Uma questão de humanidade

julho 2023

Quando as caravelas de Cabral chegaram aqui, em 1500, já tinha gente morando há pelo menos 10.500 anos. Agorinha, em maio, foi descoberto um fóssil humano em Serranópolis, no sul de Goiás, com cerca de 12 mil anos; e tem uns e outros que têm o descaramento de exigir dos povos originários que provem que ocupavam suas terras ancestrais em 5 de outubro de 1988. Longe de nós passar pano para o colonizador escravagista e genocida ou para ditadores sanguinários, mas até os portugueses e os militares reconheciam a posse dos indígenas de suas terras, e criaram leis para garanti-la – se as cumpriam ou não, é outro papo. Logo, é vergonhoso que justamente no período mais democrático de nossa História, em pleno século XXI, quando até os animais dito irracionais conquistaram os seus direitos, tenha gente exigindo comprovante de residência deles.

No Congresso Nacional, exumaram este ano – já que o seu autor, um ex-deputado e ex-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso, morreu em 2013 – o Projeto de Lei (PL) 490, de 2007, que, entre outras barbaridades, estabelece o tal de “marco temporal”, que obriga os indígenas a provarem que ocupavam seu território ancestral na data da promulgação da atual Constituição. Se foram expulsos de lá na base da bordoada, o problema é deles; uma inversão do Código Penal, que diz que cabe ao requerente – leia-se invasor – o ônus da prova. O fato de que, até aquela data, esses povos eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar com ações na Justiça, é um mero inconveniente. O PL foi aprovado na Câmara Federal com a velocidade do RBR de Max Verstappen, bicampeão da Fórmula-1. Enquanto isso, o julgamento sobre a tese jurídica do marco temporal segue em marcha lenta no Supremo Tribunal Federal (STF).

Hora da aula de História: quiçá entusiasmado por ter sido durante o seu reinado que Portugal se livrou do jugo espanhol, D. Afonso VI, vulgo O Vitorioso, editou, em 1º de abril de 1680, o Alvará Régio, que reconheceu os indígenas como “primários e naturais senhores” de suas terras, além de proibir sua remoção involuntária. Naquele ano, também nasceu o temível pirata Edward Teach, cognome Barba Negra. Assim como o corsário inglês, os deputados que votaram a favor do PL 490 não demonstraram o menor respeito pela propriedade alheia; em vez de perna, têm cara-de-pau e olho grande, não de vidro.

O Regimento das Missões foi baixado em 1686 por D. Pedro II, irmão e sucessor d’O Vitorioso. Ele era um golpista nato, pois depôs Afonso, mas manteve e ampliou sua política em relação aos povos originários: garantiu-lhes o direito de se recusarem a deixar suas terras e o seu uso exclusivo, proibindo que homens “brancos e mestiços”, exceto missionários, morassem nas aldeias. Ok, ele queria submetê-los ao cristianismo; porém, os primeiros invasores que tomaram o Brasil em nome da coroa portuguesa não deixaram de registar no papel as posses de seus habitantes originais. Dados a golpes como D. Pedro II, os parlamentares da bancada ruralista acreditam que têm um rei na barriga, e que não devem satisfação a ninguém, por considerarem o povo, a quem deveriam servir, seus súditos.

Eminência parda do Reino de Portugal de 1750 a 1777, o Marquês de Pombal também foi o maior representante do Iluminismo português. Enquanto foi Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino (o equivalente hoje ao cargo de Primeiro-Ministro) editou duas leis que garantiam os direitos dos povos originários. A de 1755 determinava que eles tinham “inteiro domínio e pacífica posse das terras (…) para gozarem delas per si e todos os seus herdeiros” – que estão aí até hoje – e o Diretório Pombalino do Maranhão e Grão-Pará, de 1758, determinou que “o direito dos índios nas povoações elevadas a vilas prevalece sobre o de outros moradores”, pois eles “são os primários e naturais senhores das mesmas terras”. Sebastião José de Carvalho e Melo, seu nome de batismo, tinha outras intenções, é verdade: também queria civilizar (sic) os indígenas; mas essa é outra história.

Fala-se muito que o PL 490, que hoje tramita no Senado sob o número 2.903, tem como objetivo-mor a chamada “segurança jurídica”, que traria paz ao campo. Porém, pouco antes de D. Pedro I dar o Grito do Ipiranga, a Resolução 76 da Mesa de Desembargo do Paço, editada em 17 de julho de 1822, aboliu o regime de sesmarias – que destinava terras à agricultura, inclusive as que já tinham dono – responsável por um sem-número de conflitos entre indígenas e colonos. Menos de duas décadas depois, já durante o Brasil Império, D. Pedro II, baixou, em 1850, a Lei das Terras n.601, que determinava que, em relação aos territórios de ocupação originária, “não há posse a legitimar, há domínio a reconhecer”. Simples assim. O Decreto 1.318, editado quatro anos depois, ainda garantia a posse dos indígenas às aldeias estabelecidas fora de suas terras tradicionais, com direito a títulos de propriedade. Mesmo que fosse da boca pra fora, já fomos um pouco melhores, né?

Na infância da República, em 1910, durante o governo de Nilo Peçanha, foi aprovado o Decreto 8.072, que criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, depois Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Além disso, determinou a restituição das terras roubadas dos indígenas. A partir de nossa terceira Constituição, em 1934, todas as seguintes procuravam resguardar os direitos dos povos originários, das mais diversas formas. Mesmo a infame Carta Magna de 1967, que nos foi imposta por ditadores golpistas e extinguiu o SPI, no seu artigo 198, determinava a anulação de ações na Justiça que tivessem “por objeto o domínio, a posse ou a ocupação” das terras indígenas, sem direito a indenização para os ocupantes.

Em 1973, ainda nos anos de chumbo, foi criada a Lei 6.001, conhecida como Estatuto do Índio, que estipulou regras para demarcações e determinou que todas as terras dos indígenas estivessem demarcadas até 1978 – o que, como sabemos, não aconteceu. É verdade que a ditadura assassinou cerca de 8 mil deles, segundo a Comissão da Verdade; mas em plena democracia testemunhamos o massacre Yanomami e as mortes de mais de mil indígenas por Covid-19, devido à omissão criminosa do governo anterior – aquele que não demarcou nem um centímetro de terra para eles.

A Constituição de 1988 trouxe grandes avanços para a causa dos indígenas. Além de passar a considerá-los cidadãos brasileiros como outros quaisquer, ela também garantiu – ou deveria ter garantido – definitivamente seus direitos territoriais. Mas, assim como aconteceu com o Estatuto do Índio, o prazo determinado pelo Artigo 67 dos seus Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, que diz que “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”, não foi cumprido. E isso abriu um flanco perigoso, que agora pode ser usado contra eles. Imagine se criassem uma lei para lhe fazer Justiça e ela se tornasse sua maior desgraça?

Congressistas dizem que há “muita terra para pouco índio” e que eles são “um entrave para o desenvolvimento do país”. Não fazem isso por falta de informação: latifundiários que invadiram terras indígenas doaram R$ 3,6 milhões para membros da bancada ruralista. Hoje, os Guarani ocupam uma área total de 2.250 km² no Mato Grosso do Sul, o que dá uma densidade demográfica de 27,2 habitantes por quilômetro quadrado, quatro vezes maior que a do estado, que é de 6,8, segundo o IBGE. Outro dado: entre 2000 e 2014, o agronegócio cresceu 41%, enquanto, no mesmo período, foram homologadas 137 terras indígenas, 141 declaradas e 162 identificadas. Os números não mentem, já os políticos…

A gente poderia, mais uma vez, apelar para a racionalidade, falando novamente da importância da preservação do meio ambiente para todos os habitantes deste planeta e do papel fundamental dos povos originários para que isso aconteça; ou simplesmente relembrar que o “marco temporal” é inconstitucional – pode esmiuçar a Constituição de 1988 à vontade que você não vai encontrar nenhuma menção a ele. Mas preferimos apelar para a sua consciência: é uma questão de humanidade, amor ao próximo e Justiça.

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