Dia do orgulho indígena

Dia do orgulho indígena

O resultado do Censo do IBGE seria a justificativa perfeita para a criação do Dia do Orgulho Indígena. Sigam nosso raciocínio: hoje, 1.693.535 de nós, brasileiros, se declaram assim. Pouco mais da metade dessas pessoas vive na Amazônia Legal. No censo anterior, o IBGE contou 896.917; um aumento de 88,82% em 12 anos. De 2010 para cá, a população total cresceu 6,5%. Mas não houve um baby boom nas aldeias: o que aumentou foi o número de pessoas que se autodeclararam indígenas. O orgulho e um chamado as fizeram abraçar suas raízes, que estão calando o medo da perseguição e do preconceito. Afinal, a Terra grita por socorro; que os ministros do Supremo Tribunal Federal também a ouçam no julgamento do “marco temporal”, que será retomado esta semana.

Não há mão de obra mais qualificada para enfrentar as mudanças climáticas. Os povos originários são guardiões da floresta, mas também protetores do clima. E 867,9 mil deles, mais da metade, vivem na Amazônia Legal, que tem papel relevante para manter o equilíbrio do clima no planeta. O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e o Centro de Pesquisa em Clima Woodwell divulgaram uma nota técnica que atesta que a temperatura média anual no Território Indígena (TI) do Xingu é 5°C menor do que em sua vizinhança, castigada pelo agronegócio; em geral, as temperaturas nas TIs são 2°C mais baixas do que em áreas não protegidas. Por que será?

A floresta é um ar-condicionado natural, graças a um fenômeno chamado evapotranspiração, que faz a vegetação mandar vapor d’água para cima, como se chovesse ao contrário. As TIs ajudam a temperatura do resto do mundo a ser menos infernal ao guardar 55 bilhões de toneladas de carbono, o que dá 26 anos de emissões brutas do país inteiro. Sem esse serviço ambiental, gratuito, natural e eficiente, o Brasil não cumpre as metas do Acordo de Paris – e se esses 55 bilhões de toneladas de carbono forem para a atmosfera, as portas da extinção serão escancaradas. O MapBiomas divulgou, no fim de agosto, um levantamento preocupante: o país perdeu 960 mil km² de vegetação nativa entre 1985 e 2022 – o que dá duas Alemanhas e meia de extensão e uns graus a mais na temperatura global. 

As TIs são as áreas menos desmatadas, com apenas 1% do total. Essas terras resguardam 19% da vegetação nativa do país em 13% da área total de seu território, mas estão ameaçadas. Além de não demarcar nenhuma TI, o governo anterior estimulou a motosserra a cantar e, de 2018 a 2022, foram desmatados 128 mil km² de vegetação nativa, 120% a mais que entre 2008 e 2012. A destruição, agora, parece sob controle – de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ela diminuiu 42,5% entre janeiro e julho deste ano, em comparação com o mesmo período de 2022. 

Ainda assim, continuamos na beira do ponto de inflexão da Amazônia, quando a floresta não conseguirá mais se regenerar. A gente não quer pressionar, longe de nós influenciar os votos dos Excelentíssimos Ministros do STF, mas seria de bom tom lembrar que o julgamento marcado para esta quarta não decide apenas as vidas de 1.693.535 de brasileiros, mas de todos os habitantes do planeta. Que a decisão deles dê a todos nós um motivo de orgulho. 

Saiba mais

Terras indígenas, “ar-condicionado” do Brasil: Xingu tem 5°C a menos que áreas desmatadas

https://ipam.org.br/terras-indigenas-ar-condicionado-do-brasil-xingu-tem-5c-a-menos-que-areas-desmatadas/

Brasil perde 2,5 Alemanhas de vegetação nativa em 38 anos, diz estudo

https://noticias.uol.com.br/colunas/carlos-madeiro/2023/08/31/pais-perde-area-de-25-alemanhas-de-vegetacao-nativa-em-38-anos-diz-estudo.htm

Dados do Censo 2022 revelam que o Brasil tem 1,7 milhão de indígenas

https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/dados-do-censo-2022-revelam-que-o-brasil-tem-1-7-milhao-de-indigenas

O que explica alta de quase 90% na população indígena registrada pelo Censo 2022

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pw10g6w4xo

Mulheres indígenas em defesa da vida

Mulheres indígenas em defesa da vida

Por Vinícius Leal

Se não é fácil ser mulher nesse mundo cruel, imagina ser mulher indígena? Segundo a ONU, há 238,4 milhões delas espalhadas pelos cantos do globo. Elas são fundamentais para o bem-estar de suas famílias, das comunidades onde vivem e do próprio planeta: como estão na linha de frente da preservação da natureza, formam, junto com os biomas que protegem, a principal barreira contra as mudanças climáticas. Como além de cruel o mundo é ingrato, em geral elas recebem em troca descaso e opressão. Mas jamais fogem à luta. E suas armas são muitas.

Foi num período especialmente dramático para os povos originários do Brasil que muitas mulheres indígenas encararam mais um desafio: o da reinvenção. Durante a onda da Covid-19 em Manaus, no coração do Parque das Tribos, o maior bairro indígena do país, onde vivem mais de 700 famílias de 35 etnias, surgiu um novo jeito de gerar renda e resistir à necessidade. Impossibilitadas de saírem de casa para vender suas obras artesanais ou trabalhar como empregadas domésticas – atividade que a maioria exercia –, elas começaram a costurar máscaras de proteção contra o coronavírus. Usaram de uma velha arte para combater um novo inimigo.

Vanda Witoto, coordenadora do Ateliê Derequine, faz parte desse grupo de empreendedoras. “Antigamente fazíamos nossas produções de roupa a partir das cascas de pau, como o tururi. A minha mãe costurou a vida inteira, aprendeu com minha avó, que foi ensinada pelas freiras. Mas foi na pandemia que começamos a estruturar o nosso ateliê com a produção de máscaras. Muitas mulheres receberam formação para produzir peças de roupa. Isso nos motivou”, explica ela, que também é profissional da saúde, professora e liderança política. Nas últimas eleições, recebeu mais de 25 mil votos para deputada federal, mas não se elegeu por conta do coeficiente partidário.

Foi quando faziam esse trabalho que a virada de chave para o mundo da moda se deu. A partir de então, formou-se um coletivo de criação e de empreendedorismo feminino indígena. “A primeira peça que criamos foi um poncho com a representação do topo da maloca do povo Witoto. A gente fez aplicação de todos os grafismos de triângulo da maloca na peça e isso fez um estalo na cabeça. Eu falei ‘mãe, a gente tem um potencial, essas mulheres não têm renda fixa, vamos nos organizar’. Aí articulamos parcerias para doação de máquinas de costura e oficinas, o que qualificou a gente”, conta Vanda.

Naquela época também nascia uma cena de moda cada vez mais forte em Manaus, que começou a ascender no mercado nacional. Foi aí que o Ateliê Derequine estabeleceu parcerias, ganhou impulso e vem se consolidando como marca, transformando a ancestralidade em traços únicos que traduzem a resistência dos povos e geram renda. O Ateliê é um dos 32 projetos de organizações indígenas da Amazônia financiados pelo Fundo Podáali, o primeiro fundo comunitário indígena, criado e administrado totalmente por indígenas, para indígenas.

Seguindo o mesmo propósito de fortalecimento da autonomia da mulher indígena através da arte e da economia, o projeto Kywagâ – Contrução da Casa de Artesanato, Arte e Moda das Mulheres Kurâ – Bakairi, também é apoiado pelo Podáali. Na parceria, os recursos vêm sendo utilizados para a construção da sede do projeto, o que incentiva a profissionalização. As condições de trabalho e a geração de renda também ganham melhorias a olhos vistos para 20 mulheres do Kywagâ e suas famílias, beneficiando, direta e indiretamente, 300 indígenas das comunidades Aki Ety, Paikum, Aturua, Pakuera e Kuiakware, em Mato Grosso.

Para Rosi Meire Apurinã, vice-diretora do Podáali, o fato de ser um fundo de financiamento que arrecada e aplica recursos em iniciativas geridas por mulheres indígenas, reforça a missão de transformar o presente e o futuro dos povos originários através da descolonização da economia e de ações de sobrevivência protagonizadas por eles próprios. 

“O Podáali tem como uma de suas premissas  fazer com que os recursos cheguem no território respeitando as formas próprias de organização social de cada povo, e é um processo incidir na filantropia, incidir nos doadores, que geralmente têm processos burocráticos que não conversam com as diferentes formas de organização social. ⁹⁹A nossa primeira chamada, que apoiou projetos de até R$ 50 mil, é reflexo disso”, afirmou, referindo-se às iniciativas apoiadas pela 1ª Chamada do Podáali, “Amazônia Indígena Resiste”.

O resultado dessas potências em gestão, financiamento, empreendedorismo e arte produzida por mulheres indígenas esteve representado em Brasília (DF) durante a 3ª Marcha das Mulheres Indígenas, o maior evento de mobilização indígena feminina do país. Os dois coletivos, Ateliê Derequine e o projeto Kywagâ, participaram do Desfile das Originárias da Terra, realizado durante a programação cultural do evento, e que contou com a presença de inúmeras lideranças, artistas de moda e personalidades indígenas.

O nosso desfile ancestral, que conta com mulheres de vários biomas, descoloniza a moda. Quantas vezes nos perguntaram se passamos batom? Passamos batom para não deixar a boiada passar, passamos batom e acertamos os tons para não deixar o marco temporal passar”, bradou a deputada federal Célia Xariabá (PSOL-MG) na abertura do desfile.

Sob o tema “Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade pelas Raízes Ancestrais” e organizado pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) e pelo movimento “Mulheres Biomas do Brasil”, a marcha reuniu mais de 5 mil mulheres indígenas de todas as regiões do país para debater soluções e encontrar caminhos para os desafios vividos pelos povos originários. Entre eles, o combate à violência de gênero e violência política e o empoderamento feminino nos espaços de poder e pela luta de direitos. Com criatividade, coragem, batom ou urucum, elas seguem em frente, seja nas passarelas ou no ‘front’

Foto: Nathalie Brasil / Ateliê Derequine

Saiba mais:

https://www.nationalgeographicbrasil.com/historia/2023/09/dia-internacional-da-mulher-indigena-por-que-a-data-e-celebrada-em-5-de-setembro 

https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/dia-internacional-da-mulher-indigena-2013-entenda-a-importancia-da-data 

https://amazoniareal.com.br/terceira-marcha-mulheres-indigenas/ 

https://anmiga.org/iii-marcha-das-mulheres-indigenas-2023/ 

Os Mura, a ameaça da mineração e a crise climática

Os Mura, a ameaça da mineração e a crise climática

Até o fim desta semana, o Supremo e o Senado devem decidir se terras indígenas de todo Brasil podem ter seus processos de demarcação suspensos e suas homologações sujeitas a anulação – tudo vai depender das votações sobre o marco temporal que ocorrem em Brasília. A mais de 3 mil quilômetros dali, no município de Autazes, interior do Amazonas, o povo Mura, que sobreviveu a tentativas de genocídio por conta de sua índole guerreira e suas táticas sofisticadas de enfrentamento, espera há 20 anos pela demarcação de seu território, cobiçado pela mineradora Potássio do Brasil. Mais que reconhecimento, a demarcação é a garantia de um futuro para os Mura, que apesar de ocuparem a região há mais de dois séculos, estão, como todos os povos indígenas brasileiros, sujeitos aos impactos do julgamento do marco temporal no STF – que pode inviabilizar a demarcação da TI e deixá-la ainda mais vulnerável – e da votação do PL 2903 no Senado, que abre as portas das terras indígenas para a exploração mineral e dispensa consultas aos povos afetados e, até mesmo, à Funai. Quem perde, no entanto, não são só os Mura – é o planeta. 

Por Elaíze Farias*

Manaus (AM)O Canadá detém 75% das empresas de mineração no mundo, com empreendimentos espalhados em vários países, entre eles o Brasil. Na Amazônia, dois grandes projetos de uma empresa canadense estão em curso, com apoio e facilitação das autoridades públicas regionais e nacionais: Belo Sun e Potássio do Brasil, ambas do banco Forbes & Manhattan

O primeiro, mais conhecido, tem projeto de extração de ouro em áreas que impactarão aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas em Volta Grande do Xingu, no Pará. O segundo é um bilionário projeto de exploração de potássio para produção de fertilizantes que, se autorizado, vai devastar comunidades indígenas do povo Mura no município de Autazes, no Amazonas. Localizado a 120 km de Manaus, Autazes é formado por microbacias compostas por grandes lagos à margem dos rios Madeira e Madeirinha. Um dos maiores deles se chama Lago do Soares.

Os Mura foram um dos primeiros povos da Amazônia a sofrer tentativas de extermínio pelos invasores europeus, no século 18. A índole guerreira, o grande conhecimento de navegação e táticas sofisticadas de enfrentamento ao inimigo fizeram com que eles resistissem a séculos de ataques, ameaças e esbulho territorial. Mas desde então, seu vasto território foi drasticamente reduzido por outras formas de invasão, como turismo ilegal, grandes fazendas de búfalo e, mais recentemente, a mineração

Hoje, a distribuição geográfica das terras Mura em cidades como Autazes e Careiro, onde está concentrada a maior parte da sua população, se dá em ‘ilhas’. Isto significa que cada comunidade é, na prática, uma terra indígena. E o fato de elas não serem contíguas fragiliza ainda mais os Mura frente às ameaças. 

Segundo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Autazes tem 16 terras Mura em diferentes estágios de demarcação. Jauary, que está em processo de delimitação, e Paracuhuba, já regularizada, são duas das aldeias que sofrerão impactos diretos da exploração. Soares, mesmo nome do lago, que não é demarcada, é a mais ameaçada. A planta da reserva de potássio fica dentro desta terra indígena

O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do empreendimento cita a aldeia Soares ao longo de várias páginas, mas ignora a presença indígena e a classifica como uma “vila ribeirinha”

A espera do povo Mura das aldeias Soares e Urucurituba – esta última é onde a Potássio do Brasil planeja construir um porto para escoar o minério – pela demarcação de seus territórios já dura duas décadas. O primeiro pedido foi feito à Funai em 2003 e renovado pelo menos três vezes desde então. Em 2018, eles fizeram uma autodemarcação, delimitando a Terra Indígena Soares/Urucurituba, medida que foi ignorada juridicamente, apesar das duas comunidades existirem há quase 200 anos – Soares, por exemplo, foi fundada no século19, por um indígena Mura que lutou na Guerra da Cabanagem (1835-1840), a maior revolta popular da região Norte.

A esperança pela demarcação veio apenas em 2023, na gestão de Joênia Wapichana à frente da Funai. Em março, uma equipe do órgão indigenista esteve em Soares e em Urucurituba. No início de agosto, a Funai constituiu o Grupo Técnico (GT) para iniciar os estudos de delimitação, o primeiro passo para o reconhecimento do território. Apesar dessa conquista, os Mura vêm sofrendo ameaças de agressão e de morte, além de assédios e constrangimentos de comerciantes, pecuaristas e políticos que são contra a demarcação e atos racistas. 

As autoridades locais são favoráveis, com a intenção de colher lucro, investimentos e supostos royalties. O governo do Amazonas pressiona para que a exploração de potássio seja aprovada. O governador Wilson Lima (União), defensor de garimpo e mineração, considera a atividade uma prioridade de seu segundo mandato, apesar do empreendimento ser privado. Ele também já se manifestou publicamente contra demarcação de terras Mura. Atualmente, o empreendimento está suspenso por determinação judicial, a pedido do Ministério Público Federal. 

Em março de 2022, estive nas aldeias Soares e Urucurituba. Os poços de perfuração, feitos à revelia dos povos, demarcam a área de exploração das jazidas. Placas da empresa  fincadas no chão ostentavam um símbolo de propriedade e poder por parte da Potássio do Brasil que, segundo a Justiça Federal, comprou as terras ilegalmente. Indígenas me relataram pressão para vender seus terrenos

Riscos socioambientais

Demarcar o território indígena também é um reforço importante no enfrentamento à crise climática, já que as terras indígenas são, comprovadamente, uma barreira natural contra o desmatamento. E, no caso de Autazes, o melhor instrumento de proteção às águas subterrâneas e ao modo de vida das populações tradicionais da região

O estudo “Projeto Potássio Amazonas – Autazes e seus Impactos sobre as Terras Habitadas pelo Povo Indígena Mura” alerta para o risco de vazamento de resíduos nos lençóis freáticos no processo de extração do potássio em Autazes. Uma das autoras, a pesquisadora Fernando Bragato, da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), destaca que o maior risco gerado pela mineração de potássio é a possibilidade de a água de fontes subterrâneas inundar a mina. “A área de Autazes é extremamente alagada e o vazamento de sal, com consequente salinização da água, pode ser um fator determinante para inviabilizar a continuidade da vida comunitária daqueles grupos na área”, alerta

Durante o processo de separação do cloreto de potássio e do cloreto de sódio, que compõem as rochas de silvinita, o resíduo gerado forma uma salmoura que, se depositada no solo ou nos rios, compromete a sobrevivência da flora, da fauna e, consequentemente, das populações tradicionais. A empresa, que já fez 33 perfurações para sondagens, com meta de alcançar uma produção anual de 2,16 milhões de toneladas de cloreto de potássio, diz que todo esse resíduo “será injetado em aquíferos profundos”.

A Potássio do Brasil passou a adotar uma tática de ‘greenwashing’, com uma pretensa preocupação ambiental e promessas de melhorias para a sociedade, como forma de melhorar sua imagem. Palavras como “mineração sustentável” e “potássio verde” e até termos como ‘bem viver’, um princípio originário das populações indígenas, foram apropriados pela indústria para ‘vender’ seus projetos altamente impactantes. 

A mineração está entre as atividades mais perigosas do mundo e, por isso, uma exploração no maior afluente do rio Amazonas não pode se limitar ao ponto de vista da geração de lucro. É preciso, mais que cautela, estudos minuciosos também sobre a cadeia de impacto, com estratégia eficaz para impedir que falhas resultem em mais tragédias como as que mineradoras vêm protagonizando Brasil afora

Além dos riscos à biodiversidade, a mineração em Autazes ameaça a subsistência dos povos tradicionais e ainda compromete a história: em Urucurituba, artefatos milenares encontrados na terra indígena, além de comprovarem a ocupação tradicional, indicam o valor arqueológico da região

A amplitude e profundidade desses impactos sequer conseguimos mensurar. O que sabemos é que se trata de uma injustiça socioambiental que precisa ser conhecida e difundida. E o primeiro passo para isso é ouvir o que têm a dizer os povos indígenas. Finalizo com uma declaração do tuxaua Sérgio Nascimento, líder da aldeia Soares, dada exclusivamente para este artigo:

“Quero dizer que nós, indígenas do Lago do Soares, somos originários, que somos cidadãos brasileiros e votamos, pagamos impostos e também produzimos. Temos nossos direitos garantidos na Constituição e queremos que seja cumprido o que está na lei. Nós não somos empecilho do município. Queremos ser respeitados como indígenas. Ninguém pode falar por nós e quem pode dizer que o que nós queremos somos nós. Quero respeito à nossa origem”.

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*Elaíze Farias é jornalista amazonense e referência em reportagens sobre povos originários e povos tradicionais, violações de direitos territoriais, humanos e não humanos. É cofundadora da Amazônia Real, agência de jornalismo independente e investigativo pioneira da região Norte do Brasil. Entre reconhecimentos recebidos está o Prêmio Especial Vladimir Herzog 2022.

O coração quilombola precisa bater mais forte

O coração quilombola precisa bater mais forte

Pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas nos últimos dez anos, segundo a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ). Uma delas foi Flávio Gabriel dos Santos, o Binho do Quilombo, filho de Mãe Bernadete, morto em 2017. A matriarca do quilombo Pitanga dos Palmares foi assassinada na semana passada por lutar por justiça e pela proteção do território tradicional. Mãe Bernadete sabia que a regularização fundiária, com a titulação dos quilombos, é o primeiro passo para combater a violência contra a população quilombola. Quilombo é questão de segurança alimentar, climática e pública – a última, um dever do Estado. O coração quilombola precisa bater cada vez mais forte.

Depois de ser adiado duas vezes seguidas, o novo Censo do IBGE finalmente revelou o tamanho de nosso coração quilombola: são 1,32 milhão de pessoas que pulsam em 1.696 municípios, em todas as regiões do Brasil – e em todos os estados, exceto Acre e Roraima. O instituto identificou 494 territórios oficialmente delimitados, que abrigam 203.518 moradores. Ou seja, a imensa maioria deles (87,4%) ainda reside no limbo da burocracia e da ganância de alguns. A Constituição de 1988 reconheceu sua existência e seus direitos, mas só agora eles começam a entrar na sala das decisões. Eles devem entrar.

É verdade que hoje há representantes quilombolas no Executivo e o Censo os localizou no mapa. Essa população e o Estado nunca tiveram tais ferramentas nas mãos: informação e a possibilidade de realizar. Chegou a hora de os quilombos se inserirem definitivamente no centro das decisões. Um exemplo prático: com esses dados detalhados sobre a localização das comunidades e o tamanho exato dessa a população – antes apontados como a razão de que para que as políticas públicas voltadas para eles estivessem absurdamente defasadas no orçamento federal – os recursos teriam mais chance de chegar aonde são mais necessários. A começar pelas ações de reconhecimento, demarcação e titulação dos territórios quilombolas.

Para que isso aconteça, é preciso incluir políticas públicas exclusivamente voltadas à população quilombola no Plano Plurianual. Conhecido como PPA, ele define critérios e objetivos de longo prazo do governo. Uma prioridade é óbvia: a legalização da posse da terra, primeiro passo para garantir o acesso dos quilombolas a outros direitos constitucionais. De outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição, até agora, menos de 200 das cerca de 6 mil comunidades foram tituladas – o ponto final de um longo processo de regularização fundiária que passa por dois órgãos: Fundação Palmares e Incra. Nesse ritmo, só daqui a dois mil anos as 1.896 ações de ações em andamento serão concluídas. 

A segunda maior concentração de quilombolas do país, cerca de 430 mil pessoas (32,1% do total), está na Amazônia Legal, que tem 148 quilombos titulados e outros 583 em processo de titulação. Nas terras que ocupam, o desmatamento é próximo do zero há 13 anos; sua importância no combate à crise climática é sabido. Mas as comunidades precisam ser legalizadas para que possam ser melhor protegidas pelo Estado. O tráfico e seus pistoleiros de aluguel são apenas mais uma ameaça. A maior é aquela desde sempre: a invasão de terras. Não se trata apenas de proteger a natureza, mas também de se salvar vidas humanas, como a de Mãe Bernadete Pacífico.

Mãe Bernadete era mulher no quinto país que mais pratica o feminicídio no mundo, um número que cresceu 6,1% em 2022, chegando a 1.437 mortas. É negra, e pessoas com a mesma cor de pele que ela têm três vezes mais chances de serem assassinadas, além de serem as que mais morrem pelas mãos do Estado: em média, cinco pessoas negras foram mortas, por dia, em ações policiais, em 2021. Em números totais: os negros representam 65% dos 2.154 óbitos registrados na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo estados monitorados pela Rede de Observatórios em Segurança Pública. Ela também era ialorixá, em tempos em que a intolerância contra religiões de matriz africana dispara: em 2020, foram registrados 86 casos de violência, enquanto, em 2021, eles chegaram a 244, um aumento de 183%. Mas foi covardemente assassinada aos 72 anos por questões fundiárias, dentro da associação do Quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia.

Os assassinatos no campo tiveram um aumento de 30% entre 2021 (35 mortos) e 2022 (47, com nove adolescentes e uma criança entre eles), aponta a Comissão Pastoral da Terra. E as lideranças comunitárias são os alvos mais frequentes dessa violência. Mãe Bernadete exercia uma liderança natural, tanto religiosa como política, na sua comunidade, localizada na região metropolitana de Salvador (BA). Cerca de 290 famílias vivem no local de 8,54 km². A associação de moradores local reúne 120 agricultores que produzem farinha, frutas e verduras. Foi certificado em 2004, mas ainda não foi titulado. Por isso, é mais cobiçado.

De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas nos últimos dez anos. A própria Bernardete pedia Justiça por seu filho, Flávio Gabriel dos Santos, o Binho do Quilombo, morto por um grupo de homens armados em 2017. Ao legalizar territórios, a violência diminuirá. Quilombo é questão de segurança alimentar, climática e pública – a última, um dever do Estado. O coração quilombola precisa bater cada vez mais forte.  

 

Marco temporal é racismo fundiário (artigo de Biko Rodrigues)

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/07/marco-temporal-e-racismo-fundiario.shtml

Ao menos 30 líderes quilombolas foram assassinados nos últimos dez anos, diz entidade

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/ao-menos-30-lideres-quilombolas-foram-assassinados-nos-ultimos-dez-anos-diz-entidade.shtml 

Morta a tiros na Bahia, Bernadete Pacífico falou sobre violência contra quilombolas em encontro com presidente do STF em julho

https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/08/18/morta-a-tiros-na-bahia-bernadete-pacifico-falou-sobre-violencia-contra-quilombolas-em-encontro-com-presidente-do-stf-em-julho.ghtml

Censo do IBGE: quase um terço dos quilombolas do Brasil mora na Amazônia Legal

https://g1.globo.com/economia/censo/noticia/2023/07/27/censo-do-ibge-quase-um-terco-dos-quilombolas-do-brasil-mora-na-amazonia-legal.ghtml 

Comunidade quilombola liderada por Mãe Bernadete enfrenta luto e medo

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/comunidade-quilombola-liderada-por-mae-bernadete-enfrenta-luto-e-medo.shtml 

Vítimas de violência em conflito por terra, quilombolas ainda são “apagados” em decisões políticas

https://oeco.org.br/reportagens/vitimas-de-violencia-em-conflito-por-terra-quilombolas-ainda-sao-apagados-em-decisoes-politicas/ 

Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas em 1.696 municípios

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37464-brasil-tem-1-3-milhao-de-quilombolas-em-1-696-municipios#:~:text=O%20Censo%202022%20mostrou%20que,total%20de%20quilombolas%20do%20pa%C3%ADs

A importância do Censo na formulação de políticas públicas para quilombolas

https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2023/08/19/a-importancia-do-censo-na-formulacao-de-politicas-publicas-para-quilombolas.htm 

No atual ritmo, Brasil levará 2.188 anos para titular todos os territórios quilombolas com processos no Incra

https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/no-atual-ritmo-brasil-levara-2188-anos-para-titular-todos-os-territorios-quilombolas-com-processos-no-incra/23871

1.437 mulheres foram mortas no Brasil simplesmente por serem mulheres

https://observatorio3setor.org.br/noticias/1-437-mulheres-foram-mortas-no-brasil-simplesmente-por-serem-mulheres/ 

Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio no mundo

https://www.camara.leg.br/tv/553531-brasil-tem-a-quinta-maior-taxa-de-feminicidio-no-mundo/ 

Negros são maioria dos mortos em ações policiais

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-11/negros-sao-maioria-dos-mortos-em-acoes-policiais 

Risco de assassinato é 3 vezes maior para negros do que para não negros no Brasil

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/11/risco-de-assassinato-e-3-vezes-maior-para-negros-do-que-para-nao-negros.shtml 

Casos de ataques às religiões de matriz africana crescem 270%

https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-01/casos-de-ataques-religioes-de-matriz-africana-crescem-acima-de-270#:~:text=Em%202021%2C%20as%20notifica%C3%A7%C3%B5es%20contra,mu%C3%A7ulmana%2C%20judaica%20e%20a%20ind%C3%ADgena.

A Amazônia somos nós e a transição ecológica é indígena

A Amazônia somos nós e a transição ecológica é indígena

*Por Toya Manchineri

Se estamos juntos nessa luta, é preciso que todos façam a sua parte, o quanto antes. E isso inclui não só assumir – e cumprir – compromissos ambientais e climáticos, como a responsabilidade por financiar um movimento global por justiça climática. Queremos participar das decisões que dizem respeito a nós, ao Brasil e o resto do mundo, e queremos autonomia. Nossa experiência, a Ciência e a História nos dão aval para tanto. Quantas COPs mais teremos que esperar para que todos façam a sua parte? A contagem regressiva para o abismo não para. Se a Amazônia for destruída, a distância não irá protegê-los. É hora de união e ação!

Cada violência praticada contra nós é mais um passo que a Humanidade dá para o seu fim. Quem diz isso é a Ciência: não só os países amazônicos correm o risco de virar cinza; o planeta inteiro vai queimar caso a floresta deixe de existir. E não haverá Amazônia sem nós, indígenas; porque nós somos a Amazônia. Sua terra e biodiversidade são nossos corpos, seus rios correm em nossas veias. Nossos ancestrais não só a preservaram por milênios, como ajudaram a cultivá-la. Vivemos nela e por ela. Dona da maior reserva de água doce do planeta, ela é, também, uma barreira natural contra o avanço das mudanças climáticas.

Representantes de Brasil, Venezuela, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Guiana e Suriname, que formam a Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia (OTCA), se reuniram em Belém para discutir o futuro da floresta na Cúpula da Amazônia. Temas como preservação, economia e transição ecológica estiveram na pauta. Ou seja, tudo o que praticamos muito antes de o colonizador nos impor fronteiras e conceitos. Só que muita coisa importante ficou de fora da Declaração de Belém, sua carta de intenções. Entre elas, dois pontos fundamentais: o compromisso de desmatamento zero até 2030, uma sugestão brasileira; e o fim da exploração de petróleo na região, que partiu do governo colombiano.

Pelo jeito, o Brasil ainda não desistiu de perfurar a foz do Rio Amazonas em busca de petróleo. Nós, Manchineri, acreditamos que cada rio, montanha, animal, espírito, planta ou ser humano é um mundo próprio ligado ao todo. Este pensamento é comum à maioria dos povos originários. Por isso, mesmo que eu pertença a um povo que vive no Acre, me preocupo com o que acontece a milhares de quilômetros de distância de minha casa, na fronteira do Amapá com o Pará.

Nós, povos indígenas, somos a transição ecológica natural. Somamos 5% da população do planeta e protegemos 80% de sua biodiversidade. A despeito dos alertas do IPCC da ONU, cada Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) parece patinar no mesmo lugar. Pensando nisso, também nos reunimos em Belém, na Assembleia dos Povos da Terra pela Amazônia, para criar uma estratégia de comunicação e elaborar uma pauta comum de reivindicações e sugestões concretas, que será apresentada na próxima COP, em Dubai.

Foram cerca de 1.500 representantes de povos – do Brasil e países vizinhos –, que vivem na Bacia Amazônica. Elaboramos um documento listando nossas reivindicações mais urgentes, que o leitor pode conhecer em sua totalidade aqui. Posso assegurar que é do seu interesse também. Entre nós, a unanimidade é que nossos direitos territoriais sejam definitivamente assegurados.

A ganância tem imaginação ilimitada. O “marco temporal” é apenas sua última invenção; já, já, inventam outra. E este foi outro assunto que ficou de fora das discussões da Cúpula da Amazônia. Nossas terras são as principais barreiras ao desmatamento – só 1% da vegetação nativa foi derrubada dentro delas nos últimos 30 anos no Brasil – e somos os primeiros a sofrer com os efeitos a injustiça climática: municípios indígenas na Amazônia são os mais afetados por enchentes, secas e deslizamento de terra. Mas as consequências estão chegando a todo mundo, indistintamente.

Se querem sobreviver, não deixem que nos matem. Não morremos apenas quando nossas almas deixam nossos corpos, mas também quando somos arrancados de nossas terras. Trazemos impressos em nossos corpos e almas as marcas da violência diária e secular. Se quiserem usar nossas terras, respeitem a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT): consultem-nos e peçam nossa permissão antes. Nossa decisão estará sempre embasada na garantia do bem-comum, não em nossos interesses pessoais. Nossos ancestrais e nossa consciência nos guiam.

A Terra é a casa de todos os povos; logo, defendê-la não é exclusividade nossa. É preciso, por exemplo, que os europeus entendam que é preciso proteger a Amazônia de dentro de suas fronteiras também. Boa parte do ouro extraído de nossa casa ilegalmente, que envenena nossos rios, e da madeira contrabandeada tem a União Europeia como destino.

Os maiores poluidores do planeta são China e EUA; por quanto tempo eles vão continuar adiando suas ações? Se estamos juntos nessa luta, é preciso que todos façam a sua parte, o quanto antes. E isso inclui não só assumir – e cumprir – compromissos ambientais e climáticos, como a responsabilidade por financiar um movimento global por justiça climática. Queremos participar das decisões que dizem respeito a nós, ao Brasil e o resto do mundo, e queremos autonomia. Nossa experiência, a Ciência e a História nos dão aval para tanto. Quantas COPs mais teremos que esperar para que todos façam a sua parte? A contagem regressiva para o abismo não para. Se a Amazônia for destruída, a distância não irá protegê-los. É hora de união e ação!

*Toya Manchineri é Coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).

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