A fome é um projeto

A fome é um projeto

por Eduardo Souza Lima

Não adianta culpar a guerra na Ucrânia ou o coronavírus: não há justificativa que explique o aumento da fome no Brasil. A hipótese mais provável é que se trate de um projeto, não mera consequência de medidas desastradas. De que outra forma é possível explicar que ao mesmo tempo em que as exportações do agronegócio renderam, em março, a soma recorde de R$ 14,5 bilhões, hoje 33,1 milhões de brasileiros não tenham o que comer, contra 19 milhões em 2020? “Quem recebe R$ 400 por mês de Auxílio Brasil, pode ter dificuldade, mas fome não passa”, minimizou a tragédia o senador Flávio Bolsonaro.

Quando fala em “dificuldade”, o filho do presidente deve estar se referindo aos 60% da população que sofre algum tipo de insegurança alimentar – como ter que escolher entre jantar ou almoçar. Os dados são do mesmo levantamento do instituto Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) que apontou o espantoso aumento de famintos no país em dois anos. Já de acordo com a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), a cesta básica está custando no país, em média, R$ 758,72. O presidente prometeu que faria o Brasil voltar a ser o que era há 40, 50 anos; neste quesito em particular, já são quase 30, pois regredimos ao patamar de 1993.

O salário-mínimo, renda máxima de 38% dos trabalhadores do país, está em R$ 1.212; cerca de 18,1 milhões de pessoas receberam em maio a merreca de 400 pratas do Auxílio Brasil, segundo o Ministério da Cidadania. Para estes, sobraram R$ 853,28 para “ter dificuldade”; pros outros 18,3 milhões de cidadãos não contemplados, nem isso. A inflação corroeu rapidamente a moeda de troca eleitoral de Bolsonaro; os R$ 400 reais já valem bem menos do que quando o programa do governo foi inventado. Daí ele não estar extraindo os dividendos em forma de voto que esperava.

O presidente colhe o que plantou. Já em 2019, começando seu mandato, ele mandou fechar 27 armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Cabe ao órgão, vinculado ao Ministério da Agricultura, cuidar do chamado estoque regulador do governo. Este serve não só para controlar os preços em período de entressafra e combater a especulação – tem agricultor que joga comida fora para o preço subir, como estamos carecas de saber – mas também ajudar no combate à fome, na proteção a pequenos agricultores, e em garantir alimento a vítimas de desastres ambientais.

Para se ter uma ideia de como essa importante política vem sendo desmantelada, em 2013, havia 944 toneladas de arroz estocados em armazéns do governo; em 2015, mais de 1 milhão de toneladas. Em 2020, eram só 22 toneladas, que não dava nem para matar a fome da população em uma semana. Hoje, nem isso. Os mais pobres que esperem chover maná, como na passagem da Bíblia. Com a alta do dólar, os chefões do agronegócio preferem exportar sua produção, ajudando a desabastecer o mercado nacional e provocando a alta dos preços. É uma lógica cruel, a ponto de o maior produtor e exportador de soja do mundo ser obrigado a importar óleo da vizinha Argentina.

“Há pouco tempo, o Brasil era referência mundial de políticas públicas para reduzir a miséria e a fome. Essas políticas ao longo dos últimos anos foram totalmente negligenciadas, ou reduzidas, ou extintas. O primeiro ato do governo atual foi extinguir o Conselho de Segurança Alimentar. A fome tem uma causa e uma vontade política”, afirma Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania contra a Fome, ONG criada por Herbert de Souza, o Betinho, em 1993. Enquanto isso, na lista de bilionários brasileiros da revista “Forbes”, 19 empresários do ramo dividem US$ 78,7 bilhões. As fortunas pessoais – ou familiares – desses felizardos variam de US$ 15,4 bilhões a US$ 1,3 bilhão. Na lista estão o homem e a mulher mais ricos do país, Jorge Paulo Lemann e Lucia Maggi – mãe de Blairo, conhecido desmatador que foi ministro da Agricultura de Michel Temer.

A citação do parentesco não foi gratuita. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), mais conhecida como bancada ruralista, ocupa 241 cadeiras das 513 do Câmara Federal e 39 das 81 do Senado. São números absurdamente desproporcionais, já que 84% da população brasileira vive em áreas urbanas e apenas 15,6% em zonas rurais – e mais ainda, se levarmos em conta que esses congressistas representam apenas os interesses de algumas dezenas de felizardos. Por outro lado, só quatro em dez famílias brasileiras têm acesso pleno à alimentação. Nunca tantos passaram necessidade por tão poucos.

O agro não planta para encher nossas barrigas, mas seus bolsos. E é quem passa necessidade que paga por isso. O lobby é o principal fertilizante do agronegócio, assim como a soja, seu principal combustível. E, para se ter uma ideia, o Brasil colheu a maior safra de todos os tempos, com aproximadamente 139 milhões de toneladas do grão e exportou 86 milhões desse total. “Nosso foco de apoio tinha que ser na produção de alimentos que nós consumimos. Por que a gente precisa subsidiar tanto um mercado que exporta todo o alimento e não põe comida na nossa mesa?”, questiona Kiko Afonso.

Os agrados do governo molham mãos e irrigam a atividade. Não à toa, o agro segue fechado com Bolsonaro. O Ministério da Agricultura quer aprovar até o fim do mês o Plano Safra 2022/23, no valor de R$ 330 bilhões – o do período anterior foi de R$ 251 bilhões. “O agro nunca teve tanto dinheiro”, confessa o deputado Sérgio Souza (MDB-PR), presidente da FPA. O pequeno e o médio produtor rural dão emprego para 10 milhões de trabalhadores contra 1,4 milhão dos grandes latifundiários, e são eles que produzem a comida que chega no nosso prato. Mas a verba reservada para a agricultura familiar vem murchando: em 2012, por exemplo, era de R$ 512 milhões; em 2019, foi 93% menor, R$ 41 milhões. Hoje está em magérrimos R$ 89 mil.

Existe o crime organizado e o crime legalizado – como pretende o PL da Grilagem, que premia invasores de terras indígenas e unidades de conservação, que são bens da União. Só nas primeiras, foram reconhecidos pelo governo Bolsonaro 2,5 mil km² de fazendas, desde abril de 2020. É um patrimônio de todos nós passando para as mãos de particulares. Os danos causados pelo agronegócio ao Cerrado e à Amazônia e, por consequência, às nossas reservas de água e ao clima do planeta, são amplamente conhecidos – e até a conta de termelétricas usadas na irrigação de lavouras de soja nós estamos pagando, contribuindo involuntariamente com esses problemas.

Ambientalismo sem justiça social é jardinagem – daí hoje a palavra socioambiental ter sido adotada. O fator humano não pode ser excluído da equação que envolve a natureza e a produção de alimentos. A solução para ela se chama desenvolvimento sustentável. O Brasil saiu do mapa da fome em 2013 e voltou em 2018. Ao mesmo tempo em que roncam os nossos estômagos, o país contribui para que o futuro do mundo seja mais sombrio. A ganância e a perversidade de uns poucos têm feito com que a gente perca muito sem ganhar nada em troca. Nossas escolhas definem o nosso futuro. As eleições estão chegando: plante nas urnas um mundo melhor.

 

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Jogando contra

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A expressão “desvio de finalidade” está na moda, mas não explica adequadamente como vêm agindo algumas instituições no atual governo. O caso do Ministério do Meio Ambiente, então, é muito instrutivo. O último lance infeliz da pasta foi bater mais um recorde de desmatamento. Imagine que o zagueiro de seu time seja torcedor fanático do adversário e marque, de propósito, um gol contra na final?

O Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou na última sexta-feira que foram abaixo 1.012 km² de floresta em abril – 75% a mais que no mesmo período em 2021. O número é particularmente impressionante porque chove muito nessa época na Amazônia, o que costuma dar um tempo na devastação. É a primeira vez na história que a área desmatada ultrapassa os 1.000 km² num mês de abril.

De acordo com um levantamento feito pelo MapBiomas, 97% dos alertas de desmatamento emitidos desde 2019 foram ignorados pelos órgãos de fiscalização ligados à pasta. Não foi por falta de disposição dos aguerridos jogadores do Ibama que, não custa lembrar, tem entrado em campo desfalcado; o seu técnico é que gosta de jogar recuado. E quem achar ruim vai pro banco de reservas.

Na última segunda-feira, a Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), que reúne funcionários do instituto, do ICMBio e do Serviço Florestal Brasileiro, divulgou uma nota na qual acusa o governo de dificultar suas ações: “Sem fiscalização, as atividades criminosas ganharam espaço para se desenvolver livremente, colocando sob risco não apenas os povos originários do Brasil, mas também toda a população, as futuras gerações, bem como a nossa megabiodiversidade”. O texto também diz que “há ainda dezenas de casos de perseguições e assédio aos servidores do Ibama e ICMBio, especialmente àqueles que atuam na fiscalização ambiental. Por fim, mas não menos importante, temos queda drástica de servidores nas diversas autarquias ambientais”.

Quem quer jogar pra frente é tratado como pereba ou desequilibrado: “Muita gente louca e os loucos gostam de direito ambiental porque eles se sentem confortáveis na área, inventando coisas”, respondeu Eduardo Bim, presidente do Ibama. Não contente, ele emendou: “Tem gestor que se sente constrangido por reportagem de jornal. Eu não. Eu sou um psicopata”. No ano passado, Bim foi afastado do cargo por três meses pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando a Polícia Federal o investigava por suspeita de favorecimento a madeireiras ilegais. Coisa de perna de pau.

O Ministério do Meio Ambiente tem a missão de “formular e implementar políticas públicas ambientais nacionais de forma articulada e pactuada com os atores públicos e a sociedade para o desenvolvimento sustentável”. Para quem não se lembra, uma das primeiras jogadas do atual governo foi entrar de carrinho na participação da sociedade civil nas comissões da pasta; mas no último dia 28, o STF lhe deu cartão vermelho. Na primeira votação do chamado “Pacote Verde”, o Supremo restituiu sua representação no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA).

No mesmo dia, o tribunal também declarou ilegal o decreto que que afastou governadores de estados da Amazônia legal do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) e o que extinguiu o Comitê Organizador do Fundo Amazônia (Cofa). Isso obrigou o governo a mudar sua tática: no dia 30 de abril, aumentou, voluntariamente, o número de representantes do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 23 para 36. Ainda faltam 60 para os 96 originais, mas o recuo mostra que o jogo ainda está longe de acabar.

A pasta do Meio Ambiente não é o único a jogar contra. O escrete da Funai, vinculado ao Ministério da Justiça, hoje é comandado por ruralistas. Sua missão institucional é “proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil”. Essa regra é desrespeitada diariamente; mas em março a Polícia Federal interrompeu uma jogada especialmente desleal: desbaratou uma quadrilha chefiada pelo coordenador-geral do órgão em Ribeirão Cascalheira (MT), onde fica a Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante.

Militar inativo da Marinha, Jussielson Gonçalves Silva é acusado, junto com três PMs, de arrendar áreas protegidas para criadores de gado. Antes de ser pego no antidoping, chegou a ser elogiado por Marcelo Xavier, presidente da Funai: “Esse é o caminho. O coordenador regional Jussielson Gonçalves e a prefeitura de Canarana estão de parabéns. Isso pode ser reproduzido em outras aldeias. Pode servir de modelo”.

O jogo só termina quando o juiz apita; então, ainda dá para virar. Mas é preciso reforçar o time do meio ambiente, e as eleições de outubro são a nossa oportunidade de levar para Brasília gente que honre a camisa.

 

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E não é que finalmente o Brasil cumpriu a profecia e se tornou o país do futuro? Infelizmente, não o da aurora cintilante de uma nova era, como preconizado por Gene Roddenberry, criador da série “Jornada nas estrelas” (“Star trek”); está mais para um cenário apocalíptico à “Mad Max”. Quando foi concebido em 2015, o Acordo de Paris tinha 2050 como data de referência; porém, os últimos relatórios do IPCC da ONU adiantaram esse relógio do Juízo Final em 20 anos. Se 2030 é a data limite para a Humanidade evitar o pior, aqui ele já chegou. Por ironia do destino, só foi possível realizar essa façanha (sic) graças a um governo que prometeu que nos faria regredir 40, 50 anos.

Estudos de entidades como o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e o Woodwell Climate Research (WHRC) atestam que a mudança no ciclo de chuvas já é uma realidade brasileira. Ondas de calor, os temporais que levaram morte e destruição a 11 estados brasileiros, na virada do ano, e a seca que assola o sul do país desde 2019 serão cada vez mais frequentes e imprevisíveis. Ponha as barbas de molho.

Ganha um guarda-chuva ou uma sombrinha quem disser qual a principal causa. Sim, ele mesmo, o suspeito de sempre, o desmatamento. E, segundo o Ipam, só na Amazônia ele aumentou 56,6% de agosto de 2018 a julho de 2021, em comparação com o mesmo período entre 2015 e 2018. Em janeiro, o Imazon revelou que o desflorestamento na região em 2021, quando 10.362 km² de verde desapareceram – o equivalente a meio Sergipe –, foi o pior dos últimos dez anos. “É um fato que a Amazônia bombeia água para várias regiões do mundo, inclusive o Sudeste brasileiro. Existe uma relação direta entre desmatamento e disponibilidade de água que chega para outras regiões”, explica André Guimarães, diretor-executivo do Ipam e integrante da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.

Uma única árvore pode mandar mil litros de água para a atmosfera por dia. Embora o desmatamento explique os cada vez mais longos e frequentes períodos de estiagem, de onde vem tanta chuva? Da mesmíssima causa, conforme conta o meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador-geral do Cemaden: “A quantidade de água suspensa na atmosfera hoje é maior do que tínhamos séculos atrás. Ou seja, o mesmo fenômeno meteorológico hoje consegue provocar mais chuvas que anos atrás”. O fenômeno é outro efeito colateral do aumento da temperatura média global: a atmosfera está mais quente e, por causa disso, retém mais água. E as florestas tropicais esfriam o planeta em mais de 1°C, de acordo com um estudo realizado pela Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos.

Já o Inmet coletou dados em 271 estações meteorológicas espalhadas pelo país e concluiu que a temperatura e os temporais aumentaram nas últimas décadas. Só na cidade de São Paulo, comparando a década passada com a de 1991 a 2000, o número de dias com chuva acima de 50 mm diminuiu (de 16 para nove dias), mas pés d’água acima de 80 e 100 mm aumentaram (de dois para sete dias). O calor também aumentou: as madrugadas estão 1,6°C mais quentes na capital paulista, em média, do que há 20 anos. “A alteração no padrão de precipitação fica ainda mais evidente quando comparada à última década com o período inicial de análise (1961-1970)”, diz o relatório.

Este futuro/presente distópico já causa – ou ao menos devia causar – pesadelos em quem tira o seu sustento do campo. “Existe principalmente uma mudança de distribuição de chuvas. A chuva está chegando cada vez mais tarde e acabando cada vez mais cedo. O produtor acaba tendo que plantar mais tarde, prejudicando a produtividade. E não adianta chover o mesmo volume se a planta e o solo ficam com mais sede”, explica Ludmila Rattis, pesquisadora do WCRC e do Ipam.

Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e com a Universidade de Bonn, na Alemanha, publicada em maio do ano passado na revista “Nature Communications”, estimou um prejuízo de R$ 5,7 bilhões por ano até 2050, causado pelo desmatamento na Amazônia. Duvidam? Pois na semana passada, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) baixou a estimativa para o PIB da agropecuária em 2022 de 2,8% para 1%. Ou seja, a previsão já está se tornando realidade.

É o famoso tiro no pé: o agronegócio é um dos grandes responsáveis pela destruição da maior floresta tropical do mundo. A Amazônia se aproxima a passos largos de seu ponto de inflexão, quando nada mais poderá salvá-la. Um amanhã sombrio que está logo ali, no país do futuro que se fez presente. O apressado come cru, diz o velho ditado; e, pelo andar dessa máquina do tempo com pinta de trem fantasma, pode nem ter o que comer.

 

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Visão seletiva

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“E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio”, canta Caetano Veloso em “Um índio”, aquele que “descerá de uma estrela colorida, brilhante”, como o sol. Já em 1977, ele previa nessa canção a enrascada em que nos meteríamos e quem indicaria a saída: os povos originários, com seu conhecimento ancestral, “mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”.

Assim como a canção, o último relatório sobre mudanças climáticas do IPCC da ONU é de arrepiar, embora pelo motivo oposto. Mas há aqueles que, por alguma razão, não enxergaram o óbvio – ou se recusam a notá-lo. Para ajudá-los a abrir os olhos, 45 anos depois, o cantor leva seu violão para Brasília, no Ato pela Terra contra o Pacote da Destruição: “Eu acho que está na hora de a gente se manifestar na rua, botar a cara na rua”, convida. Porque a pressa e a pressão só não aumentam mais que o desmatamento e o desrespeito aos direitos humanos no país.

Com as bênçãos do governo e do presidente de Câmara Federal, congressistas ameaçam aprovar a qualquer momento cinco projetos de lei, o Pacote da Destruição, que podem ferir o Brasil de morte. O que trata de liberação da mineração em terras indígenas, o PL 191/2020, voltou para o topo da lista, como consequência indireta da guerra entre Rússia e Ucrânia – ou “uma boa oportunidade”, como disse o presidente Bolsonaro. Ele pode levar à inutilização das maiores reservas de água do planeta e à extinção de povos. “Depois de exterminada a última nação indígena / E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida”, como também está dito em “Um índio”.

E seria uma catástrofe a nível global, não só local. A mineração ajuda a pôr árvores abaixo e CO₂ lá em cima. Caso o desmatamento siga no ritmo atual, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) calcula que a floresta perderia 17 mil km² de área até 2030. Todo esse verde viraria mais 800 milhões de toneladas de CO₂ na atmosfera. Tem mais: no último dia 7, o jornal científico “Nature Climate Change” publicou um estudo da Universidade de Copenhaguen que indica que mais de ¾ da floresta vêm perdendo sua capacidade de regeneração desde 2003.

Ou seja, a Amazônia está se aproximando mais rápido do que se pensava de seu ponto de inflexão. “Se a perda da Floresta Amazônica se tornar irreversível, o efeito sobre a mudança do clima será significativo”, disse Tim Lenton, diretor do Global Systems Institute, na Universidade de Exeter, Inglaterra, coautor do texto. Caso a gente chegue a esse ponto, 90 bilhões de toneladas de CO₂ vão pro céu – e a Terra vira inferno.

A justificativa dada é nossa dependência externa de fertilizantes minerais; então convém lembrar que os indígenas não só preservam a Amazônia, como ajudaram a cultivá-la. Porém, se há quem não veja o que é claro como o dia, existem os que parecem dotados de visão de raios-x. Só isso explicaria que o Presidente da República conseguisse descobrir as jazidas de potássio em plena Amazônia, já que as conhecidas se encontram entre 650m e 1.200m de profundidade. O seu dom, entretanto, parece ter uma fraqueza: só funciona em terras indígenas. Seja lá qual for o problema, é para lá que ele mira.

O fertilizante russo é apenas a bola da vez; antes, cogitou-se até que o Brasil entrasse para o ramo de bijuterias de nióbio. Ronaldinho Gaúcho era craque nisso: olhar para um lado e tocar para o outro. “A demanda por potássio em terras indígenas é irrisória. O interesse real das mineradoras está na extração de ouro e diamante”, analisa a jogada Márcio Santilli, sócio-fundador e assessor político do Instituto Socioambiental (ISA). “Não são os interesses dos indígenas ou da União que motivam a proposta de regulamentação dessa atividade, mas sim o interesse econômico de determinados grupos”, pontifica o Ministério Público Federal. Precisa de VAR?

Há 40 jazidas do mineral e de fósforo, outro ingrediente da receita dos fertilizantes, que não estão localizadas em terras indígenas ou unidades de conservação. Mas ainda que o presidente pudesse enxergar o subsolo, parece que ele não consegue ver o óbvio, que as verdadeiras riquezas da Amazônia estão na superfície. O “Ato pela Terra contra o Pacote da Destruição” também prevê a entrega de um documento ao Senado: “O presidente da Câmara tem dado mostras de fazer passar toda a desastrosa permissividade que o atual governo propõe”, explica Caetano Veloso. É preciso tirar a peneira da frente dos olhos daqueles que ainda se negam a ver o sol.

O Ato pela Terra contra o Pacote da Destruição acontece neste dia 9/03 (terça-feira), a partir das 15h, em frente ao Congresso Nacional, em Brasília. O ato reúne artistas e representantes da sociedade civil, e é apoiado por 232 entidades e movimentos.

 

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Caso de saúde pública

Caso de saúde pública

Agressões contra o meio ambiente são casos de saúde pública. Quando tratamos mal a natureza prejudicamos a nós mesmos; e temos feito isso de variadas formas. Por exemplo: o que está acontecendo em Petrópolis (RJ) é resultado de tantos tiros no pé que, apesar de os eventos climáticos extremos terem se tornado mais frequentes com o aumento da temperatura global, o fenômeno nem precisa entrar na lista. Evidentemente, no topo está o descaso das autoridades, mas também entram nela velhos conhecidos, como o desmatamento, e o estreitamento e assoreamento de rios. E as consequências vão além das perdas materiais e das quase 200 mortes causadas pela chuva na Cidade Imperial.

Segundo o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), entre 1988 e o início de fevereiro – antes, portanto, do desastre que se abateu sobre Petrópolis – 3.758 pessoas morreram no Brasil em deslizamentos de terra. Já o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério do Desenvolvimento Regional, informa que há 966 municípios brasileiros ameaçados por inundações e seus efeitos devastadores, e só 337 (ou 34,9%) têm sistemas de alerta. “Que Deus os acuda”, devem pensar os governantes.

Petrópolis recebeu em 2015, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), um equipamento de última geração para detectar possíveis riscos. Dois anos depois, ele foi para a manutenção, de onde nunca mais saiu. O orçamento do órgão vem secando desde a sua criação, em 2012, quando recebeu R$ 90,7 milhões: em 2020, foram R$ 20,9 milhões, e no ano passado foram R$ 17,9 milhões, o menor de sua história . Continuamos na contramão do bom senso. O novo relatório do IPCC da ONU alerta: “Sem adaptação, as mortes causadas pelas inundações aumentarão globalmente em cerca de 130% em comparação com 1976-2005, com um aquecimento de 2°C”.

Além do rastro de destruição que gera as imagens que tanto nos chocam, desastres ambientais deixam sequelas graves e duradouras, menos visíveis. “Entre os quadros frequentes nesses sobreviventes vemos estresse pós-traumático, distúrbios do sono, pesadelos e memórias repetidas, dificuldade de concentração, raiva, ansiedade, pânico e depressão”, diz Núbia Cruz, mestre em saúde pública da UFMG. De acordo com a prefeitura de Brumadinho, só em 2019, ano em que aconteceu o desastre que matou pelo menos 270 pessoas, o consumo de antidepressivos no município aumentou 56%, e o de ansiolíticos, 79%.

Os efeitos colaterais não se resumem à saúde mental: também crescem os casos de doenças graves como leptospirose, tétano, hepatite A e febre tifoide. E a água empoçada contribui com a proliferação do Aedes aegypti e do Aedes albopictus, mosquitos vetores da dengue, da zika e da chikungunya. São danos de longo prazo, difíceis de serem contabilizados, que só conhece a real extensão quem sofre na pele.

Violações contra a natureza também afrontam os direitos humanos. Ainda deixando de lado os efeitos das mudanças climáticas, a ONU lançou no último dia 15 um relatório que aponta que a poluição por plástico, lixo eletrônico e agrotóxicos – não nos esqueçamos que a Câmara acaba de aprovar o PL do Veneno – é a causa de mais de 9 milhões de mortes prematuras por ano. Ou seja, mais que a Covid-19, que matou cerca de 6 milhões de pessoas desde o início da pandemia. “As abordagens atuais para gerenciar os riscos representados pela poluição e substâncias tóxicas estão claramente fracassando, resultando em violações generalizadas do direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável”, diz o relator especial da ONU David Boyd, autor do estudo.

Falando no novo coronavírus, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adverte: o lixo gerado pela doença também está fazendo mal à natureza. Só em 2020, o número de máscaras descartadas aumentou 9.000%. Como abrir mãos delas, neste momento, está fora de questão, mais uma vez fizemos da Terra um cobertor curto. Como sair de um sufoco sem entrar em outro? A prescrição é simples: parar de maltratar o meio ambiente. Este receituário recebeu o aval de um estudo da Universidade Harvard, recém-publicado na “Science Advances”, que reuniu cientistas de diversas áreas e economistas. De acordo com o texto, reduzir o desmatamento e acabar com o tráfico de animais silvestres poderia evitar um prejuízo de US$ 400 bilhões com o tratamento de doenças.

“Recursos para reduzir desmatamento são um investimento para prevenir futuras epidemias, mas também para mitigar ameaças já existentes, como a malária e doenças respiratórias associadas com a queima de florestas. Fazer esses investimentos em prevenção traz retornos para a saúde humana, para o ambiente e para o desenvolvimento econômico”, afirma a demógrafa brasileira Márcia Castro, professora de Harvard e uma das autoras da pesquisa. Como o desmatamento geralmente é ilegal, temos aí também um caso de polícia.

“A hipótese mais provável para o surgimento do Sars-CoV-2 é a transmissão de coronavírus de morcegos para seres humanos”, lembra Mariana Vale, cientista do Departamento de Ecologia da UFRJ e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade, que também participou do estudo. “Conservar a floresta é equilibrar o clima, proteger a água, manter a biodiversidade, assegurar a produção agrícola e evitar que doenças surjam, pois o desmatamento coloca o ser humano em contato com vírus que, de outra forma, não sairiam da mata”, completa ela. Ou seja: precisamos urgentemente de uma vacina contra a ganância para as pessoas mais resistentes a essa doença, que vitima até quem é imune a ela.

 

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