dezembro 2020 | Desenvolvimento Sustentável, Povos Tradicionais
Alessandra Korap, liderança Munduruku
O governo nega o desmatamento na Amazônia, o fogo no Pantanal, a crise econômica, as mudanças climáticas, o racismo estrutural e até mesmo a gravidade da pandemia do novo coronavírus. Esse negacionismo revela uma grande verdade: o que não existe no Brasil é governo. O país se move a iniciativas da sociedade. Só sabemos que mais de 170 mil brasileiros perderam a vida para a Covid-19 graças ao consórcio de veículos de imprensa; e quantos dos nossos se foram, porque a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) faz uma contagem independente, que se tornou uma referência reconhecida. Nas periferias das grades cidades são os movimentos sociais que fazem o trabalho do poder público. Enquanto isso, o Ministério da Saúde deixa estragar num armazém qualquer quase sete milhões de testes, que poderiam ter salvado milhares de pessoas.
Até 30 de novembro, 15 Munduruku haviam morrido de Covid-19. Não foram muitos mais porque o convívio forçado de mais de 500 anos com organismos invasores nos fez criar nossos próprios protocolos. Mas estamos indefesos contra outro mal, ainda mais perigoso e duradouro: a contaminação por mercúrio, causada pelo garimpo ilegal. Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o WWF-Brasil revelou que todos nós, Munduruku que vivemos às margens do Rio Tapajós, carregamos o metal no sangue. Esta tragédia começa bem antes deste governo, é consequência de 70 anos de atividade ilegal, é verdade; mas sua negação em enfrentar o problema – ou ao menos reconhecer sua existência – serve de incentivo aos que invadem os territórios onde vivemos. Quando quebra um termômetro, o mercúrio se espalha. Funciona assim no momento em que o Executivo acena para a regulamentação da mineração em terras indígenas.
O metal está no peixe que comemos, na água que consumimos, e afeta principalmente os rins, o fígado, o aparelho digestivo e o sistema nervoso central. Ainda que nos afastássemos do Tapajós, ele continuaria se espalhando por gerações, pois também contamina o leite materno. Uma dor que passa de mãe para filha. Foram detectados em amostras de cabelo níveis até quatro vezes maiores que os permitidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive em crianças pequenas. Na Aldeia Sawré Aboy, nove em cada dez pessoas avaliadas apresentaram níveis de mercúrio acima do considerado seguro.
O Tapajós tem quase dois mil quilômetros de comprimento. Nasce no Mato Grosso, da junção de dois outros grandes rios, o Juruena e o Teles Pires, e atravessa o Pará até desembocar no Amazonas. Em sua foz fica Santarém, a segunda maior cidade paraense. Portanto, o problema não é só nosso. E também não se resume ao Tapajós: o drama dos Yanomâmi é conhecido mundialmente. Em 2015, cansamos de esperar o governo cumprisse o seu dever e nós mesmos demarcamos, usando dados da Funai, os limites da Terra Indígena Sawré Muybu, onde foi realizada a pesquisa da Fiocruz e da WWR-Brasil. Para enfrentar o garimpo ilegal, precisamos de toda ajuda possível. Se o governo se finge de morto, a sociedade civil precisa se mostrar mais viva do que nunca.
#GarimpoIlegal #Desmatamento #Amazônia #PovosIndígenas #Mercúrio #Munduruku #Yanomâmi #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta
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Estudo analisa a contaminação por mercúrio entre o povo indígena munduruku
Pesquisa indica exposição crônica de indígenas Munduruku ao mercúrio na região da bacia do Tapajós
Riqueza que não se extrai
Estudo revela contaminação por mercúrio de 100% dos Munduruku do Rio Tapajós
novembro 2020 | Desenvolvimento Sustentável
O conto varia de um lugar para o outro, mas a essência da história é a mesma: um espírito incandescente toma conta das matas e espanta aqueles que nelas querem atear fogo ou causar destruição. O Boitatá muda de forma, mas a mais comum é a de uma grande cobra feita de chamas com brilho azulado. Ele persegue aqueles que fazem mal à natureza, cegando-lhes. O primeiro registro escrito da lenda é do jesuíta José de Anchieta, em uma carta assinada por ele em 1560. O folclore se relaciona a um fenômeno natural explicado pela ciência: fogo-fátuo é uma chama azulada e efêmera produzida pela combustão espontânea de gás metano em pântanos ou lugares úmidos onde há muita concentração de matéria orgânica em decomposição.
Praticamente cinco séculos depois de padre Anchieta está difícil para o Boitatá vencer a concorrência. Hoje outros mitos tomam conta do Brasil. Há quem acredite que a Amazônia não está sendo desmatada e que o Pantanal não está em chamas. Numa cegueira seletiva, fingem não ver o encolhimento do Cerrado ou o desequilíbrio climático que afeta todo o planeta. Falando nele, há os que dizem ser plano. Nega-se o racismo estrutural enraizado em nossa história. E, diante das imagens de covas comunitárias, há até mesmo os que relativizam a gravidade da pandemia de Covid-19. É tanto negacionismo que a gente chega a questionar a própria existência.
Em Brasília, as dúvidas se aprofundam. Ainda mais quando o assunto é meio ambiente. Existe uma política pública para cuidar da natureza (ou seria lenda)? Em 2019, o Ministério do Meio Ambiente tinha à disposição mais de R$ 10 milhões para combate às mudanças climáticas, mas só 13% foram usados; e dos R$ 3 milhões que iriam para a conservação e o uso sustentável de nossa biodiversidade, apenas 14% se converteram em ações concretas. Os dados são do relatório anual da Controladoria-Geral da União.
O ano virou e as proporções se tornaram ainda menores, segundo aponta o Observatório do Clima, em levantamento feito a partir dos dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento. Nos primeiros oito meses de 2020, o ministério tinha à disposição cerca de R$ 26,5 milhões para ações de prevenção, mas só usou 0,4% do dinheiro disponível. Do montante de R$ 1,388 milhão que deveria ser usado para cuidar de nossa biodiversidade, 96,4% permaneceram intocados; e dos mais de R$ 6 milhões que deveriam ser utilizados em fomento a pesquisas relacionadas às mudanças climáticas, nem um único tostão foi investido. O dinheiro está lá, mas não se converte em ações práticas. Seria este o orçamento de Schrödinger?
A justificativa oficial foi que “o ministério alterou seu planejamento estratégico, sua estrutura e suas prioridades orçamentárias, com prioridade para recursos destinados aos programas de Qualidade Ambiental Urbana: resíduos sólidos, saneamento e qualidade do ar”. Se buscamos qualidade ambiental urbana acima de tudo, porque só 6% dos R$ 6,5 milhões disponíveis para a área foram investidos?
Outro que parece nunca ter existido é o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). Mas não é lenda. No início deste século, nossa voracidade em relação ao verde tinha chegado a níveis pantagruélicos. Em 2004, inacreditáveis 27.772 km² de floresta foram abaixo. O plano se concretizou e o Brasil conseguiu reduzir em 83% a devastação na região entre aquele ano e 2012. Isso só foi possível porque houve um esforço em conjunto da sociedade brasileira, agronegócio incluído.
Já se sabia naquela época e repetimos hoje: preservar a natureza não é gasto, é investimento. Só em outubro de 2020 foram destruídos 7.899 km² de Amazônia, 50% a mais que no mesmo mês do ano passado, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Pagaremos muito mais caro depois.
Se não há investimento, então o que se propõe como solução prática para controlar o fogo? Uma das propostas é aumentar o espaço de criação de gado nos limites das reservas naturais para “reduzir o acúmulo de massa orgânica”. É claro! É só transformar a floresta em pasto que não tem mais incêndio, dizem eles. Não é assim que funciona? Respondemos: Não, não é.
Vejamos o Pantanal como exemplo. Há dois pontos que mostram a falácia. O primeiro é que o rebanho bovino no Pantanal cresceu nos últimos anos. Ou seja, se o boi é bombeiro, ele não está fazendo bem o seu trabalho, porque o número de focos de incêndio também aumentou. O segundo ponto é a conclusão da perícia na Reserva Natural do Sesc Pantanal: a causa do incêndio foi dada como queima intencional de vegetação desmatada para criação de área de pasto para gado em uma fazenda na região que entrou para a área da reserva. Mais uma vez, a ciência derruba a lenda.
O boi-bombeiro o boitatá às avessas. Não afasta os homens que querem destruir a natureza, antes pelo contrário, ele mesmo traz consigo o desmatamento. Aonde chegaremos se levarmos mitos ao pé da letra?
#Pantanal #Amazônia #Desmatamento #Queimadas #MeioAmbiente #MudançasClimáticas #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta
Saiba mais:
G1 – Por que a teoria do ‘boi bombeiro’ no Pantanal, citada pela ministra da Agricultura, é mito
Estadão – Bolsonaro volta a defender o ‘boi-bombeiro’ para apagar fogo do Pantanal
Governo de Mato Grosso – Perícia constata que incêndio em reserva no Pantanal foi provocado por ação humana
O Globo – Governo gastou, em 2019, cerca de 70% a menos com ações de combate ao racismo em relação ao ano anterior
G1 – Ministério deixa de usar maior parte da verba para preservação ambiental, diz CGU
G1 – Ministério do Meio Ambiente não gastou nem 1% da verba para preservação, diz levantamento
Valor Econômico – Política ambiental, o que o orçamento mostra e promete
BBC Brasil – Ibama paralisa combate a incêndios alegando falta de caixa, mas 15% do orçamento não foi usado
El País – Dióxido de carbono na atmosfera baterá novo recorde em 2020 apesar da pandemia
Valor Econômico – UE dirá no G-20 que quer reforma “verde” na OMC
Folha de São Paulo – Brasil trava preparo do acordo de biodiversidade da ONU
G1 – Novo site do Ministério do Meio Ambiente não tem informações sobre áreas protegidas
O Globo – ‘Não esperamos nada de positivo do governo, mas jamais vamos desistir’, diz líder indígena brasileira que recebeu prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos
outubro 2020 | Mudanças Climáticas
O ano de 2020 não cansa de se superar. Agora são tantos ciclones e furacões nascendo no Atlântico que a lista de nomes previstos no início do ano pelos cientistas acabou. Os meteorologistas passaram a identificá-los com o alfabeto grego. Por isso, o mais recente tem o nome Zeta. A tempestade que está assolando a costa da Luisiana (EUA) é a de número 27. Mas o que um furacão nos Estados Unidos teria a ver com a gente, aqui no Brasil?
Outro nome esquisito: oscilação multidecadal do Atlântico. Significa que a superfície do mar do Atlântico Norte está esquentando. E esse fenômeno é responsável tanto pela maior quantidade de furacões nos Estados Unidos quanto pela maior seca dos últimos sessenta anos no pantanal brasileiro.
É como se fosse um El Niño no Atlântico. Mas, enquanto o El Niño ocorre em períodos que variam de 2 a 7 anos no Pacífico, as oscilações do Atlântico acontecem a cada três ou quatro décadas. Cientistas da NASA (Agência Nacional da Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos) estão acompanhando de perto. O chefe do laboratório de biofísica da agência, Douglas Morton, explicou ao jornalista André Trigueiro: “Estamos no período mais quente no mar Atlântico. E pode durar mais uma década, mais duas décadas ou ir mais longe ainda, porque as temperaturas na superfície do mar estão crescendo pelo aquecimento global”. Como consequência, o Pantanal e o sul da Amazônia ficam mais secos.
“No sul da Amazônia, a floresta está transpirando menos água”, disse o cientista Carlos Nobre. “Durante os meses secos – principalmente julho, agosto e setembro – a temperatura no sul da Amazônia chega a ser três graus mais quente do que era nos anos 80. Então o ar que chega no Pantanal, vindo da Amazônia, chega mais quente.”
É dessa parte mais baixa da floresta que saem dois irmãos: o rio Xingu e o Tapajós. Eles correm lado a lado, do Mato Grosso até o coração do Pará, onde suas águas se unem ao rio Amazonas. E foi às margens desses rios que ouvimos lições tão importantes nos últimos dez anos.
À beira do Xingu, o antropólogo Eduardo Viveiro de Castro nos alertou lá atrás, em 2011:
“As obras que estão se fazendo aqui, as fazendas de gado que estão se abrindo na região de São Félix do Xingu, as fazendas de soja que estão envenenando o rio com agrotóxicos lá na cabeceira do Mato Grosso, isso é o passado. Os índios que estão aqui, os ribeirinhos que estão aqui, são o futuro. Eles são a garantia de que o país tenha um futuro. E um futuro diferente do resto do mundo. Nós, brasileiros, gostamos de nos sentir diferentes. E se a gente quer mesmo ser diferente, vamos fazer diferente. Vamos fazer diferente do que os americanos fizeram com o Mississipi, vamos fazer diferente do que os europeus fizeram com os rios e com as florestas de lá. Vamos tentar ser originais. Então a primeira coisa a fazer é tratar, de modo diferente do que eles trataram, da nossa natureza.”
E, à beira do Tapajós, o cacique Juarez Munduruku nos banhou com sua sabedoria ancestral em pleno 2020:
“Esse rio aqui se torna meu corpo. Por que eu quero dizer que o rio é meu corpo? Porque ele é o corpo de todo mundo. Por exemplo, esses igarapés, são as nossas veias. Os madeireiros estão destruindo as cabeceiras dos igarapés. Então o que está acontecendo? O rio está morrendo aos poucos, também. Os igarapés são os primeiros que secam. E eles que fortalecem o Tapajós. Daqui a uns tempos, daqui a uns cem anos, nós vamos brigar pela água.”
Como se não fosse suficiente manter um modelo de vida que agrava a crise climática, a ilicitude humana eleva ainda mais a régua. Este ano, foram mais de 194 mil focos de incêndio no Brasil, dos quais 20.926 queimaram o Pantanal. E, de acordo com o Ibama, mais de 90% dos incêndios na região foram ilegais. “Quem planta fogo colhe cinzas”, diz um brigadista à repórter Cláudia Gaigher, da Rede Globo. Escolhas individuais se desdobram em consequências vividas pelo todo. Até quando?
Aqueles que insistem em criar divisões têm dificuldade em ver que tudo está conectado. Os povos tradicionais aprenderam com a natureza que o planeta é um só, e que nós pertencemos à Mãe Terra, não o contrário. Para tratar da verdadeira riqueza da melhor forma é preciso parar e ouvir os que entenderam, lá atrás, que o cuidado dos rios é tão importante quanto o das artérias.
A mensagem está aí. Para recebê-la basta abrir os olhos, os ouvidos e o coração.
#MudançasClimáticas #MeioAmbiente #PovosTradicionais #Amazônia #Tapajós #Desmatamento
Leia mais
Eduardo Viveiros de Castro: Expedição Gota d’Água Xingu
Amazônia Sociedade Anônima (documentário)
Jornal Nacional: Pantanal, maior planície alagada do planeta, está sendo destruído como nunca se viu antes
Por falta de recursos humanos e materiais, fauna no Pantanal é destruída pelo fogo
WWF – O Bioma Pantanal
Clima Info: O que o clima seco no Pantanal e no sul da Amazônia tem a ver com a crise climática?
G1: Com 2.825 pontos de incêndio, Pantanal tem pior outubro da história
outubro 2020 | Povos Tradicionais
Bastou dar corda. O presidente nunca escondeu sua visão anacrônica em relação aos povos tradicionais e suas palavras têm servido de senha para quem cobiçava suas terras. Em setembro do ano passado, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) já previa o estouro da boiada: até aquele mês, 160 invasões a terras indígenas (TIs) tinham sido registradas – 49 a mais do que em todo o ano de 2018. Mas o relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil – Dados 2019”, que acaba de ser lançado pela instituição, surpreendeu até os mais pessimistas: foram 256 casos, 135% a mais que no ano anterior. Para se ter uma ideia, o desmatamento na Amazônia cresceu 85% no mesmo período, um número já assombroso. Além disso, houve 113 assassinatos, como o de Paulo Paulino Guajajara, que fazia parte do grupo de sentinelas voluntários Guardiões da Floresta. Ao que parece, a ideia era passar por cima, já que até uma espécie de “caveirão”, um trator blindado, chegou a ser usado contra indígenas no Mato Grosso do Sul.
Com os indígenas recolhidos em suas aldeias por causa do novo coronavírus, é de se esperar que os números de 2020 sejam ainda mais impressionantes – até porque há outros indícios. Já perdemos 26,5% do Pantanal para o fogo, os incêndios na Amazônia devem superar os do ano passado e no último sábado, o ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), disse que o governo ainda não teve tempo para cuidar do meio ambiente. “Nós sabemos exatamente o que fazer”, afirmou. Será que sabem mesmo? De concreto, até agora o governo cortou 4% do orçamento do Ibama para o ano que vem e gastou menos de 40% da verba de 2020 destinada à fiscalização e ao combate a desmatamento e aos incêndios. O órgão tinha 1.311 fiscais em 2010 e hoje são 694, praticamente a metade. Quando em campanha, o presidente prometeu que não demarcaria “nem mais um centímetro” de TIs. E vem cumprindo a promessa: desde que assumiu, nenhum processo de demarcação foi concluído. Inclusive 27 deles, que se encontravam em estágio avançado, estão sob risco.
O governo se escora no Parecer 001/2017, emitido pela Advocacia-Geral da União (AGU) durante o mandato do ex-presidente Michel Temer por pressão da bancada ruralista, para atrasar as ações. A medida trouxe novamente à baila a tese do “marco temporal”. Segundo esta, só teriam direito às suas terras os povos que as estivessem ocupando até o dia da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988), mesmo se tivessem sido arrancados delas à força. Quando foram largados à própria sorte pelo governo durante a pandemia, os indígenas recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu que sua reivindicação era justa. Agora eles novamente contam com a corte para que a Justiça seja feita novamente e que esta ameaça seja definitivamente afastada.
No fim do mês, o STF julgará uma ação envolvendo o povo Xokleng, em Santa Catarina. É um caso exemplar. Os Xokleng foram contactados em 1914. Eram cerca de 400 indivíduos, que viviam da caça e da coleta; cerca de 20 anos depois, tinham restado pouco mais de 100. Acuados pelos colonos que chegaram à região e obrigados a se tornarem agricultores, ainda viram boa parte das terras que lhes restaram serem inundadas pela construção de uma barragem, em 1992. O caso da demarcação de suas terras se arrasta desde 2003, mas agora foi reconhecido como de “repercussão geral”: sua decisão será válida para todos. O artigo 231 da Constituição assegura que o direito do indígena à terra é “originário”, ou seja, anterior à criação do Estado brasileiro. Logo, o “marco temporal”, que não é previsto em nenhuma linha da carta a qual devemos obediência, é inconstitucional.
Ela também previa que todas as TIs deveriam estar demarcadas até 25 anos depois de sua promulgação. O país está em dívida com os indígenas. O STF tem o privilégio de poder saldá-la. “Os índios reivindicam áreas que ainda têm significado para essa organização social específica. As demandas de marcação são concretas, específicas, delimitadas e bem localizadas. Ninguém está reivindicando a praia de Copabacana”, explica Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA). Até porque não sobrou nenhum Tamoio, povo que habitava originalmente a região, para reclamá-la. Além de a demarcação de TIs ser um assunto de interesse de todo brasileiro – pois são bens da União e as áreas de floresta mais preservadas da Amazônia – lembre-se: agora estão querendo mexer, de forma arbitrária, nos direitos dos indígenas. Os próximos podem ser os seus.
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#PovosIndígenas #Supremo #STF #MarcoTemporal #Amazônia #CadaGotaConta
setembro 2020 | Desenvolvimento Sustentável
Está nos autos: o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso reconheceu a existência de uma “realidade imaginária paralela”. Evidências robustas atestam e dão fé à constatação. Ele, que é relator de uma ação contra o governo federal por não agir contra o avanço das mudanças climáticas, declarou em audiência que este subterfúgio vem sendo usado por quem se recusa a enfrentar a questão ambiental com dados concretos. Nesse mundo fictício, indígenas botam fogo na floresta; no real, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) certifica que em 2019, somente 7% das queimadas aconteceram em suas terras, que correspondem a 25% da região, enquanto 33% foram registrados em propriedades privadas, que somam 18%. Recuando no tempo, essa história fica ainda mais fantasiosa. Indígenas ocupam a Amazônia há pelo menos 8 mil anos. Em 1975, quando o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) mediu o desmatamento na região pela primeira vez, a porcentagem era de 0,5%; em 1988, tinha pulado para 5,5% e hoje, 20%. Adivinhem quem começou a invadir a mata há 25 anos…
Quando esteve no Fórum Econômico Mundial de Davos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, usou da imaginação ao responsabilizar os mais necessitados pela encruzilhada climática em que nos metemos. Enquanto isso, um relatório recém-divulgado pela ONG Oxfam, elaborado em parceria com o Instituto Ambiental de Estocolmo, comprova que os 10% mais ricos (630 milhões de pessoas) são responsáveis por mais da metade (52%) das emissões de CO₂ do planeta. Os dados se referem ao período em que elas dobraram, entre 1990 e 2015. O 1% de pessoas mais ricas (63 milhões) foi responsável por 15% das emissões globais no período – enquanto a metade mais pobre da população emitiu apenas 7%, menos da metade. Logo, sua cota de carbono está sendo usada para uns poucos passearem de jipes de luxo – segundo o relatório, o aumento do número de veículos dessa categoria em circulação foi um dos responsáveis pela disparada nas emissões. Concentração de renda ajuda a concentração de gases do efeito estufa (GGEs) aumentar.
É fato: os mais pobres também são os mais atingidos pelas mudanças climáticas; ou seja, a maioria paga duas vezes essa conta. Hoje, os desastres climáticos também são a causa principal das migrações forçadas e obrigaram mais de 20 milhões de pessoas por ano a deixarem as suas casas na última década, segundo outro estudo da Oxfam. O texto destaca que os mais pobres, justamente “os que menos contribuíram para a poluição causada pelo CO₂ são os que estão em maior risco”. Os dados da ONG se referem ao mundo inteiro, mas dizem muito em relação ao Brasil real, em particular. O país tem a segunda maior concentração de renda do mundo, de acordo com o relatório o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da ONU. Aqui, o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total – perdemos apenas para o Catar, onde 1% detém 29%.
Essa desigualdade se reflete no campo. Isso não é lenda, quem fala agora é a História com agá maiúsculo: há 170 anos, em 18 de setembro de 1850, o então imperador Dom Pedro II assinou a Lei de Terras que, em termos gerais, dividiu o campo brasileiro em latifúndios, em vez de pequenas propriedades. As consequências estão aí até hoje. Segundo o Censo Agropecuário do IBGE, 1% das propriedades agrícolas ocupa quase metade da área rural do país. O projeto Cortina de Fumaça, recém-lançado pela Ambiental Media, em parceria com o Pulitzer Center, através do Rainforest Journalism Fund, aponta que grandes fazendas concentraram 72% dos focos de calor nas principais áreas críticas de incêndios na Amazônia em 2019. Para se chegar ao resultado, os pesquisadores cruzaram os dados do Inpe com os do Cadastro Ambiental Rural (CAR) – ou seja, somente números oficiais. Não é só em tempos de pandemia que deveríamos evitar concentrações.
Estimativas do Sistema de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) do Observatório do Clima apontam que o desmatamento foi a principal fonte de emissões no Brasil em 2018, respondendo por 44% do total. O país é responsável por 3,4 % das emissões globais de GEEs. Num mundo de faz de conta esse número é pequeno, mas na dura realidade é maior que o de todos os países europeus, do Japão e da Austrália, por exemplo. Só ficamos atrás de EUA, China e Rússia. E o pior: fazemos isso dilapidando nossas maiores riquezas e arruinando a credibilidade do país no exterior – inclusive do agronegócio nacional. Em troca de quê? De acordo com uma pesquisa internacional publicada em julho na revista “Science”, 2% das propriedades agrícolas no Cerrado e na Amazônia são responsáveis por 62% do desmatamento ilegal. É essa minoria que vai nos impor o Brasil da realidade imaginária paralela?
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