Quanto vale esta floresta?

Quanto vale esta floresta?

Amazônia e mineração ilegal são como álcool e direção: não combinam. O último exemplo vem de Uiramutã, a 290 quilômetros de Boa Vista, em Roraima. Pontos turísticos conhecidos pela água cor de esmeralda, as cachoeiras Sete Quedas e Urucá apareceram cheias de um líquido marrom em fotos divulgadas pela Folha de São Paulo esta semana. Motivo: a exploração irregular de minérios na região, que fica dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Indiferente a isso, o governador sancionou na segunda-feira uma lei que libera o garimpo nas terras do estado. Por trás da confusão, há uma pergunta que o Brasil ainda não respondeu: vale a pena pôr a floresta em risco em troca de dinheiro?

O incentivo à mineração na Amazônia é uma das obsessões de Bolsonaro mais difíceis de entender. O tema voltou à pauta no último dia 3, quando o presidente da república apresentou a liberação da atividade em terras indígenas como uma de suas prioridades ao deputado federal Arthur Lira, novo presidente do congresso. Para começo de conversa, 86% dos brasileiros são contra a exploração de minérios nestas áreas, segundo o Datafolha. Elaborado pelo Governo Federal para regulamentar a atividade, o projeto de lei 191/20 prevê a permissão para lavra garimpeira em terras indígenas – algo vetado pela Constituição.

Além disso, os próprios indígenas não estão muito interessados no assunto. “A nossa relação com a terra é totalmente diferente, é de preservação da terra e dos recursos naturais”, disse Luiz Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Por sua vez, as mineradoras também não querem explorar estes locais. “Se é complexo e moroso trabalhar numa área sem esse tipo de conflito, imagina dentro de uma área dessas”, explicou o empresário Luiz Maurício Azevedo, empresário e presidente da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM).

Sem o interesse dos indígenas e com as companhias fora do páreo, aventureiros que atuam na mineração sem compromisso com a natureza são os únicos beneficiados pela medida defendida por Bolsonaro.

Mas por que o filme da mineração anda tão queimado? É fácil entender. Você sabia que, para cada quilo de ouro produzido, 1,3 quilo de mercúrio é liberado no meio ambiente? A lista de problemas não para por aí. O cientista americano Philip Fearnside identificou um padrão nas regiões amazônicas que abrigam a atividade. Quando o minério acaba, os trabalhadores viram posseiros e o desmatamento dispara. Só entre 2005 e 2015, mais de 11 mil quilômetros quadrados de floresta foram abaixo por conta disso, segundo estudo publicado na Nature.

As complicações continuam. Lugar com gente precisa de estradas. Elas valorizam as terras às suas margens e são outro motor de destruição da mata. Uma análise do WWF apontou que 75% do desmatamento da Amazônia se deu perto de rodovias e, de acordo com estimativas publicadas na revista PNAS, 2,4 milhões de hectares de floresta poderiam vir abaixo se 12 mil quilômetros de vias previstos para região saíssem do papel.

Toda esta destruição ambiental gera consequências. As árvores mortas e cortadas viram combustível para incêndios. Só no ano passado, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais contou 103.161 casos na Amazônia – um aumento de 16% em relação a 2019. Com as mudanças climáticas, as secas estão mais frequentes, o que potencializa o fogo. A estação seca hoje já é quatro semanas maior do que era no sul e sudeste da Amazônia na década de 1980, segundo o cientista Carlos Nobre.

Este calor todo vai matando a vegetação e, aos poucos, transformando a floresta tropical em savana. Se isso acontecer, não teremos uma mera mudança na paisagem. Doenças hoje restritas à mata podem se tornar mais comuns. Aliás, cerca de 70% dos últimos surtos epidêmicos vividos pela humanidade começaram assim, de acordo com María Neira, diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial da Saúde. Para ela, preservar a floresta não é uma questão de ecologia, mas de saúde pública. “O planeta, nós o estamos destruindo, mas ele vai encontrar uma maneira de sobreviver; os humanos, não”, adverte.

Este processo pode ser freado? A boa notícia é que sim. E nós até sabemos o que fazer. Em um passado recente, medidas como o bloqueio de empréstimos de bancos públicos a empresas com multas pendentes em órgãos ambientais já surtiram efeito e ajudaram na preservação da floresta. Além disso, ideias como a bioeconomia podem ajudar o garimpeiro a trocar o papel de inimigo do meio ambiente por conta da falta de oportunidades pelo de amigo da natureza. Um hectare de soja rende, em média, R$ 604 por ano – contra R$ 12,4 mil de uma área do mesmo tamanho dedicada ao cultivo de espécies nativas, como o açaí e a castanha do pará. Detalhe: é dinheiro que vem sem que nenhuma árvore se vá.

Divulgada nesta semana, uma pesquisa do Ibope indicou que 77% dos brasileiros consideram preservar a meio ambiente é o mais importante, ainda que isso signifique menor crescimento econômico e geração de empregos. Nós estamos com a faca e o queijo na mão. Salvar a floresta é o interesse de maioria, o melhor para nosso futuro e, de quebra, o que rende mais dinheiro.

Em nome de que fazer o contrário?

#Amazônia #Mineração #Garimpo #MeioAmbiente #Economia #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

Saiba mais:

Folha – Incentivado pelo senador da cueca, garimpo ilegal emporcalha cachoeiras em terra indígena

Jornal Nacional – Governador de Roraima libera garimpo no estado e com uso de mercúrio

O eco – Mineração em Terras Indígenas, regularização fundiária e mais, entenda as prioridades de Bolsonaro para 2021

Folha – Maioria dos brasileiros rejeita abrir mineração em terras indígenas

Valor – Mineradoras descartam explorar áreas indígenas

National Geographic – Imagens aéreas mostram o impacto da mineração na Amazônia

Amazonia Real – O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 8 – Lavagem de dinheiro, exploração madeireira e mineração

O eco – Em 10 anos, mineração causou 9% de desmatamento na Amazônia

Nature – Mining drives extensive deforestation in the Brazilian Amazon

WWF – Maior parte do desmatamento da região está concentrado nas rodovias

Mongabay – Projetos de estradas na Amazônia podem desmatar 2,4 milhões de hectares nos próximos 20 anos

Inpe – Queimadas

Valor – “Savanização da Amazônia já está ocorrendo”, diz Nobre

El País – Diretora de Meio Ambiente da OMS: “70% dos últimos surtos epidêmicos começaram com o desmatamento”

Amazônia Real – O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 6 – Commodities e governança

Revista Globo Rural – Açaí, cacau e castanha são mais rentáveis que pecuária e soja na Amazônia, diz Carlos Nobre

Ibope/ITS – Percepção climática

Cordão de isolamento

Cordão de isolamento

Puseram um cordão de isolamento em torno do Brasil. A causa principal não foi a Covid-19, mas outro mal que ora aflige o país: a falta de credibilidade. É uma espécie de isolamento térmico; nos deram um gelo nas discussões sobre o clima. O país, que antes ocupava a cabeceira da mesa na Cúpula da Ambição Climática, não teve direito a nenhum dos 80 assentos disponíveis este ano. O evento serve para traçar metas e objetivos que serão negociados na próxima Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU (COP-26) – a ser realizada na Escócia somente no fim do ano que vem, devido à pandemia. Se antes o Brasil dava as cartas, agora não somos mais convidados para definir as regras do jogo. Perdemos este privilégio. E o pior: a troco de nada. Há uma contradição interessante em curso. A sensação é parecida com a daquela pessoa que chega mega entusiasmada a uma festa, mas com quem ninguém quer papo. É triste, mas é verdade: o Brasil se tornou um espalha-bolinho global.

O Acordo de Paris está fazendo cinco anos e a pandemia deixou claro que os países não só precisam cumprir o acertado, como reavaliar suas metas. Aqueles que entenderam o recado se apressaram em agir. Joe Biden, presidente eleito dos EUA, já adiantou que seu país voltará ao tratado e que apresentará ao Congresso um plano de US$ 2 trilhões para combater as mudanças climáticas. China, Coreia do Sul e Japão anunciaram que vão zerar suas emissões de carbono até 2050; já a União Europeia revisou sua meta até 2030 e aumentou a redução de 40% para 55%, em relação aos níveis de 1990; brigado com o bloco, até o Reino Unido deu sua contribuição e aumentou de 40% para 68% a fatia de poluição a ser reduzida até 2030, na comparação com 30 anos atrás. Juntos, esses países respondem por 2/3 das emissões globais.

Você deve estar se perguntando o que o Brasil fez em relação a isso, não é? Nosso país é o sexto maior emissor (3,2% do total), sendo que o desmatamento responde por 44% do CO₂ que despejamos na atmosfera. Em 2020, 11.088 km² de floresta foram abaixo. Isso dá quase três vezes mais que a meta de 3.925 km², estabelecida para este ano pela Política Nacional de Mudança do Clima, em 2009. A conta é simples. Numa prova em que precisávamos ter nota 10, tiramos menos que 5. E o pior é que, ao que tudo indica, nosso governo é aquele tipo de aluno que faz de tudo para tentar esconder a nota dos pais (no caso, somos todos nós, brasileiros).

No último dia 8, o Ministério do Meio Ambiente apresentou as novas metas climáticas do país no âmbito do Acordo de Paris. “Novas” é forma de dizer. O texto manteve o compromisso brasileiro de reduzir em 43% as emissões de carbono até 2030, em comparação aos números de 2015. Por si só, o fato já representaria um descompasso. É como se o mundo todo estivesse dobrando sua contribuição em uma vaquinha e o Brasil continuasse pagando o mesmo. Não tem jeito: sempre pega mal. Mas uma pegadinha mostra que o vexame foi ainda maior.

Quando o acordo foi firmado, em 2015, a estimativa de emissões de poluentes pelo país era de 2,1 bilhões de toneladas. Posteriormente, estudos mais apurados indicaram que a sujeira liberada tinha sido maior, na casa de cerca de 3 bilhões de toneladas. Adivinha em que indicadores se baseiam as novas metas de redução do governo? No maior, é claro. Foi o jeito que o Brasil arranjou de poder poluir mais dizendo que ia poluir o mesmo. Ficou parecendo uma daquelas promoções em que os produtos saem pela metade do dobro do preço. Isso para não falar em outras jogadas, como pedir US$ 10 bilhões por ano a outros países na forma de incentivo para cumprir o combinado e a promessa de descarbonizar a economia só em 2060 – ou seja, dez anos depois da China. Tem cabimento?

Se uma coisa este ano de 2020 nos provou é que, juntos somos capazes de driblar até as situações mais complicadas. Está aí a vacina contra Covid-19, que teve o desenvolvimento mais rápido da história graças a um esforço de cientistas do mundo todo e não nos deixa mentir. A máxima vale inclusive em relação à possibilidade de harmonizar preservação da natureza e crescimento econômico – algo que, na verdade, nem é tão difícil assim. Em 2019, as emissões na União Europeia diminuíram em 3,7% – o nível mais baixo dos últimos 30 anos – enquanto o PIB cresceu 1,5%.

Há milênios, os indígenas já perceberam que cuidar do meio ambiente é um belíssimo investimento. Falta agora que o restante de nós se dê conta disso. Quando o desmatamento na Amazônia despencou em 82%, entre 2004 e 2014, a pobreza extrema caiu 63% no país. Coincidência? Parece que não. Só não vê quem vive em outro mundo.

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O garimpo ilegal existe, o que não existe é governo

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Alessandra Korap, liderança Munduruku

O governo nega o desmatamento na Amazônia, o fogo no Pantanal, a crise econômica, as mudanças climáticas, o racismo estrutural e até mesmo a gravidade da pandemia do novo coronavírus. Esse negacionismo revela uma grande verdade: o que não existe no Brasil é governo. O país se move a iniciativas da sociedade. Só sabemos que mais de 170 mil brasileiros perderam a vida para a Covid-19 graças ao consórcio de veículos de imprensa; e quantos dos nossos se foram, porque a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) faz uma contagem independente, que se tornou uma referência reconhecida. Nas periferias das grades cidades são os movimentos sociais que fazem o trabalho do poder público. Enquanto isso, o Ministério da Saúde deixa estragar num armazém qualquer quase sete milhões de testes, que poderiam ter salvado milhares de pessoas.

Até 30 de novembro, 15 Munduruku haviam morrido de Covid-19. Não foram muitos mais porque o convívio forçado de mais de 500 anos com organismos invasores nos fez criar nossos próprios protocolos. Mas estamos indefesos contra outro mal, ainda mais perigoso e duradouro: a contaminação por mercúrio, causada pelo garimpo ilegal. Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o WWF-Brasil revelou que todos nós, Munduruku que vivemos às margens do Rio Tapajós, carregamos o metal no sangue. Esta tragédia começa bem antes deste governo, é consequência de 70 anos de atividade ilegal, é verdade; mas sua negação em enfrentar o problema – ou ao menos reconhecer sua existência – serve de incentivo aos que invadem os territórios onde vivemos. Quando quebra um termômetro, o mercúrio se espalha. Funciona assim no momento em que o Executivo acena para a regulamentação da mineração em terras indígenas.

O metal está no peixe que comemos, na água que consumimos, e afeta principalmente os rins, o fígado, o aparelho digestivo e o sistema nervoso central. Ainda que nos afastássemos do Tapajós, ele continuaria se espalhando por gerações, pois também contamina o leite materno. Uma dor que passa de mãe para filha. Foram detectados em amostras de cabelo níveis até quatro vezes maiores que os permitidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive em crianças pequenas. Na Aldeia Sawré Aboy, nove em cada dez pessoas avaliadas apresentaram níveis de mercúrio acima do considerado seguro.

O Tapajós tem quase dois mil quilômetros de comprimento. Nasce no Mato Grosso, da junção de dois outros grandes rios, o Juruena e o Teles Pires, e atravessa o Pará até desembocar no Amazonas. Em sua foz fica Santarém, a segunda maior cidade paraense. Portanto, o problema não é só nosso. E também não se resume ao Tapajós: o drama dos Yanomâmi é conhecido mundialmente. Em 2015, cansamos de esperar o governo cumprisse o seu dever e nós mesmos demarcamos, usando dados da Funai, os limites da Terra Indígena Sawré Muybu, onde foi realizada a pesquisa da Fiocruz e da WWR-Brasil. Para enfrentar o garimpo ilegal, precisamos de toda ajuda possível. Se o governo se finge de morto, a sociedade civil precisa se mostrar mais viva do que nunca.

#GarimpoIlegal #Desmatamento #Amazônia #PovosIndígenas #Mercúrio #Munduruku #Yanomâmi #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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Mudar é preciso

Mudar é preciso

O novo coronavírus nos trouxe muita dor e duras lições. Escancarou a realidade e indicou uma luz no fim do túnel: ainda que por um instante, quando fomos obrigados a nos recolher, o ar que respiramos se tornou mais puro, rios e mares ficaram mais limpos, os animais selvagens se sentiram mais livres. Até a Terra ficou mais silenciosa. Logo, duas coisas ficaram claras para todo mundo: que tínhamos responsabilidade direta sobre a enrascada em que nos metemos, mas que também ainda havia tempo de sair dela. Quer dizer, para quase todo mundo. Depois de três meses consecutivos de queda no desmatamento da Amazônia, ele voltou a disparar em outubro. E, diferentemente de previsões iniciais, foi ainda maior em 2020 que em 2019. O Brasil está girando ao contrário do resto do planeta?

Mais de 11 mil km² de floresta foram abaixo entre agosto de 2019 e julho deste ano, 9,5% maior que no mesmo período anterior, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). É a maior devastação desde 2008, quando 12.911 km² de verde foram perdidos. Aquele ano foi um ponto fora da curva do período em que o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) reduziu em 83% – entre 2004 e 2012. O vice-presidente Hamilton Mourão, com o conhecimento de causa de quem ora preside o Conselho Nacional da Amazônia, reconheceu: “Podia ser pior ainda”. Sua expectativa era a de um aumento de 20%, o que daria 12.154,8 km² de floresta a menos; ou seja, um número ainda mais próximo da área desmatada em 2008. A diferença é que naquela época houve reação e ele foi reduzido para 7.464 km² em 2009, e continuou caindo nos anos seguintes. E o que há de concreto para o próximo ano é um orçamento ainda mais apertado. As previsões de Mourão para 2020 podem se concretizar em 2021.

O desmatamento corresponde a 44% de nossas emissões de CO₂. Enquanto outros países precisam se virar nos 30 para cumprir suas metas ambientais, o Brasil poderia se dar ao luxo de ficar de boas, bastava não derrubar árvores desnecessariamente. Mas o governo tem agido ao contrário quando deixa ruir a política ambiental do país – afrouxando a regulamentação, enfraquecendo os órgãos de fiscalização, tratando criminosos com excessiva compreensão, deixando a boiada passar. Enquanto aumentou a destruição da floresta, as multas do Ibama caíram 42%. O ministro do Meio Ambiente parece encarar os cortes no orçamento de sua pasta como uma bênção.

O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, já anunciou que o país vai retomar o caminho do desenvolvimento sustentável. Na última reunião do G20, a União Europeia se comprometeu em promover uma reforma sustentável na Organização Mundial do Comércio (OMC). “Estamos trabalhando para fazer respeitar o Acordo de Paris como parte essencial de todos os futuros acordos comerciais”, disse o belga Charles Michel, presidente do Conselho Europeu. Em 2009, o Brasil se comprometeu em reduzir o desmatamento na Amazônia Legal a 3 mil km² em 2020. Entregamos quatro vezes a mais do que isso. Já foi provado que mudar é possível. O governo brasileiro tem de se convencer de que é preciso.

#Desmatamento #MeioAmbiente #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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Boi-bombeiro e Boitatá

Boi-bombeiro e Boitatá

O conto varia de um lugar para o outro, mas a essência da história é a mesma: um espírito incandescente toma conta das matas e espanta aqueles que nelas querem atear fogo ou causar destruição. O Boitatá muda de forma, mas a mais comum é a de uma grande cobra feita de chamas com brilho azulado. Ele persegue aqueles que fazem mal à natureza, cegando-lhes. O primeiro registro escrito da lenda é do jesuíta José de Anchieta, em uma carta assinada por ele em 1560. O folclore se relaciona a um fenômeno natural explicado pela ciência: fogo-fátuo é uma chama azulada e efêmera produzida pela combustão espontânea de gás metano em pântanos ou lugares úmidos onde há muita concentração de matéria orgânica em decomposição.

Praticamente cinco séculos depois de padre Anchieta está difícil para o Boitatá vencer a concorrência. Hoje outros mitos tomam conta do Brasil. Há quem acredite que a Amazônia não está sendo desmatada e que o Pantanal não está em chamas. Numa cegueira seletiva, fingem não ver o encolhimento do Cerrado ou o desequilíbrio climático que afeta todo o planeta. Falando nele, há os que dizem ser plano. Nega-se o racismo estrutural enraizado em nossa história. E, diante das imagens de covas comunitárias, há até mesmo os que relativizam a gravidade da pandemia de Covid-19. É tanto negacionismo que a gente chega a questionar a própria existência.

Em Brasília, as dúvidas se aprofundam. Ainda mais quando o assunto é meio ambiente. Existe uma política pública para cuidar da natureza (ou seria lenda)? Em 2019, o Ministério do Meio Ambiente tinha à disposição mais de R$ 10 milhões para combate às mudanças climáticas, mas só 13% foram usados; e dos R$ 3 milhões que iriam para a conservação e o uso sustentável de nossa biodiversidade, apenas 14% se converteram em ações concretas. Os dados são do relatório anual da Controladoria-Geral da União.

O ano virou e as proporções se tornaram ainda menores, segundo aponta o Observatório do Clima, em levantamento feito a partir dos dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento. Nos primeiros oito meses de 2020, o ministério tinha à disposição cerca de R$ 26,5 milhões para ações de prevenção, mas só usou 0,4% do dinheiro disponível. Do montante de R$ 1,388 milhão que deveria ser usado para cuidar de nossa biodiversidade, 96,4% permaneceram intocados; e dos mais de R$ 6 milhões que deveriam ser utilizados em fomento a pesquisas relacionadas às mudanças climáticas, nem um único tostão foi investido. O dinheiro está lá, mas não se converte em ações práticas. Seria este o orçamento de Schrödinger?

A justificativa oficial foi que “o ministério alterou seu planejamento estratégico, sua estrutura e suas prioridades orçamentárias, com prioridade para recursos destinados aos programas de Qualidade Ambiental Urbana: resíduos sólidos, saneamento e qualidade do ar”. Se buscamos qualidade ambiental urbana acima de tudo, porque só 6% dos R$ 6,5 milhões disponíveis para a área foram investidos?
Outro que parece nunca ter existido é o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). Mas não é lenda. No início deste século, nossa voracidade em relação ao verde tinha chegado a níveis pantagruélicos. Em 2004, inacreditáveis 27.772 km² de floresta foram abaixo. O plano se concretizou e o Brasil conseguiu reduzir em 83% a devastação na região entre aquele ano e 2012. Isso só foi possível porque houve um esforço em conjunto da sociedade brasileira, agronegócio incluído.

Já se sabia naquela época e repetimos hoje: preservar a natureza não é gasto, é investimento. Só em outubro de 2020 foram destruídos 7.899 km² de Amazônia, 50% a mais que no mesmo mês do ano passado, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Pagaremos muito mais caro depois.

Se não há investimento, então o que se propõe como solução prática para controlar o fogo? Uma das propostas é aumentar o espaço de criação de gado nos limites das reservas naturais para “reduzir o acúmulo de massa orgânica”. É claro! É só transformar a floresta em pasto que não tem mais incêndio, dizem eles. Não é assim que funciona? Respondemos: Não, não é.

Vejamos o Pantanal como exemplo. Há dois pontos que mostram a falácia. O primeiro é que o rebanho bovino no Pantanal cresceu nos últimos anos. Ou seja, se o boi é bombeiro, ele não está fazendo bem o seu trabalho, porque o número de focos de incêndio também aumentou. O segundo ponto é a conclusão da perícia na Reserva Natural do Sesc Pantanal: a causa do incêndio foi dada como queima intencional de vegetação desmatada para criação de área de pasto para gado em uma fazenda na região que entrou para a área da reserva. Mais uma vez, a ciência derruba a lenda.

O boi-bombeiro o boitatá às avessas. Não afasta os homens que querem destruir a natureza, antes pelo contrário, ele mesmo traz consigo o desmatamento. Aonde chegaremos se levarmos mitos ao pé da letra?

#Pantanal #Amazônia #Desmatamento #Queimadas #MeioAmbiente #MudançasClimáticas #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

Saiba mais:
G1 – Por que a teoria do ‘boi bombeiro’ no Pantanal, citada pela ministra da Agricultura, é mito

Estadão – Bolsonaro volta a defender o ‘boi-bombeiro’ para apagar fogo do Pantanal

Governo de Mato Grosso – Perícia constata que incêndio em reserva no Pantanal foi provocado por ação humana

O Globo – Governo gastou, em 2019, cerca de 70% a menos com ações de combate ao racismo em relação ao ano anterior

G1 – Ministério deixa de usar maior parte da verba para preservação ambiental, diz CGU

G1 – Ministério do Meio Ambiente não gastou nem 1% da verba para preservação, diz levantamento

Valor Econômico – Política ambiental, o que o orçamento mostra e promete

BBC Brasil – Ibama paralisa combate a incêndios alegando falta de caixa, mas 15% do orçamento não foi usado

El País – Dióxido de carbono na atmosfera baterá novo recorde em 2020 apesar da pandemia

Valor Econômico – UE dirá no G-20 que quer reforma “verde” na OMC

Folha de São Paulo – Brasil trava preparo do acordo de biodiversidade da ONU

G1 – Novo site do Ministério do Meio Ambiente não tem informações sobre áreas protegidas

O Globo – ‘Não esperamos nada de positivo do governo, mas jamais vamos desistir’, diz líder indígena brasileira que recebeu prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos

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