Lições do Rio Grande do Sul para repensar o desenvolvimento

Lições do Rio Grande do Sul para repensar o desenvolvimento

Por Sérgio Guimarães

Secretário executivo do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental

As recentes catástrofes no Rio Grande do Sul nos lembram brutalmente das consequências da negligência ambiental e da falta de infraestrutura adequada do nosso país. Enquanto enfrentamos esta dolorosa realidade, outro drama, por enquanto mais silencioso, mas potencialmente tão devastador, se desenrola na Amazônia e no Cerrado: o desmatamento descontrolado – que ameaça não só a biodiversidade local, a disponibilidade de água e as comunidades que delas dependem, mas também o equilíbrio climático global.

Há tempos os cientistas são unânimes em alertar que estamos nos aproximando do ponto de “não retorno” que, uma vez ultrapassado, desencadeará processos irreversíveis, comprometendo a capacidade de regeneração da floresta e intensificando eventos climáticos extremos por todo o Brasil — secas severas, inundações devastadoras, como vimos recentemente no Rio Grande do Sul, tragédias que poderiam ser mitigadas com políticas públicas mais robustas e conscientes.

Grandes projetos de infraestrutura, como rodovias e hidrelétricas, continuam entre os principais fatores que levam ao desmatamento. A história mostra que desde a construção da BR-364, que impulsionou a ocupação de Rondônia, a BR-230, conhecida como Transamazônica, até a BR-163; todas se constituíram no fator decisivo do processo de devastação na região, especialmente pela crônica falta de governança mesmo quando haviam medidas construídas coletivamente para evitar os impactos socioambientais como o plano BR-163 Sustentável que foi totalmente abandonado.

Da mesma forma, hidrelétricas como Tucuruí no rio Tocantins, Belo Monte no rio Xingu, Santo Antônio e Jirau no rio Madeira e quatro barragens construídas simultaneamente no  rio Teles Pires (afluente do Tapajós); além dos impactos diretos na floresta, na fauna aquática, no regime hídrico de grandes rios e nas comunidades ribeirinhas, também contribuem para o desmatamento, emissões de metano e outros gases de efeito estufa e para a ocupação desordenada da região, incentivando a migração para cidades que já padecem pelo déficit de infraestrutura básica.

É preciso assumir que essas atividades não estão precedidas por estudos suficientes para uma tomada de decisão com base técnica e, muitas vezes, são definidas a partir de interesses políticos e de setores econômicos diretamente envolvidos e que aprofundam o processo de desmatamento na região. Exemplos mais recentes como a Ferrogrão (um projeto de ferrovia de 933 km² de extensão, entre Sinop (MT) e Santarém (PA), hidrelétricas no Rio Madeira, hidrovia no Tocantins e a proposta de Corredores de Integração Sul-Americana também têm sido sinônimo de devastação ambiental.

Também é necessário lembrar que o Brasil foi um dos países signatários da Declaração do uso de Florestas e Terra dos Líderes de Glasgow da COP26, em 2021, que firma o compromisso total com o reflorestamento e a preservação florestal até 2030. Na COP27, no Egito, o presidente Lula reafirmou o compromisso com o acordo internacional. No entanto, as promessas ainda estão distantes da realidade no território, com isso o desmatamento avança e os impactos socioambientais se agravam.

Diante deste cenário, é imperativo intensificar e diversificar as ações para proteger a Amazônia e o Cerrado. É essencial promover um diálogo constante entre o governo, organizações da sociedade, movimentos sociais e outros atores, para criar políticas públicas eficazes e mecanismos de decisão transparentes e inclusivos.

Uma estratégia de atuação efetiva deve ter em vista a proteção da floresta, dos sistemas hídricos e, ao mesmo tempo, respeitar as comunidades e beneficiar a economia regional e a vida no planeta em termos de biodiversidade e equilíbrio climático.

É necessário ainda que as decisões sejam precedidas de estudos robustos de riscos socioambientais, viabilidade econômica, e de análises de alternativas de custo-benefício social, ambiental e econômico. Alternativas que devem considerar, prioritariamente, as necessidades de fortalecimento de uma economia regional sustentável e as necessidades das pessoas, em especial dos grupos mais vulneráveis. Também urge uma comunicação simplificada e bem direcionada, que consiga chegar nos diversos segmentos da sociedade, para que assim, a população possa contribuir com o processo de tomada de decisão.

A tragédia no Rio Grande do Sul deve servir como um alerta para todo o Brasil: é hora de repensar nossos modelos de desenvolvimento e infraestrutura. Não podemos permitir que a busca por progresso econômico imediato continue a sacrificar o meio ambiente e a segurança das atuais e futuras gerações. Agir agora é fundamental para evitar que as cenas de destruição que chocaram o país se tornem cada vez mais comuns.

Elefante na Amazônia? 

Elefante na Amazônia? 

Alessandra Korap Munduruku e Eliane Xunakalo*

Brasil e Estados Unidos, os dois grandes produtores e exportadores de soja do mundo, foram surpreendidos com a decisão da China, sua maior freguesa, de reduzir a importação da oleaginosa. Os chineses estão aumentando sua produção interna ou reduzindo o uso de seu farelo como ração para animais. No ano passado, foram 9 milhões de toneladas a menos em relação a 2022, uma redução de 13%. Então para que insistir na Ferrogrão? Periga ser uma estrada de ferro sem mercadoria para transportar; um elefante branco do tamanho de Belo Monte. Ainda mais se levarmos em conta que a obra levaria pelo menos 10 anos para ficar pronta.

Chamada oficialmente de EF-170, se for levada adiante, ela terá 933 km de extensão e ligará Sinop, em Mato Grosso, a um porto em Miritituba, no Pará, a um custo de R$ 34 bilhões. Depois, a soja seguiria por uma hidrovia a ser construída no Tapajós, entraria Rio Amazonas adentro e chegaria aos portos marítimos paraenses para exportar quase que exclusivamente soja. Para quem?

Ainda que os chineses, por acaso, mudem seus planos, as perdas serão muito altas: segundo a Universidade Federal de Minas Gerais, a área desmatada poderá chegar a 49 mil km², 64% maior que a taxa recorde da Amazônia, de 2022. Um território superior ao de países como Eslováquia, Dinamarca e Holanda. E nem falamos que outra seca como a de 2023 pode inviabilizar o transporte fluvial na região – e a ciência já alertou que ela deve se repetir.

Essa destruição vai causar a emissão de 75 milhões de toneladas de CO2 que, traduzidos em dinheiro, dariam um prejuízo de cerca de R$ 9,2 bilhões. Em 2020, a própria Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) admitia que a ferrovia impactará 48 terras indígenas e áreas de proteção ambiental. Os prejuízos que causarão aos povos da floresta são imensuráveis: invasores indesejáveis de todo tipo, de grileiros a contrabandistas de madeira e garimpeiros. Sem falar no desrespeito ao direito à consulta prévia e informada, que vem sendo atropelado nesse processo. Ou seja, a Ferrogrão é uma ferrovia que vai andar em marcha à ré. 

Por que, então, não investir em projetos verdadeiramente sustentáveis de retorno garantido? Por que insistir nesse modelo predatório? A palavra-chave todos conhecem: bioeconomia. Disso, nós, indígenas, entendemos muito bem. Vivemos da e com a Amazônia, sem lhe causar mal. Entretanto, enquanto isso, a Terra Sawré Muybu, uma das que serão mais atingidas por essa obra dispensável e danosa, foi reconhecida pela Funai em 2015 e aguarda sua homologação até hoje.

A Amazônia presta serviços ambientais, como estocar carbono e produzir chuva, que geram US$ 20 bilhões ao ano. Esses préstimos são usufruídos, principalmente, pelo agronegócio. Logo, o desmatamento gerado para a construção da Ferrogrão pode refletir em perdas para o próprio agronegócio no Centro-Oeste brasileiro – incluída a produção de soja. Se o Brasil não quiser perder o bonde da História e estiver disposto a ajudar o planeta a sair da crise climática e a fazer justiça social, é melhor esquecer de projetos de desenvolvimento ultrapassados e andar para frente. O futuro é verde e indígena.

*Alessandra Korap é liderança indígena do médio Tapajós e coordenadora da Associação Indígena Pariri; Eliane Xunakalo é presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt)

Um plano de vida para a Terra

Um plano de vida para a Terra

Não é de hoje que os indígenas vêm dizendo ao mundo que o clima está mudando e só têm encontrado ouvidos de mercadores. “Há muito tempo, desde que eu era menino, há 30, 40 anos, meu povo vem notando essas mudanças no clima, o calor aumentando e a chuva rareando. Antigamente, chovia pelo menos a cada 10 dias. Agora, são 90 dias sem cair um pingo sequer”, diz o cacique Zé Bajaga Apurinã, da aldeia Idecora, na Terra Indígena Caititu, que fica no município de Lábrea (AM).

“Temos visto deslizamentos de terra e inundações nas cidades. Isso acontece porque desmataram as encostas dos morros e impermeabilizaram o solo. A água não tem para onde ir e nenhum tipo de contenção. As cidades precisam de mais áreas verdes. É preciso reflorestá-las. Sem contar que o cimento e o asfalto refletem o sol e fazem o calor aumentar”, ensina o cacique Zé Bajaga, que também é coordenador executivo da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp) e faz parte do Conselho da Coordenação das Organizações da Amazônia Brasileira (Coiab).

A guerra contra a crise no clima tem que se dar em duas frentes: a redução da emissão de gases do efeito estufa e a adaptação dos territórios – urbanos, rurais ou florestais – à nova realidade por ela imposta. A ocupação da Amazônia começou há 14 mil anos e os povos originários têm todo esse tempo de experiência acumulada para se adaptar a circunstâncias adversas, incluindo catástrofes naturais. E eles já começaram a planejar para lutar em ambos os flancos, unindo saberes ancestrais e ciência moderna ‘no papel’. O Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) é uma ferramenta da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) que norteia a forma como eles manejam seu território. É tão importante para os povos originários que eles o chamam de Plano de Vida. 

Apesar de um estudo do governo federal ter alertado que, em mais de um terço dos municípios brasileiros, há pessoas vivendo em áreas suscetíveis a desastres naturais, a Confederação Nacional dos Municípios revelou que menos da metade dos municípios brasileiros que estão no Cadastro Nacional de Risco possuem Plano Municipal de Redução de Risco e 30% deles não têm sequer Plano Diretor. Enquanto isso, os povos indígenas vêm investindo na elaboração ou reformulação do PGTA de suas terras para contemplar estratégias de enfrentamento ao aquecimento global. 

O cacique Zé Bajaga Apurinã exemplifica uma ação voltada para o combate às mudanças climáticas prevista no documento que ajudou a conceber: “Nosso plano prevê a plantio de árvores de diversos tipos, frutíferas e não frutíferas, que ajudam a reduzir a temperatura local e a chuva a voltar”. Essas árvores também servirão de abrigo e vão fornecer alimentos à fauna local, que se encarregará de espalhar sementes pela mata. Os PGTAs têm o objetivo de promover a proteção socioambiental, o desenvolvimento sustentável e a implementação de políticas públicas em seus territórios – como saúde e educação.

Pensando em compartilhar conhecimento e buscar financiamentos para implementar e executar os PGTAs na Amazônia, a Coiab lançou um site que reúne quase 100 projetos de organizações dos nove estados da Amazônia Legal. É o maior banco de dados sobre esses territórios, que cobrem 700 mil km², onde vivem 152 povos diferentes, 17% deles isolados.

“A ideia é que o site seja uma vitrine para mostrar o que cada terra indígena tem feito pela sustentabilidade e as soluções que já encontramos e praticamos em nossos territórios. Essa ferramenta pode ser uma importante contribuição dos povos indígenas para a autossustentabilidade da Amazônia e do planeta”, explica o coordenador de Projetos da Coiab, Luiz Penha, do povo Tukano, do Amazonas. “É importante lembrar que a conservação das florestas e o equilíbrio do clima passam pela garantia de direitos aos indígenas sobre suas terras, e o PGTA é um instrumento feito de forma coletiva, por cada povo indígena, com esse objetivo”, completa o coordenador-geral da Coiab, Toya Manchineri. 

As tragédias se repetem, ano após ano, nas regiões Sul e Sudeste, as mais desenvolvidas do país. Enquanto isso, os povos originários continuam compartilhando saberes e aprendizados acumulados ao longo de milênios manejando a floresta, para mostrar um caminho possível para a gestão dos vários territórios em tempos de mudanças climáticas. Ouvir os indígenas é importante, mas não basta para frear o colapso do clima e do planeta: é preciso agir como eles.

Saiba mais

Todos os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs)

https://pgtas.coiab.org.br/ 

2023 é o mais quente em 174 anos, confirma relatório da OMM

https://portal.inmet.gov.br/noticias/2023-%C3%A9-o-mais-quente-em-174-anos-confirma-relat%C3%B3rio-da-omm 

48 mil morreram por ondas de calor no Brasil entre 2000 e 2018

https://oc.eco.br/mais-de-48-mil-pessoas-morreram-por-ondas-de-calor-no-brasil-entre-2000-e-2018/?swcfpc=1 

El Niño está sendo intensificado pelas mudanças climáticas, trazendo chuvas mal distribuídas

https://jornal.usp.br/atualidades/el-nino-esta-sendo-intensificado-pelas-mudancas-climaticas-trazendo-chuvas-mal-distribuidas/ 

Desastres em 47% dos Municípios forçaram mais de 4,2 milhões a deixarem suas casas nos últimos 10 anos

https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/desastres-em-47-dos-municipios-forcaram-mais-de-4-2-milhoes-a-deixarem-suas-casas-nos-ultimos-10-anos 

Mais de um terço dos municípios brasileiros têm moradores em áreas de risco de desastres naturais, aponta estudo

https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/01/18/mais-de-um-terco-dos-municipios-brasileiros-tem-moradores-em-areas-de-risco-de-desastres-naturais-aponta-estudo.ghtml 

Não adianta chorar sobre o Cerrado derrubado

Não adianta chorar sobre o Cerrado derrubado

Kátia Penha e Tasso Azevedo*

É preciso cuidar da saúde do corpo inteiro, não apenas de um órgão. O fechamento dos dados do DETER para ano de 2023 publicado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou que, apesar da redução de 50% do desmatamento na Amazônia, houve um aumento de 43% no Cerrado. A maior floresta tropical do mundo voltou a receber os cuidados necessários, enquanto nosso segundo maior bioma, tão vital quanto ela, não teve o mesmo tratamento e perdeu mais de 7,8 mil km² de vegetação nativa em 2023.

A crise climática pôs os olhos do mundo sobre a Amazônia, mas se nem todos lá fora conhecem a importância do Cerrado, aqui ela deveria ser óbvia: é nele que nascem oito das 12 maiores bacias hidrográficas brasileiras, incluindo a do São Francisco, da qual dependem 16 milhões de pessoas. A realidade do bioma exige uma estratégia de ação diferente da Amazônia. 

Enquanto na Amazônia a maioria da terra é pública e a proporção de área passível de desmatamento em propriedades rurais é de 20%, no Cerrado, a maioria das áreas é privada e a área autorizável para desmatamento chega a 80%. Por outro lado, a legislação europeia que trata da proibição da importação de produtos oriundos de áreas desmatadas leva em conta uma definição da FAO, que deixa de fora mais de 70% da área remanescente de Cerrado. Como existe a expectativa que essa definição seja revista em breve, indivíduos correm para desmatar enquanto podem.

Para reverter o quadro no Cerrado, três ações são fundamentais. Primeiro, ampliar as áreas protegidas (Unidades de Conservação e Terras Indígenas) do bioma para pelo menos 30% de sua área. A Amazônia tem mais de 40% de seu território resguardado, enquanto no Cerrado essa proporção fica entre 12% e 14%. Outra medida não menos eficaz é não dar subsídios para a agricultura em áreas onde há desmatamento. Isso se traduz em eliminar a aplicação dos recursos do Plano Safra em áreas desmatadas recentemente – seja legal ou ilegal.

Uma terceira ação deve ser criar um mecanismo de pagamento por manutenção da vegetação nativa que, ao mesmo tempo, serviria de incentivo para conservar e um desincentivo para desmatar. O Brasil apresentou na última COP uma proposta em que se paga uma quantia por ano por hectare preservado e desconta o equivalente a 100 hectares para cada um desmatado. Porém, na ponta do lápis, deixar o bioma na mão de quem sabe cuidar dele é a opção mais lógica e viável, e menos onerosa.

Os territórios quilombolas têm sido barreiras contra o desmatamento desenfreado: dados do MapBiomas mostram que entre 1985 e 2022, a perda de vegetação nativa em quilombos foi de 4,7%, contra 25% em terras privadas. No Cerrado, há 63 deles.

Não à toa, em 2021 o Quilombo Kalunga, o maior do país, foi reconhecido pelo Protected Planet, um programa ambiental da ONU, como o primeiro Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do Brasil. O Kalunga tem 2.620 km², porém somente 49% dessa área está regularizada.

Atualmente tramitam pelo Incra 1.787 processos de titulação de quilombos e, até hoje, só 207 foram titulados, sendo 59 parcialmente – como é o caso do Kalunga –, que somam 38 mil km², o equivalente a 0,5% do território nacional. É uma condição necessária para a sobrevivência não só do povo quilombola, mas de todos. Nós dependemos do Cerrado de pé e vivo; ele é um órgão fundamental para o corpo Terra.

*Kátia Penha é coordenadora nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)

*Tasso Azevedo é engenheiro florestal e coordenador geral do MapBiomas

Reconstruindo o caminho para o futuro

Reconstruindo o caminho para o futuro

Destruir é mais fácil que construir. Foram necessários 3 bilhões de anos para a Floresta Amazônica se formar e ela se manteve relativamente intocada até os anos 1980, quando a coisa degringolou. Segundo o Mapbiomas, até 2021 ela já havia perdido 17% de sua vegetação nativa. Durante o governo (sic) anterior, foi abaixo toda a estrutura que cuidava de sua preservação e, junto com ela, 35.193 km² de mata. Por isso, 2023 foi, antes de mais nada, o ano da reconstrução; porém de esperança também: entre janeiro e novembro foi registrada uma queda de 62% no desmatamento, a menor desde 2017. Podem espoucar a champanhe, mas lembrem-se que cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém.

Reconstruir o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) foi uma obra regida pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, em retorno triunfal à frente de trabalho ambiental. O novo governo começou com o pé direito logo na subida do presidente Lula na rampa do Planalto, de braços dados com Raoni. Depois vieram a volta de Marina, a criação do Ministério dos Povos indígenas – sob a batuta de Sonia Guajajara – o comando da Funai foi entregue à Joênia Wapichana e a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) a Ricardo Weibe Tapeba – todos indígenas, seguindo o lema que os povos defendem: nada sobre eles sem eles. 

Os quilombolas também ganharam representatividade nos ministérios da Igualdade Racial e do Desenvolvimento Agrário e, finalmente, deram o primeiro passo para sair da invisibilidade em que vivem há mais de 350 anos com o primeiro Censo do IBGE a incluir os quilombos. Dados fundamentais para a formulação de políticas públicas voltadas para esse povo tradicional, que também é fundamental para a preservação da biodiversidade e a regeneração de solos, com suas técnicas ancestrais.

Com essas medidas, o Executivo pretendia retomar o protagonismo do país nas discussões sobre o clima e a preservação ambiental e, ainda em 2023, colheu os primeiros frutos. O Fundo Amazônia, paralisado por quatro anos – por obra e graça do ex-ministro do Meio Ambiente, hoje investigado por contrabando de madeira e outros crimes – foi retomado logo em janeiro e com novos doadores: além de Noruega e Alemanha, entraram para a confraria Reino Unido, União Europeia, Dinamarca, Suécia e Estados Unidos. Mas, peralá, calminha no Brasil! Nem tudo são flores nessa história que deveria ter um desfecho feliz.

Temos hoje o Congresso mais antivida de nossa História e ele não para de aprontar: a menos de 15 dias do fim do ano e a quatro dias do recesso legislativo, a Câmara aprovou uma proposta que flexibiliza o licenciamento ambiental e permite o uso de recursos do Fundo para asfaltar a BR-319, que liga Porto Velho a Manaus, cortando 885 km de floresta – e abrindo caminho para o desmatamento de uma área de florestas maior que o estado de São Paulo. O projeto é comprovadamente desastroso, não apenas ambientalmente, como economicamente. E de nascença: “A BR-319 não tinha nenhum raciocínio econômico. Era tudo paranoia de que a Amazônia seria tomada pela cobiça internacional”, diz o biólogo Philip M. Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Será que os doadores internacionais vão engolir esse agá de nossos parlamentares? Difícil vem, fácil vai. Já foi uma vez.

E tem mais: no último dia 14, deputados federais e senadores derrubaram os vetos do presidente Lula a trechos do PL 2903, incluindo o que cria o “marco temporal” para demarcação de terras indígenas, que já havia sido considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O caso deve voltar à Justiça, mas até a resolução final, garimpeiros e madeireiros ilegais vão fazer a festa. Fora a pressão para a construção de outro desastre artificial, a Ferrogrão, estrada de ferro de 933 km que vai ligar Sinop (MT) ao Porto de Mirituba (PA) e seguir Rio Tapajós adentro, numa hidrovia de riscos mal calculados. Sua única serventia será exportar soja

É como se os congressistas tivessem esquecido que a Amazônia vem enfrentando a pior seca que se tem notícia e o Sul passou por uma temporada recorde de temporais – um ciclone extratropical provocou a maior catástrofe natural no Rio Grande do Sul em 40 anos, além de o aumento de 238% do desmatamento no Cerrado em novembro. Foram destruídos 571,6 km², mais do que o triplo do registrado no ano passado, 168,8 km². O segundo maior bioma do país está virando uma imensa lavoura de commodities. 

Sejamos justos, entretanto: essa amnésia seletiva não atinge só o Congresso brasileiro. A cada ano, o IPCC da ONU apresenta um relatório mais cataclísmico que o outro e as nações continuam postergando soluções. As emissões globais de CO2 devem crescer 1,1% até o fim do ano, de acordo com o Global Carbon Project – o que dá 36,8 bilhões de toneladas. Os efeitos já podem ser sentidos na pele: o serviço climático europeu Copernicus anunciou, no início de dezembro, que 2023 será o ano mais quente já registrado. Novembro foi o sexto mês consecutivo em que recordes de temperatura foram quebrados, chegando a uma média global de 14,22°C. 

Uma semana antes do início da COP-28, António Guterres, secretário-geral da ONU, alertou para a aceleração “absolutamente devastadora” do degelo da Antártida. Segundo o National Snow and Ice Data Center (NSIDC), em julho, o gelo marinho que cerca o continente estava 2,6 milhões km² abaixo da média de 1981 a 2010, uma perda de quase uma Argentina em superfície. Esse derretimento acaba influenciando na perda das geleiras terrestres, o que, por sua vez, influencia diretamente no aumento do nível do mar.

Não é ficção científica: daqui a pouco a água vai bater em nossas canelas. Até 2050, centenas de grandes cidades costeiras vão perder terreno – literalmente. Falemos do Brasil: no Rio de Janeiro, as projeções mais pessimistas indicam uma elevação do mar em 20 cm até meados do século e 48 cm até o fim dele; em Belém, serão 21,6 cm e 49 cm; e em São Luís e Fortaleza, 50 cm até 2100. Bairros inteiros vão ficar submersos.

Apesar de tantos alertas vermelhos, a COP de Dubai foi praticamente um showroom da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Convidado para entrar no clube, o governo brasileiro esqueceu parte das promessas que fez e liberou o leilão de 21 blocos para exploração de petróleo e gás na Amazônia. O Instituto Internacional Arayara lançou um relatório que aponta que 15 Unidades de Conservação, 23 terras indígenas e cinco territórios quilombolas serão afetados. Em que pese os seus acertos, o presidente Lula tem uma relação ambígua com o meio ambiente – quiçá porque sua formação vem do chão de fábrica e não do de terra.

Se boas novas vieram de Dubai foi a crescente participação dos povos originários, quilombolas e extrativistas, mostrando que os movimentos populares dos povos da floresta precisam ser não apenas ouvidos, mas reconhecidos como parte da solução. Já sabíamos que não seria fácil, e não será. Mas é como se diz, enquanto tem bambu, tem flecha. Em 2024, precisaremos nos unir aos guardiões da floresta pelo que temos de mais importante a construir no momento: um futuro. Mãos à obra. 

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