habitantes.

“Infraestrutura não pode ser sinônimo de estradas, portos para o trânsito de commodities, minérios e produção de energia, como tem sido até aqui. É necessária uma infraestrutura para a vida das pessoas e suas atividades econômicas”, diz Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia Ambiente da USP e autor do livro “Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”. Para se ter uma ideia, quatro das cinco maiores hidrelétricas do país ficam na Amazônia, enquanto 70% da população sem acesso à energia mora na região. Para esses brasileiros sobra apenas o bagaço da laranja.

Um dos efeitos colaterais da Usina de Belo Monte, por exemplo, foi fazer de esgoto a céu aberto o Rio Xingu em Altamira. Somente 58,9% da população da Região Norte têm água tratada e apenas 13,1% têm acesso a saneamento básico. Por que não investir mais nessa área? “Considerar o desenvolvimento urbano como processo fundamental para a sustentabilidade e bem-estar humano na Amazônia, com infraestruturas adequadas ao contexto local” é uma das propostas da Carta de Alter. “A proposta da Ferrogrão, por exemplo, a questão não é se o projeto é bom ou ruim, se pode melhorar, mas é anterior: por que o caminho é esse? Por que essa soja não pode sair por outro porto, como o de Santos?”, indaga o engenheiro civil especialista em políticas ambientais Sérgio Guimarães, secretário executivo do GT Infraestrutura.

Para o grupo, é fundamental que a participação da sociedade civil no processo que decide a necessidade de implementar novos megaempreendimentos na região. “Discutir um modelo novo de logística para a Amazônia, repensando prioridades e institucionalizando o processo decisório, resultando em boas práticas de planejamento, incluindo a avaliação de alternativas, ampla participação da sociedade em todas as etapas e o atendimento às demandas de promoção dos produtos da sociobiodiversidade”.

O que os amazônidas de hoje – e, por consequência, o Brasil e o planeta – precisam é de energia renovável sustentável, que não barre ou polua seus rios; investimento melhores condições de vida e em biotecnologia, que será a ponta-de-lança da nova economia; e de internet, para se conectarem com o resto do mundo para espalhar as boas novas que certamente virão da floresta.

 

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Incompetência Estratégica

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“É uma região inóspita, afastada de tudo”, declarou o vice-presidente Hamilton Mourão, nove dias depois do desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, na Terra Indígena Vale do Javari. Mourão já se disse descendente de indígenas; ele é gaúcho de Porto Alegre, mas seu pai é amazonense. Hoje general da reserva, foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva em São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), de 2005 a 2008, e preside há dois anos o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL). Deveria saber que na região onde a dupla sumiu vivem mais de 190 mil pessoas. Como assim “inóspita”?

“Num local onde o povo indígena consegue achar até um miquinho ou uma arara-canindé, o Brasil não sabe encontrar dois homens adultos que foram desaparecidos num trecho de floresta que é tão conhecido e em que pescadores e todo mundo andam por lá, e que agora está sendo controlado por traficantes”, desabafou o escritor e liderança Ailton Krenak. A alegada ascendência de Mourão e sua experiência de comandante na Amazônia e no atual cargo que ocupa não o têm ajudado nas buscas por Bruno e Dom. Aliás, o presidente da CNAL age como se não tivesse nada a ver com o caso. Na verdade, talvez seja melhor ele se manter afastado, mesmo.

O Conselho Nacional da Amazônia Legal foi reativado em fevereiro de 2020, vinculado à vice-Presidência da República. Originalmente, o órgão foi criado em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, subordinado ao Ministério do Meio Ambiente, embora nunca tivesse mostrado ao que veio. Tudo leva a crer que devia ter continuado assim: as três missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) promovidas pelas Forças Armadas no combate a crimes ambientais na Amazônia consumiram R$ 550 milhões e não reduziram o desmatamento na maior floresta tropical do mundo. Muito ao contrário, só em maio último, foram abaixo 1.180km² de verde, a maior destruição para este mês desde 2016. Essa dinheirama equivale a quase seis vezes o orçamento do Ibama em 2020 para fiscalização e licenciamento ambientais, e gestão da biodiversidade.

Os militares também se aboletaram na Funai: eles ocupam as chefias de 19 das 39 coordenações regionais da fundação, contra duas de servidores públicos, como o Bruno Pereira – as demais foram tomadas por policiais militares e federais, ou por funcionários de cargos comissionados. Desde 2017 já se sabia que o crime organizado estava tomando conta da região onde o jornalista e o indigenista desapareceram; mas de lá para cá, a situação só piorou. Entre 2018 e 2019, a Base de Proteção Ituí-Itacoaí foi atacada a tiros oitos vezes; em setembro de 2019, assassinaram o funcionário da Funai Maxciel Pereira dos Santos, que denunciava e combatia invasões naquela área. O crime permanece impune. Três meses depois, a Justiça condenou o governo federal por omissão e determinou que as bases locais fossem reforçadas; a ordem, porém, foi ignorada.

Há seis meses, do outro lado da fronteira, um posto da polícia peruana de Puerto Amelia foi atacado por 20 criminosos que roubaram oito fuzis, uma metralhadora e três mil cartuchos de bala. Os tiros foram ouvidos em Atalaia do Norte, cidade de 20.868 habitantes, que fica na região onde Bruno e Dom desapareceram. “As duas pessoas entram numa área que é perigosa sem pedir uma escolta, sem avisar efetivamente as autoridades competentes e passam a correr risco, né?”, também disse Mourão sobre o episódio. “Se o lugar onde a gente trabalha é perigoso e precisa de escolta armada, tem uma coisa muito errada aí. E a culpa não é nossa”, rebateu a antropóloga Beatriz Matos, mulher de Bruno. O general da reserva procurou uma justificativa e achou um veredicto: culpado.

A autoproclamada eficiência militar virou lenda do boitatá? Como esquecer a desastrosa passagem de outro general, Eduardo Pazuello, pelo Ministério da Saúde, no auge da pandemia de Covid-19? Os amazonenses, em especial, talvez jamais se curem desse trauma. Antes de assumir a pasta, em 2020, ele foi comandante da 12ª Região Militar, em Manaus. Considerado especialista em logística, esqueceu-se de abastecer os hospitais da capital amazonense com cilindros de oxigênio. Seu, digamos, descuido levou os hospitais da cidade a entraram em colapso e pelo menos 31 pessoas à morte, em dois dias. Quando foi efetivado ministro da Saúde, em 16 de maio de 2020, o Brasil contabilizava 233 mil casos e 15.633 mortes por Covid-19; ele deixou o cargo em 15 de março do ano seguinte com mais de 11,5 milhões de infectados, e cerca de 280 mil mortos.

Depois de sair do Ministério da Saúde, Pazuello foi designado para chefiar a Secretaria de Assuntos Estratégicos do Executivo. O que nos leva a pensar: será que não é incompetência, mas estratégia? Para Ailton Krenak, não há dúvida: “A Amazônia está sendo devorada, e o Brasil entrou no rodo com uma disposição voluntária de ser usado e abusado. Quando os sujeitos do governo falam em preocupação acerca da soberania, eles ocultam a má intenção de entregar todo esse território e virar as costas para a morte de Yanomami, a violência contra o corpo de crianças indígenas, o ataque contra lideranças e defensores dos que estão sendo assassinados semanalmente”.

Não é a natureza hostil que oferece perigo no Vale do Javari, mas os invasores e sua ganância, que se espalham como ervas daninhas – com a indisfarçável negligência ou até cumplicidade do poder público. “Vemos agora o último assalto a uma região do mundo com muita riqueza. É como se estivessem descobrindo de novo a América”, reflete Krenak. O que fazer? O autor do best-seller “Ideias para adiar o fim do mundo” aconselha: “A coisa está virulenta. Não se sabe mais de onde pode sair um ataque. Mas a gente vai superar esse momento. Não dá para nos desencorajarmos. Precisamos não cultivar a mentira e não nos associarmos a versões fajutas da realidade”. Que a verdade seja a nossa arma.

 

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No 7 de junho se comemora o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa e não há como não relacionar isso ao desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do servidor da Funai Bruno Araújo Pereira. A Terra Indígena Vale do Javari, localizada no Amazonas, é uma conhecida área de conflitos e alvo de grupos com interesses econômicos ilegais, incluindo o narcotráfico. Liberdade de imprensa não significa salvo-conduto para o repórter ou escrever, publicar ou falar o que bem entender; mas, principalmente, ter sua segurança garantida pelo Estado. Ele precisa disso para exercer sua atividade, que é fundamental para a democracia. E o descaso manifestado pelo governo é revoltante. Que nota foi essa do Comando Militar da Amazônia? Como assim “as ações serão iniciadas mediante acionamento por parte do Escalão Superior”?

Não é fake news: o mesmo governo que bate na tecla da soberania nacional, deixa entregue um território fronteiriço ao Deus dará – leia-se ao crime organizado, incluindo o tráfico de drogas internacional. “A maioria das drogas sai do Peru, mas aí elas vão pra Colômbia e também para o Acre, e para aquela região. Para sair, elas têm que cruzar a terra indígena, que é supostamente a área mais segura pros traficantes”, explica o indigenista Antenor Vaz, consultor para povos isolados da América do Sul. Madeireiros e garimpeiros se sentem igualmente à vontade para cometer ilegalidades na região.

A TI Vale do Javari tem dono. E não são apenas os 6.317 indígenas de 26 povos que lá vivem, como toda a população brasileira, já que é um bem da União. Mas é tratada como terra de ninguém. Ela é a segunda maior do Brasil e foi homologada em 2001, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. Mas seus 85.445 km² continuam desprotegidos. Ainda há o agravante de ela abrigar a maior concentração de povos isolados do mundo. É uma população extremamente vulnerável. Não zelar por seu bem-estar é uma omissão criminosa. E coisas, digamos, inexplicáveis andam acontecendo por lá.

Em setembro de 2019, Maxciel Pereira dos Santos, funcionário da Funai que trabalhava na terra indígena, morreu em Tabatinga, no Amazonas. Ele levou dois tiros na cabeça e o crime ainda não foi solucionado. No mês seguinte, o ora desaparecido Bruno Araújo foi exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados. Quando de seu desligamento, ele combatia o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomani, em Roraima – a maior do país e uma obsessão pessoal do presidente Bolsonaro. Coincidência?

Este dia também nos traz à lembrança que esse bem, tão duramente conquistado, não sofria tantas ameaças desde os tempos da ditadura. Em 2021, o Brasil caiu quatro posições no ranking mundial da Liberdade de Imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras. Hoje, o país ocupa a 111ª posição e o relatório ressalta que a situação se tornou especialmente tóxica desde a posse de Jair Bolsonaro, autor de boa parte das agressões dirigidas a jornalistas: “Insultos, estigmatização e orquestração de humilhações públicas de jornalistas se tornaram a marca registrada do presidente, sua família e sua entourage”. Como fez com as vítimas das enchentes no Brasil este ano, ele preferiu culpar as vítimas: “Realmente duas pessoas apenas em um barco, em uma região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça”. Bolsonaro se refere a dois profissionais experientes como se fossem irresponsáveis.

Segundo o relatório “Violações à Liberdade de Expressão”, da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), o país chegou a 145 casos de violência contra profissionais da imprensa no ano passado – o que dá uma média de 2,7 por semana. O número é 21,69% maior que o de 2020. Para a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), ele é ainda mais absurdo: foram registradas 430 ocorrências. “Violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil” diz que “a continuidade das violações à liberdade de imprensa no Brasil está claramente associada à ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República”. De acordo com o relatório, Bolsonaro pessoalmente foi responsável por 147 ataques à imprensa em 2021.

Não podemos nos calar. Todos nós somos gotas no imenso oceano da preservação ambiental e da defesa incondicional dos direitos humanos. Temos que exigir que Dom Phillips e Bruno Araújo Pereira sejam encontrados o mais rápido possível e que os povos indígenas sejam protegidos. E reafirmar: a Terra Indígena Vale do Javari e a liberdade de imprensa são bens inalienáveis do povo brasileiro.

 

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Jogando contra

Jogando contra

A expressão “desvio de finalidade” está na moda, mas não explica adequadamente como vêm agindo algumas instituições no atual governo. O caso do Ministério do Meio Ambiente, então, é muito instrutivo. O último lance infeliz da pasta foi bater mais um recorde de desmatamento. Imagine que o zagueiro de seu time seja torcedor fanático do adversário e marque, de propósito, um gol contra na final?

O Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou na última sexta-feira que foram abaixo 1.012 km² de floresta em abril – 75% a mais que no mesmo período em 2021. O número é particularmente impressionante porque chove muito nessa época na Amazônia, o que costuma dar um tempo na devastação. É a primeira vez na história que a área desmatada ultrapassa os 1.000 km² num mês de abril.

De acordo com um levantamento feito pelo MapBiomas, 97% dos alertas de desmatamento emitidos desde 2019 foram ignorados pelos órgãos de fiscalização ligados à pasta. Não foi por falta de disposição dos aguerridos jogadores do Ibama que, não custa lembrar, tem entrado em campo desfalcado; o seu técnico é que gosta de jogar recuado. E quem achar ruim vai pro banco de reservas.

Na última segunda-feira, a Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), que reúne funcionários do instituto, do ICMBio e do Serviço Florestal Brasileiro, divulgou uma nota na qual acusa o governo de dificultar suas ações: “Sem fiscalização, as atividades criminosas ganharam espaço para se desenvolver livremente, colocando sob risco não apenas os povos originários do Brasil, mas também toda a população, as futuras gerações, bem como a nossa megabiodiversidade”. O texto também diz que “há ainda dezenas de casos de perseguições e assédio aos servidores do Ibama e ICMBio, especialmente àqueles que atuam na fiscalização ambiental. Por fim, mas não menos importante, temos queda drástica de servidores nas diversas autarquias ambientais”.

Quem quer jogar pra frente é tratado como pereba ou desequilibrado: “Muita gente louca e os loucos gostam de direito ambiental porque eles se sentem confortáveis na área, inventando coisas”, respondeu Eduardo Bim, presidente do Ibama. Não contente, ele emendou: “Tem gestor que se sente constrangido por reportagem de jornal. Eu não. Eu sou um psicopata”. No ano passado, Bim foi afastado do cargo por três meses pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando a Polícia Federal o investigava por suspeita de favorecimento a madeireiras ilegais. Coisa de perna de pau.

O Ministério do Meio Ambiente tem a missão de “formular e implementar políticas públicas ambientais nacionais de forma articulada e pactuada com os atores públicos e a sociedade para o desenvolvimento sustentável”. Para quem não se lembra, uma das primeiras jogadas do atual governo foi entrar de carrinho na participação da sociedade civil nas comissões da pasta; mas no último dia 28, o STF lhe deu cartão vermelho. Na primeira votação do chamado “Pacote Verde”, o Supremo restituiu sua representação no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA).

No mesmo dia, o tribunal também declarou ilegal o decreto que que afastou governadores de estados da Amazônia legal do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) e o que extinguiu o Comitê Organizador do Fundo Amazônia (Cofa). Isso obrigou o governo a mudar sua tática: no dia 30 de abril, aumentou, voluntariamente, o número de representantes do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 23 para 36. Ainda faltam 60 para os 96 originais, mas o recuo mostra que o jogo ainda está longe de acabar.

A pasta do Meio Ambiente não é o único a jogar contra. O escrete da Funai, vinculado ao Ministério da Justiça, hoje é comandado por ruralistas. Sua missão institucional é “proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil”. Essa regra é desrespeitada diariamente; mas em março a Polícia Federal interrompeu uma jogada especialmente desleal: desbaratou uma quadrilha chefiada pelo coordenador-geral do órgão em Ribeirão Cascalheira (MT), onde fica a Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante.

Militar inativo da Marinha, Jussielson Gonçalves Silva é acusado, junto com três PMs, de arrendar áreas protegidas para criadores de gado. Antes de ser pego no antidoping, chegou a ser elogiado por Marcelo Xavier, presidente da Funai: “Esse é o caminho. O coordenador regional Jussielson Gonçalves e a prefeitura de Canarana estão de parabéns. Isso pode ser reproduzido em outras aldeias. Pode servir de modelo”.

O jogo só termina quando o juiz apita; então, ainda dá para virar. Mas é preciso reforçar o time do meio ambiente, e as eleições de outubro são a nossa oportunidade de levar para Brasília gente que honre a camisa.

 

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E não é que finalmente o Brasil cumpriu a profecia e se tornou o país do futuro? Infelizmente, não o da aurora cintilante de uma nova era, como preconizado por Gene Roddenberry, criador da série “Jornada nas estrelas” (“Star trek”); está mais para um cenário apocalíptico à “Mad Max”. Quando foi concebido em 2015, o Acordo de Paris tinha 2050 como data de referência; porém, os últimos relatórios do IPCC da ONU adiantaram esse relógio do Juízo Final em 20 anos. Se 2030 é a data limite para a Humanidade evitar o pior, aqui ele já chegou. Por ironia do destino, só foi possível realizar essa façanha (sic) graças a um governo que prometeu que nos faria regredir 40, 50 anos.

Estudos de entidades como o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e o Woodwell Climate Research (WHRC) atestam que a mudança no ciclo de chuvas já é uma realidade brasileira. Ondas de calor, os temporais que levaram morte e destruição a 11 estados brasileiros, na virada do ano, e a seca que assola o sul do país desde 2019 serão cada vez mais frequentes e imprevisíveis. Ponha as barbas de molho.

Ganha um guarda-chuva ou uma sombrinha quem disser qual a principal causa. Sim, ele mesmo, o suspeito de sempre, o desmatamento. E, segundo o Ipam, só na Amazônia ele aumentou 56,6% de agosto de 2018 a julho de 2021, em comparação com o mesmo período entre 2015 e 2018. Em janeiro, o Imazon revelou que o desflorestamento na região em 2021, quando 10.362 km² de verde desapareceram – o equivalente a meio Sergipe –, foi o pior dos últimos dez anos. “É um fato que a Amazônia bombeia água para várias regiões do mundo, inclusive o Sudeste brasileiro. Existe uma relação direta entre desmatamento e disponibilidade de água que chega para outras regiões”, explica André Guimarães, diretor-executivo do Ipam e integrante da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.

Uma única árvore pode mandar mil litros de água para a atmosfera por dia. Embora o desmatamento explique os cada vez mais longos e frequentes períodos de estiagem, de onde vem tanta chuva? Da mesmíssima causa, conforme conta o meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador-geral do Cemaden: “A quantidade de água suspensa na atmosfera hoje é maior do que tínhamos séculos atrás. Ou seja, o mesmo fenômeno meteorológico hoje consegue provocar mais chuvas que anos atrás”. O fenômeno é outro efeito colateral do aumento da temperatura média global: a atmosfera está mais quente e, por causa disso, retém mais água. E as florestas tropicais esfriam o planeta em mais de 1°C, de acordo com um estudo realizado pela Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos.

Já o Inmet coletou dados em 271 estações meteorológicas espalhadas pelo país e concluiu que a temperatura e os temporais aumentaram nas últimas décadas. Só na cidade de São Paulo, comparando a década passada com a de 1991 a 2000, o número de dias com chuva acima de 50 mm diminuiu (de 16 para nove dias), mas pés d’água acima de 80 e 100 mm aumentaram (de dois para sete dias). O calor também aumentou: as madrugadas estão 1,6°C mais quentes na capital paulista, em média, do que há 20 anos. “A alteração no padrão de precipitação fica ainda mais evidente quando comparada à última década com o período inicial de análise (1961-1970)”, diz o relatório.

Este futuro/presente distópico já causa – ou ao menos devia causar – pesadelos em quem tira o seu sustento do campo. “Existe principalmente uma mudança de distribuição de chuvas. A chuva está chegando cada vez mais tarde e acabando cada vez mais cedo. O produtor acaba tendo que plantar mais tarde, prejudicando a produtividade. E não adianta chover o mesmo volume se a planta e o solo ficam com mais sede”, explica Ludmila Rattis, pesquisadora do WCRC e do Ipam.

Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e com a Universidade de Bonn, na Alemanha, publicada em maio do ano passado na revista “Nature Communications”, estimou um prejuízo de R$ 5,7 bilhões por ano até 2050, causado pelo desmatamento na Amazônia. Duvidam? Pois na semana passada, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) baixou a estimativa para o PIB da agropecuária em 2022 de 2,8% para 1%. Ou seja, a previsão já está se tornando realidade.

É o famoso tiro no pé: o agronegócio é um dos grandes responsáveis pela destruição da maior floresta tropical do mundo. A Amazônia se aproxima a passos largos de seu ponto de inflexão, quando nada mais poderá salvá-la. Um amanhã sombrio que está logo ali, no país do futuro que se fez presente. O apressado come cru, diz o velho ditado; e, pelo andar dessa máquina do tempo com pinta de trem fantasma, pode nem ter o que comer.

 

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