Lavar as mãos com água suja

Lavar as mãos com água suja

Bastou a gente demonstrar um pingo de bom senso para sermos eleitos os novos salvadores da pátria – melhor dizendo, do mundo. Foi só o governo tomar medidas óbvias, como retomar o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), criar um ministério para os povos originários e lhes entregar o comando da Funai para que uns e outros acreditassem que resolveríamos nosso sufoco ambiental sozinhos. Se esqueceram que boa parte dos problemas que enfrentamos na área têm cúmplices fora de nossas fronteiras.

O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) da ONU vem sendo tratado há anos como aquele profeta de rua que caminha carregando um cartaz escrito “O fim do mundo está próximo”; ninguém parece lhe dar bola. A cada ano ele lança um relatório mais apocalíptico que o outro, porque nenhuma ação efetiva é tomada. O deste ano, divulgado no último dia 20, é de arrepiar as sobrancelhas: temos até 2030 para reduzir pela metade as emissões por queima de combustíveis fósseis, ou vamos encarar uma elevação de 3°C na temperatura média global até o fim do século. Tá tranquilo por que até lá já terá desencarnado? Pois lembre-se que esse aumento será gradual, um verão mais sufocante que o outro. 

Com 2ºC a mais na temperatura média do planeta, 99% dos recifes de coral vão ouvir a Marcha Fúnebre de Chopin; chuvas fortes, que costumavam cair uma vez por década, já são 30% mais comuns e, com 3°C de aquecimento, vão desabar até três vezes a cada dez anos. A continuar essa insanidade, as secas serão quatro vezes mais frequentes e as ondas de calor, quase três. Isso sem falar de outros fenômenos climáticos extremos, como a temporada de furacões que varrem o Atlântico Norte. Nostradamus era um otimista perto disso.  

Quando em campanha, o presidente Joe Biden prometeu mundos e fundos. Mas já descumpriu a promessa de proibir “novas licenças de petróleo e gás em terras e águas públicas”: ele acaba de liberar novas explorações no Alasca. Christy Goldfuss, que foi diretora executiva do Conselho de Qualidade Ambiental do governo Obama e hoje é diretora de impacto de políticas da ONG internacional Conselho de Defesa dos Recursos Naturais, calcula que, em 30 anos de concessão, o chamado Projeto Willow deve emitir 239 milhões de toneladas de gases do efeito estufa: “Essa decisão é ruim para o clima, ruim para o meio ambiente e para as comunidades da população nativa do Alasca, que eram contrárias a isso, e sentem que suas vozes não foram ouvidas”.

A boa notícia é que ainda dá para adiar o fim do mundo; mas, para isso, os países mais ricos e que mais contribuem com as mudanças climáticas precisam realmente fazer a sua parte. E isso vai exigir meter a mão no bolso. Tirar pessoas de zonas de risco é uma prioridade. “Temos que reduzir as emissões em 50% até 2030 e 100% até 2050, e isso é possível com a tecnologia que a gente tem hoje”, afirma o físico Paulo Artaxo, professor da USP e membro do IPCC, entre dezenas de outras credenciais. “Há cerca de 3,5 bilhões de pessoas que vivem em condições extremamente vulneráreis, como vimos recentemente em São Sebastião. Essas populações têm 15 vezes mais chances de morrerem devido a eventos climáticos extremos”, conclui.

Ninguém tem tanto conhecimento como os povos originários para preservar a Amazônia; também não há dúvidas sobre a importância da maior floresta tropical do planeta para a regulação do clima global. Logo, protegê-los é outra prioridade. Todos se sensibilizaram com as condições desumanas a que os Yanomami vinham sendo submetidos; mas muitos dos que emitiram notas de repúdio são parte do problema. 

Segundo um relatório do Instituto Escolhas, divulgado no mês passado, metade do ouro comercializado pelo Brasil entre 2015 e 2020 foi extraído de terras indígenas. Os principais compradores são empresas do Canadá (42%), Suíça (20%) e Reino Unido (11%). “Esse ouro chega aqui na Suíça cheio de sangue. O Estado brasileiro é culpado pelas mortes que ocorrem em nossos territórios, e vocês que compram também são”, desabafou Maria Leusa Munduruku, presidente da Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũn, em visita ao país. 

No dia 2 de fevereiro, a Comissão Europeia aprovou novas regras que diminuem os níveis permitidos de resíduos de dois agrotóxicos em alimentos: a clotianidina e o tiametoxam, substâncias mortais para as abelhas e usadas pelo Brasil, um dos principais exportadores de comida para a Europa. E o fizeram como se eles não tivessem nada a ver com isso. Essas substâncias são proibidas naquele continente desde 2018, mas os europeus continuam a fabricá-los e exportá-los. O “Atlas dos Pesticidas 2022”, produzido pela Fundação Heinrich Böll, registra que o uso de pesticidas no mundo aumentou 80% desde 1990. Pode ser coincidência, mas daquele ano até 2019, houve 75% a mais de mortes causadas pelo câncer.

Os maiores fabricantes de pesticidas do planeta são Syngenta (Suíça/China), Bayer e BASF (Alemanha). O Brasil compra a maior parte de seu veneno deles. “Em 2019 estiveram entre eles pelo menos 14 ingredientes ativos altamente perigosos que não são mais permitidos na União Europeia”, diz o texto. Foram proibidos por causarem efeitos neurológicos e prejudicarem a função sexual e a fertilidade, mas ainda são livremente comercializados no Brasil. Segundo o Atlas, o fato de a legislação brasileira ser excessivamente tolerante é a principal causa desse absurdo. OK, a gente assume a nossa parcela de culpa. Mas não seria mais fácil proibir a fabricação dessas substâncias? Assim, o problema seria resolvido de vez.

Enquanto o mundo não entra nessa luta pra valer, o mínimo que um país candidato a retomar a liderança global no enfrentamento à crise do clima precisa fazer é o dever de casa. A Frente Parlamentar Agropecuária – nome da fantasia da bancada ruralista – mantém seu apetite insaciável e conta com mais de 300 representantes no Congresso Federal. Eles já deixaram claro que vão defender bandeiras como o PL do Veneno e o PL 191, que abre terras indígenas para o agronegócio e a mineração, e barrar iniciativas como Projeto de Lei 2159/22, de Joênia Wapichana, que cria regras para rastrear a comercialização e o transporte de ouro no país. 

A luta contra o desmatamento e o uso abusivo de agrotóxicos vai ser dura. Da mesma forma, combater o garimpo ilegal se torna uma tarefa ainda mais árdua quando a freguesia é grande. Não temos como vencer essa batalha sozinhos, e uma forcinha do resto do mundo cairia bem. Nosso futuro depende de a própria Humanidade perceber que, além da união dos povos em torno de metas sustentáveis e belos discursos, precisamos de ação efetiva sem pensar nos ganhos, mas sim nas perdas e danos. Afinal, o planeta é mais importante do que qualquer empresa ou país. É desse tipo de cumplicidade que precisamos.

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A grande ficha caiu e foi dentro d’água

A grande ficha caiu e foi dentro d’água

O Mar é o ventre da Terra e se mantém não só gerando vida, mas também sustentando as condições para que continuemos existindo no planeta – desde produzir mais da metade do oxigênio que respiramos até regular o clima. Embora nossos ancestrais, organismos ainda muito primitivos, tenham se instalado em terra firme há bilhões de anos, continuamos umbilicalmente ligados a ele. 

Para franceses e romenos, mar é uma palavra feminina; nada mais adequado para quem, mesmo exausta, ainda é esta mãe para todos. Um deles, o Homem, parece ter esquecido disso há séculos e é o principal responsável por essa fadiga. De tanto a natureza nos alertar nossa responsabilidade, parece que, dessa vez, nós finalmente entendemos o recado: o filho ingrato tomou uma importante decisão para proteger àquela a quem tudo deve.

Com a adesão de mais de uma centena de países, foi assinada, no último dia 4, na sede da ONU, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. É o acordo ambiental mais radical – no bom sentido – que se tem notícia: estabelece o aumento, até 2030, de 1,2% para 30% de áreas de proteção contra a mineração, a pesca industrial e o tráfego de embarcações. Finalmente a ficha caiu e foi dentro d’água.

O primeiro encontro a discutir o assunto aconteceu na Jamaica, em 1982, mas só começou a vigorar a partir de 1994. O alto-mar, área do Oceano que equivale a quase metade da superfície da Terra, é a região que fica a mais de 370 km da costa de cada país; é uma terra (sic) de ninguém, onde quase tudo é permitido – os nordestinos vão lembrar do vazamento de petróleo de um navio grego que contaminou seu litoral em 2019 e 2020.

De acordo com a União Internacional para Conservação da Natureza, 10% das espécies marinhas correm risco de extinção. É preciso proteger essa biodiversidade; por causa disso, uma de suas principais metas é não atrapalhar as migrações anuais de cetáceos, diversas espécies de peixes e tartarugas marinhas. É bom lembrar que baleias são grandes depósitos vivos de carbono.

O Greenpeace arrecadou mais de 5.5 milhões de assinaturas em todo o mundo em apoio ao tratado. “O relógio ainda está correndo para entregarmos a meta 30×30. Nos resta meia década e não podemos ser complacentes”, disse a finlandesa Laura Meller, Conselheira Polar Nórdica da ONG. Do Mar viemos e ao Mar parte do planeta retornará – já que a subida do nível do Oceano já é fato consumado, devido às mudanças climáticas. 

O acordo prevê, ainda, a criação de um novo órgão para administrar a preservação da vida no Oceano e estabelece regras de avaliação do impacto ambiental de atividades comerciais marítimas, como pesca e turismo. Que noruegueses, islandeses e japoneses, povos reconhecidamente disciplinados e avançados em outras áreas, se convençam que caçar baleias e golfinhos é coisa de bárbaro.

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, porém, não contempla um problemão ao qual a gente não vem dando a devida atenção: a poluição por plástico. Na semana passada, a revista de divulgação científica “PLOS ONE” publicou um estudo internacional que calcula que há mais de 170 trilhões de partículas do material flutuando no Mar – o equivalente a 2 milhões de toneladas. 

Em 2021, um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), lançado às vésperas da COP26, já alertava que, caso não sejam tomadas medidas drásticas e urgentes para reduzir a produção de plástico, esse número deve aumentar cerca de 2,6 vezes até 2040. Você pode até impedir a entrada de navios em áreas protegidas do alto-mar, mas não há como barrar a passagem desses fragmentos microscópicos que prejudicam a fauna e a flora marinha, e aumentam a temperatura e a acidez das águas oceânicas. 

Com a disposição demonstrada pelo atual governo em retomar o caminho da preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável – com volta de Marina Silva, nome respeitado no mundo inteiro, ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima – temos uma excelente oportunidade para recuperar o posto de farol ambiental, que suamos tanto para conquistar. Isso em terra firme, pois em se tratando do Oceano, ainda lembramos uma nau sem rumo. 

A vitória da Marinha na batalha naval contra o Ibama, no recente episódio do afundamento do porta-aviões São Paulo, que pode causar sérios danos ao ventre da Terra – incluindo a liberação de mais microplásticos, metais pesados e de poluentes que podem prejudicar a Camada de Ozônio –, foi um mau sinal. Se temos a ambição de ser os timoneiros dessa jornada por um Mar mais limpo e saudável, precisamos fazer uma correção de rota.

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Nada será como antes: Mulheres que revolucionam e lideram um novo Brasil

Nada será como antes: Mulheres que revolucionam e lideram um novo Brasil

Um novo Brasil se desenha para o futuro. O desafio de trançar os fios que conduzem a democracia passa, necessariamente, pelas mãos que tecem a vida: dos espaços de decisão ao chão do território, no seio da comunidade e nas mais diversas instâncias de poder, há uma mulher fazendo revolução. E elas são a maioria. Se deixamos para trás quatro anos de desgoverno é porque 53% do eleitorado brasileiro é feminino.   

O governo Lula inicia com a intenção e a proposta de corrigir os erros desse passado. Grandes e ilustres lideranças femininas revolucionam em postos de comando importantes no Brasil oficial. As ministras Marina Silva, Sônia Guajajara e Anielle Franco, para citar alguns exemplos, assumem papéis históricos e desafiadores. São olhares que se mostram transversais, construtivos e múltiplos, seja pela história de vida, seja pela trajetória de luta.   

Marina retorna mais forte, com sua proposta de gestão ambiental que perpassa vários recortes e que vem consolidando o conceito de transversalidade na política. ‘Soninha’ é revolucionária pela sua própria existência e competência de unificar a diversidade do movimento como liderança indígena que chega ao inédito Ministério dos Povos Indígenas – e, não por acaso, faz história. Anielle, eleita uma das 12 mulheres do ano em 2023, carrega bem mais que a semelhança física com a irmã, prestando uma homenagem ancestral, preta e feminina a Marielle Franco em meio à luta por Justiça, ao mesmo tempo em que, habilidosamente, conduz a revolução pela igualdade racial no Brasil.

A liderança de mulheres em áreas cruciais para o país é a maior demonstração do significado histórico disso na democracia brasileira. São muitos ineditismos protagonizados por elas: Nísia Trindade é a primeira mulher ministra da Saúde; Joênia Wapichana é a primeira presidente mulher e indígena da Funai e foi a primeira indígena eleita para a Câmara Federal; Célia Xakriabá tornou-se a parlamentar indígena mais jovem do planeta, e tudo isso em um Legislativo onde as mulheres representam 14,81% do quadro. 

Todas transbordam traços de vida, trazem consigo as marcas que as forjaram mulheres de si. A revolução que chega aos espaços de pode é fruto de luta das mulheres que se movem no “Brasil profundo”. Em diferentes biomas, conectam a beleza de raças, culturas, conhecimentos e crenças de um País diverso. 

Olhar para o futuro é saber que tem muito mais por vir; é entender que há um pedaço da história sendo escrito agora por vidas femininas. Por isso, compartilhamos cinco mulheres que vêm inspirando revoluções inevitáveis Brasil afora:  

Kátia Penha

Filha do quilombo Divino Espírito Santo (ES), de pais agricultores, tornou-se ativista ambiental quilombola e agricultora familiar. Atua como gestora ambiental, coordenadora nacional do Diagnóstico Macro Situacional da Agricultura Familiar Quilombola da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e é graduanda em Ciência Socias em educação do campo pela Universidade Federal do Espírito Santos (UFES). 

“Eu ando, eu piso na terra, eu tenho que sentir a terra para me energizar e continuar. Mas eu sou coordenadora nacional da CONAQ e hoje estou tocando a pauta ambiental. Respiro a pauta ambiental desde pequena. Acho que eu nasci nisso. Eu já tenho vários, poucos e bons inimigos aqui na minha cidade pela questão ambiental.”  

Juma Xipaia

Juma Xipaia nasceu em 1991 na aldeia Tukamã, à beira do Rio Iriri, em Altamira (PA), terra do povo Xipaya. Ainda antes dos 18 anos, juntou-se ao movimento Xingu Forever, que lutava pelos direitos dos indígenas impactados pela usina de Belo Monte. Aos 24 anos, ela se tornou a primeira cacica da região do Médio Xingu e, desde então vem enfrentando ameaças de morte e as consequências socioambientais da construção da hidrelétrica. Hoje, é secretária de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). 

“Na verdade, eu nunca quis ser cacica, não foi algo pelo que busquei. Mas conforme vi as necessidades, as coisas erradas, fui tendo a coragem e a força, muito espiritual, e vendo os exemplos: a minha mãe, minhas tias, são minhas maiores referências. As mulheres do meu povo foram e são os meus maiores exemplos de luta, coragem, firmeza e determinação. Cresci vendo todas as dificuldades que meu povo e as mulheres passavam, o processo de violência, de negação de direitos. E, também, a gente trabalhava de igual para igual com os homens. Cresci assim.”

Aldira Akai Munduruku

Professora de língua materna da comunidade munduruku Daje Kapap Eypi, também conhecida como Sawré Muybu, onde nasceu, passou boa parte da infância no município de Jacareacanga (PA) – que tem no garimpo ilegal sua principal atividade econômica – de onde guarda a experiência de anos difíceis, marcados pela fome. Mãe de quatro filhos, todos nascidos em Sawré Muybu, teve contato com uma câmera fotográfica profissional pela primeira vez em 2014, durante a primeira fase de autodemarcação do território. Assim, passou a integrar o coletivo audiovisual Daje Kepap Eypi, hoje formado por ela e mais duas mulheres munduruku, que atua denunciando a invasão dos territórios por madeireiros e garimpeiros. Fluente em português, pretende cursar graduação em pedagogia. 

“É perigoso, mas eu não tenho medo. Quando a gente entra para a luta tem que enfrentar tudo que vai acontecer com a gente. Isso me fortalece. Eu pensei muito antes de entrar nessa luta, pensando que muita coisa poderia acontecer na minha vida, com meus filhos, mas enfrentei esse medo. Hoje não tenho medo de falar.”

Selma Dealdina

Secretária-executiva da Conaq, é quilombola do Território do Sapê do Norte (ES), assistente social e a organizadora do livro “Mulheres Quilombolas – Territórios de existências negras femininas”, lançado em outubro de 2020, que potencializa as vozes de mulheres quilombolas.  Em 2021, foi finalista do Prêmio Inspiradoras, uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon para dar visibilidade a mulheres que se destacam na luta pelos direitos das brasileiras.

“As lutas das mulheres quilombolas entrelaçam as lutas de resistência dos quilombos no Brasil. Historicamente seguimos os passos que vêm de longe com Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela, Maria Aranha, Zacimba Gaba e tantas outras mulheres importantes para a continuidade da luta nos dias atuais. É espelhando nessas mulheres e em tantas outras anônimas do país que nós, mulheres quilombolas, lutamos contra a invisibilidade da nossa luta contra o racismo, machismo e contra todo tipo de discriminação e violência desta sociedade injusta, racista e desigual.”

Andréa Nazareno

Liderança quilombola, agricultora e mãe de quatro filhos, sendo um PCD, Andreia Nazareno dos Santos, 42, é sinônimo de luta e protagonismo feminino preto no Nordeste brasileiro. Do Quilombo de Capoeiras, na zona rural de Macaíba, a maior comunidade quilombola do Rio Grande do Norte, com cerca de 200 famílias, Andreia percebeu desde cedo que precisava persistir contra um sistema bem estruturado de desigualdade de gênero e raça.  

“As mulheres não cuidam só do movimento, não cuidam só do território. Mulheres são mães, esposas, pai e mãe ao mesmo tempo. Muitas das coisas que acontecem nas comunidades passam por elas. A grande maioria das lideranças das comunidades quilombolas são mulheres. Elas que vão para frente, brigam, choram, que estão ali na luta pela melhoria do território e da comunidade”.

Estas mulheres revolucionam por defenderem, sem medo, seus territórios em diferentes biomas, diante das absurdas violências cometidas por um modelo econômico predatório e por uma estrutura sociopolítica ainda potencialmente machista. Mulheres de diferentes raças e etnias que confrontam o racismo. Mulheres de diferentes gerações que se conectam em luta e trajetória, independentemente da idade. Mulheres que revolucionam por lutar por igualdade e justiça social na saúde, na educação, na geração de renda e na cultura.  

Durante a pandemia de Covid-19, as mulheres mostraram porque faz diferença a perspectiva do olhar de gênero: cidades administradas por elas alcançaram um número de óbitos até 43% menor em algumas cidades. 

O presente nos mostra que nada será como antes porque as sementes carregadas nas tranças de mulheres pretas escravizadas alimentaram a ancestralidade histórica que hoje toma gerações; porque cada traço de urucum marcado na pele indígena materializou o reconhecimento de que somos fruto de uma Mãe Terra generosa. Essa consciência vem ‘reflorestando corações e mentes’, como costuma lembrar Sônia Guajajara. 

Nós lembramos que resistência é substantivo feminino. Mais do que nunca, mulheres no comando. Mais do nunca, mulheres na revolução!

Protagonismo político do movimento indígena

Protagonismo político do movimento indígena

Márcio Santilli, sócio fundador do ISA, presidente da Funai (1995-1996) e deputado federal pelo MDB (1983-1986)

Juliana de Paula Batista, mestre em Direito pela UFSC e advogada do ISA

O 3º mandato do presidente Lula começa com uma grande novidade: o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Sônia Bone Guajajara foi escolhida para comandar a pasta e Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita deputada federal, para assumir a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que estará vinculada ao MPI. Já Weibe Tapeba assumiu a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. Outros indígenas ocuparão mais cargos na administração federal.

Lula governará com 37 ministérios, com espaço para 15 partidos e vários movimentos sociais. As contradições entre esses vários campos vão se expressar dentro do próprio governo. Com a presença de uma ministra indígena, pela primeira vez, os conflitos entre direitos indígenas e interesses contrários serão tratados de forma direta, sem intermediários, embora com a eventual mediação do Presidente e do núcleo do governo.

Mas também haverá fortes embates com as oposições, não apenas no Congresso, mas também com ruralistas extremistas e bolsonaristas, empresários do garimpo, grileiros de terra e outros atores anti-indígenas. Parte deles envolveu-se no movimento antidemocrático e na depredação das sedes dos poderes em Brasília. As ligações entre quem financiou os atos e deles participou não deixam dúvidas. Os mesmos grupos estão em regiões críticas da Amazônia, onde se concentram os crimes socioambientais e proliferam os clubes de tiro, áreas sob o domínio de grupos golpistas e do crime organizado.

Levará tempo para recuperar órgãos, políticas e orçamentos públicos deteriorados relacionados à agenda socioambiental. Mesmo com vontade política, outros fatores serão determinantes para que ocorram avanços nesse tema. Por exemplo, o presidente Lula já definiu que será retomada a demarcação das Terras Indígenas e há uma lista de 14 áreas cuja oficialização poderá ser concluída nos próximos meses por decretos de homologação. Parte das pendências demarcatórias, porém, está sub judice e sujeita ao ritmo lento da Justiça. 

No Legislativo, tramitam projetos que podem trazer retrocessos aos direitos já conquistados, como no caso da demarcação de Terras Indígenas e a possibilidade de abrir essas áreas para grandes empreendimentos. Parlamentares ruralistas, representantes do “ogronegócio”, têm investido pesado em atacar esses direitos, inclusive relacionando-se com pessoas envolvidas em crimes ambientais e invasores de terras indígenas. No momento, são os maiores responsáveis por radicalizações e ataques à segurança jurídica, como no caso da Terra Indígena Apyterewa (PA), já homologada, mas constantemente invadida. 

Longe de voltar seu olhar para os graves problemas do setor, como o combate ao desmatamento, as cadeias produtivas que ainda utilizam trabalho escravo, o incentivo a novas tecnologias para o aumento da produtividade, parte da bancada ruralista ainda investe seus vultosos recursos em atacar indígenas e queimar ainda mais o filme do país no exterior. 

Ninguém quer investir numa Amazônia cheia de ilegalidades e crimes ou ver as Terras Indígenas, as áreas mais ambientalmente conservadas do país, arrasadas pelo garimpo, pela mineração ou convertidas em pasto. Esses territórios não podem ser convertidos em grandes canteiros de obras, sob pena de deixarem de ser o que são. Ainda é cedo para saber se o Legislativo já entendeu o ativo que o país tem na mão. Mas parece que não. 

Em janeiro, a imprensa divulgou as mortes de 570 crianças Yanomami por desnutrição e doenças evitáveis, resultado de uma crise sanitária provocada pela invasão garimpeira e a conivência do antigo governo. Em resposta, Lula foi a Roraima, junto com vários ministros, avaliar a situação e anunciar providências emergenciais para assistir as comunidades afetadas. A questão impactou a opinião pública, dominando o noticiário e as redes sociais. 

No Senado, uma Comissão Externa constituída, em sua maioria, por parlamentares historicamente apoiadores da ilegalidade foi formada com o aval do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ele envia um sinal ruim para a sociedade, que neste momento encontra-se chocada com as barbaridades cometidas contra os Yanomami. Perdeu uma boa oportunidade de mostrar protagonismo na construção de uma agenda que coloque limites à política de terra arrasada e sem lei que o último governo tentou impor à maior floresta tropical do planeta.

O discurso anti-indígena do governo passado deve ter aumentado o preconceito contra os povos originários entre os segmentos mais radicais de direita, além de fortalecer os interessados na apropriação das Terras Indígenas e dos seus recursos naturais. Por outro lado, a rejeição desse processo pela maioria da sociedade ampliou a adesão à defesa dos direitos dessas populações. A fidelização desse engajamento e a ampliação de novos apoios dependerão do desempenho dos que estão no governo e dos movimentos sociais como um todo, e será essencial para garantir a sustentabilidade futura dessas políticas.

Uma coisa é certa: a defesa dos direitos indígenas e das florestas não interessa apenas aos próprios indígenas e setores envolvidos com a defesa do meio ambiente. A expressiva votação da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL), em Minas Gerais, mais votada que políticos tradicionais como Aécio Neves (PSDB), e de Sônia Guajajara (PSOL), em São Paulo, mostram que a sociedade está mobilizada e seguirá atenta.

Inteligência indígena a serviço do Brasil

Inteligência indígena a serviço do Brasil

Monica Prestes*

Roraima tem 35 terras indígenas (TIs) e é, proporcionalmente, o estado com a maior população indígena do país. Lá ficam duas das maiores e mais populosas TIs brasileiras: a Raposa Serra do Sol e a Yanomami. A segunda enfrenta uma crise humanitária com cenários dignos de uma guerra; e será preciso de uma verdadeira operação de guerra para enfrentar o seu maior flagelo, o garimpo ilegal. E ele não tomou somente a TI Yanomami.

Será preciso abrir novas frentes de batalha. Pelo menos outras sete terras indígenas de Roraima estão ameaçadas pela expansão da atividade no estado, com a fuga em massa de garimpeiros da TI Yanomami, alvo de uma força-tarefa do governo federal. A denúncia foi feita pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização indígena de base que há 52 anos atua em todas as TIs de Roraima.

Algumas dessas TIs para onde os garimpeiros estão migrando já têm focos de invasão e rotas consolidadas. Naquelas que ficam no caminho dos garimpeiros, o clima é de alerta vermelho. É o caso da Raposa Serra do Sol – para onde migraram parte dos 40 mil garimpeiros expulsos da TI Yanomami na última grande invasão, na década de 1990– e da TI Boqueirão. Nesta, o CIR identificou estruturas como acampamentos, e pontos de armazenamento de equipamentos e materiais usados na lavra, além de portos clandestinos e um vaivém intenso de garimpeiros, principalmente à noite.

A denúncia repercutiu na imprensa, mas com o objetivo de atingir, também, outras esferas: o CIR enviou ofícios com os relatórios e o mapeamento das ameaças para órgãos federais responsáveis pela força-tarefa contra o garimpo, para embasar ações para além do território Yanomami. O conselho também fez um alerta para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre os riscos da invasão garimpeira na Raposa Serra do Sol, em reunião que aconteceu esta semana. É a inteligência indígena sobre seu território a serviço do Brasil.

É fato que a crise Yanomami não começou ontem, nem em 1º de janeiro de 2019. Mas o que também não faltam são fatos – e documentos – que comprovam que ela se agravou, e muito, nos últimos quatro anos, em meio a uma pandemia negligenciada e à omissão do próprio governo, que negou pedidos de ajuda feitos pelos próprios indígenas. Boa parte desses documentos, vale lembrar, foram produzidos por organizações indígenas como o CIR e seus parceiros institucionais. Nesse período, elas representaram não só a mais consistente oposição ao governo Bolsonaro, mas também a principal articulação da resistência indígena pela proteção de seus territórios.

Foi durante o governo Bolsonaro que a Hutukara Associação Yanomami, por exemplo, decidiu iniciar um monitoramento próprio sobre o avanço do garimpo ilegal no território, revelado pelo relatório Yanomami Sob Ataque, um dos documentos que deve embasar o julgamento do governo Bolsonaro na acusação de genocídio que ele pode enfrentar. Por sua vez, o CIR, organização por trás da consolidação dos direitos territoriais dos povos indígenas de Roraima, e que representa dez povos diferentes – e ainda decidiu abraçar os Warao, indígenas refugiados da Venezuela – conseguiu fortalecer sua articulação nos territórios e celebrar meio século de atuação com uma Assembleia Geral que reuniu mais de 2 mil pessoas na Raposa Serra do Sol, em janeiro.

Esse novo momento do governo brasileiro, agora mais indígena do que nunca, e das próprias organizações indígenas, fala mais sobre construir soluções do que sobre ter respostas para todas as perguntas. Afinal, assim como a violação de direitos dos povos indígenas não começou em 2019, é sabido que a crise não se resolverá em três semanas ou seis meses. E não deve ter quem duvide que jamais os povos indígenas tiveram uma representatividade tão grande no governo, sobretudo nos espaços de decisão sobre suas próprias vidas. Até agora, nesses primeiros 40 e poucos dias, ter uma ministra, uma presidente da Funai e um presidente da Sesai indígenas tem feito a diferença.

Os povos indígenas, não custa lembrar, estão fazendo a parte deles há 523 anos: cuidando do que é nosso. Agora, ocupando espaços no governo, eles terão a oportunidade de construir novas perspectivas de futuro, caminhando ao lado das organizações de base e fortalecendo o próprio movimento indígena. Mas eles não farão a mudança necessária sozinhos, essa é uma construção da qual todos – governos, movimento indígena e sociedade civil – devemos fazer parte.

*Editora na Uma Gota no Oceano 

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