Querem arrancar nosso coração

Querem arrancar nosso coração

Por Alessandra Korap e Juarez Saw Munduruku*

 

Pariwat, o nome que nós, Munduruku, usamos para chamar o homem branco, também significa inimigo. Não queríamos que fosse assim. Os livros de História registram que o primeiro contato entre nós aconteceu em 1742. O encontro não foi amistoso e, desde então, lutamos para nos defender. Como somos valentes, o invasor firmou um acordo de paz conosco ainda no fim daquele século. Mas ele nunca foi cumprido, como vários seguintes. Agora, corremos o risco de ser atropelados pela EF-170, a Ferrogrão.

O Pariwat também se sentia nosso dono. Isso só começou a mudar a partir de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. Nela, garantimos nossos direitos territoriais e o de praticarmos nossos costumes e tradições. Além disso, foi estabelecido um prazo de cinco anos para que todas as terras indígenas estivessem demarcadas. Porém, a Sawre Ba’pim, que seria diretamente impactada pela ferrovia, só foi reconhecida em fevereiro deste ano, pela primeira indígena presidente da Funai, Joênia Wapichana.

A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) nos assegura o direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado em caso de obras em nossas terras. Em 2014 criamos o Protocolo de Consulta Munduruku, porque nenhum de nós toma sozinho uma decisão que diga respeito a todos: cada morador de nossas 155 aldeias tem direito a opinar. Apesar disso, no ano seguinte inauguraram o Complexo Hidrelétrico de Teles Pires, num importante afluente do Tapajós, contra a nossa vontade.

As barragens do monstrengo fizeram submergir a corredeira das Sete Quedas, um lugar sagrado para nós. Lá viviam a Mãe dos Peixes, o músico Karupi e os espíritos de nossos antepassados. Já imaginaram se transformassem a Basílica de Nossa Senhora Aparecida num shopping center? A área inundada também servia de local para a desova de peixes como pintados, pacus, pirararas e matrinxãs. Os pajés falam com nossos ancestrais, mas quem consulta as árvores e os bichos? Nós, indígenas, fazemos parte da floresta, do seu corpo, e ela faz parte de nós. É o nosso coração.

A Ferrogrão ligaria a cidade de Sinop, em Mato Grosso, ao porto de Miritituba, no Pará. Ela serviria apenas para escoamento de soja, que depois seguiria em barcaças gigantes pelo Tapajós, numa hidrovia. Para a construção da ferrovia, seria preciso alterar os limites do Parque Nacional Jamanxim, que é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. A Lei 13.452 foi sancionada em 2017 especialmente para isso. Calcula-se que 2 mil km² de mata seriam destruídos de início. Mais duas Florestas Nacionais serão impactadas, além do território Sawre Muybu, as reservas Praia do índio e Praia do Mangue, o próprio rio e os povos Kayapó e Panará. O desmatamento impediria o Brasil de cumprir seus compromissos ambientais internacionais. E isso seria só o começo.

A estrada de ferro pode ser o fim da linha para a Amazônia. Seus 993 km de trilhos abririam caminho para toda sorte de invasor, como grileiros, traficantes, garimpeiros e madeireiros, que levariam mais insegurança e violência aos que vivem na floresta. E a Lei 13.452 pode servir de precedente para outros empreendimentos. Se construída, a Ferrogrão trará a reboque a necessidade de novos portos, hidrovias e rodovias, uma infraestrutura que exigiria mais energia. A desculpa perfeita para tirar do papel a Hidrelétrica de São Luiz, no Tapajós, o último afluente da margem direita do Amazonas sem barragens. Além da locomotiva, precisamos nos preocupar com os vagões. 

O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes acolheu a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6553 em março de 2021 e suspendeu os efeitos da Lei 13.452. Desde então, o caso aguarda julgamento. A presidente Rosa Weber agendou a votação em plenário para 31 de maio. Falar da importância da floresta – e dos povos que vivem nela – para o planeta é chover no molhado. Este reconhecimento é internacional: fomos em abril aos EUA buscar o Prêmio Goldman de Meio Ambiente 2023, o mais importante do mundo. Não deixem o Pariwat arrancar o coração Munduruku. Sejam nossos Okipit: irmãos.

*Alessandra Korap é ativista do povo Munduruku e, em 2023, ganhou o Prêmio Goldman de Meio Ambiente; 

*Juarez Saw Munduruku é cacique da aldeia Sawre Muybu, no Pará

 

Cheiro de Belo Monte no ar

Cheiro de Belo Monte no ar

Há uma grande diferença entre ambição e cobiça: a primeira pode ser uma coisa boa; a segunda, jamais. Exemplos práticos: o atual governo tem a ambição de transformar o Brasil na maior potência ambiental de fato; porém, o mesmo grupo político que hoje está no poder foi movido pela cobiça quando construiu Belo Monte. A hidrelétrica, que gera mais prejuízos que energia, está lá, desde 2016, como lição a ser aprendida – para que erro igual não seja repetido. Por isso, causa preocupação a declaração do presidente Lula de que “se explorar esse petróleo tiver problema para a Amazônia, certamente não será explorado, mas eu acho difícil, porque é a 530 km de distância da Amazônia”. Esses “mas” costumam ser prenúncio de más notícias.

O Ibama negou a autorização, porque os senões são muitos. Para começar, a região já tem cerca de 100 poços perfurados e não se encontrou nada que justificasse novas explorações – vários deles, por sinal, foram fechados por causa de acidentes. Nesse quesito particular, o Brasil tem um currículo nada invejável: foram nove desastres do tipo de 2011 a 2022, quase um por ano. Ficar a “530 km de distância da Amazônia” não é nenhuma vantagem, pois a Petrobras levaria quase dois dias para chegar ao local em caso de vazamento. Além disso, a empresa não está habituada com as correntes marítimas locais, que são bem diferentes das bacias de Campos (RJ) e Santos (SP). Mas o argumento definitivo é que se estima que a produção na região seria pelo menos três vezes menor que as das reservas marinhas do Sudeste. Não tem um cheirinho de Belo Monte no ar?

E esse odor desagradável se espalha floresta adentro. Lula se comprometeu a zerar o desmatamento no país até 2030. Mas, até lá, muito verde pode vir abaixo. Um desses projetos, asfaltar a BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, serviria de tapete vermelho para toda sorte de malfeitor: invasores de terras protegidas, traficantes, grileiros, mineradoras e garimpeiros ilegais, milicianos, contrabandistas de madeira etc. A rodovia, que tem 885 km de extensão, pode impactar 69 terras indígenas – onde vivem 18 etnias e povos isolados –, 41 unidades de conservação e a última grande área contínua de mata virgem da Amazônia brasileira. A estrada é uma ideia de jerico da ditadura, reabilitada pelo governo anterior; isso já seria motivo de sobra para ser descartada pelo atual. 

O traçado da BR-319 já existe, mas só um pequeno trecho, em condições precárias, está aberto. O impasse recai sobre o asfaltamento do chamado “trecho do meio”, que conectaria os dois extremos da rodovia – do Amazonas a Rondônia. Ainda assim, a estrada serve de porteira aberta para criminosos em geral. Bastou Bolsonaro anunciar que ela receberia asfalto novo para que o desmatamento disparasse: o número vinha caindo desde 2001. Em 2020, foi de 216 km²; em 2021, deu um triplo-carpado para 453 km²; no ano passado, chegou a 480 km². A estrada era inviável de nascença, mais um elefante branco, como a usina no Rio Xingu: “A BR-319 não tinha nenhum raciocínio econômico. Era tudo paranoia de que a Amazônia seria tomada pela cobiça internacional”, diz o biólogo Philip M. Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). 

Esse delírio pode impactar uma área de 39 mil km² (maior que Alemanha e Holanda juntas) e bagunçar mais os regimes de chuva naquelas regiões. Em 2021, 15% dos 10,3 km² devastados em toda Amazônia Legal aconteceram na área e a estrada sequer se presta ao transporte de cargas. “Se for asfaltada, a rodovia BR-319 irá beneficiar até mesmo quadrilhas de roubo de carros. Além disso, as estradas vicinais ilegais ao longo da rodovia estão abrigando vários tipos de atividades criminosas, como grilagem de terras, desmatamento ilegal e garimpo”, diz Lucas Ferrante, também biólogo do Inpa. Uma pesquisa de 2020, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), estima que, com o asfaltamento, as emissões de gases do efeito estufa quadruplicariam na região nos próximos 30 anos, chegando a 8 bilhões de toneladas, o quádruplo do que o país emite em um ano. 

A EF-170, vulgo Ferrogrão, também fede um bocado. A ferrovia, que ligaria Sinop (MT) ao porto de Miritituba (PA), serviria somente para escoar a soja do Centro-Oeste; no fim da linha, a produção seguiria por uma hidrovia no Rio Tapajós. Para construí-la, seria necessário tirar um naco do Parque Nacional Jamanxim, que é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. Em 2017, o presidente Michel Temer sancionou a Lei 13.452 exclusivamente para este fim. Calcula-se que 2 mil km² de verde sumiriam de cara. 

O pior é que a lei, que está no centro do julgamento prestes a ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pode criar jurisprudência para outras obras. E a estrada de ferro abriria caminho para outros portos, hidrovias e rodovias. Essa infraestrutura exigiria mais energia; e aí quem garante que novas hidrelétricas também não seriam construídas? Os 993 km da Ferrogrão ainda impactariam mais duas Florestas Nacionais (Flonas) e os povos Kayapó, Munduruku e Panará – que não tiveram respeitado seu direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado. É ou não é puro suco de Belo Monte? Depois disso tudo, com que moral o Brasil se sentaria à mesa de negociação climática? Precisamos relembrar ao governo que o caminho da cobiça não rende só mau cheiro.

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O dia (maldito) que não terminou

O dia (maldito) que não terminou

Aydano André Motta

Caiu na segunda-feira – dia consagrado à mudança, à reforma, ao reinício – o 14 de maio de 1888, quando o Brasil amanheceu sob nova lei, que, teoricamente, tornou ilegal a existência de escravizados. Então regente do país imperial, a princesa Isabel escolheu a véspera (domingo) para sancionar o par de artigos lacônicos, em verdade rasos: 

“Art 1º: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.

“Art 2º: Revogam-se as disposições em contrário”.

Como se diria mais de um século depois, #sóquenão. A olho nu parecia o fim da chaga tão longeva como cruel, mas na verdade foi apenas a transformação do 14 de maio no dia que jamais terminou. Está aí até hoje, congelado no calendário brasileiro, para forjar a terra do racismo, do martírio dos corpos negros.

Naquele domingo de outono, 135 anos atrás, mais de 750 mil escravizados ganharam a liberdade. Quase a população do então Estado do Rio, ou 50% a mais do que os 522 mil habitantes do então Distrito Federal. A multidão de africanos sequestrados pelo tráfico negreiro e seus descendentes foi lançada à própria sorte, sem qualquer contrapartida social. 

Paralelamente, os governantes empenharam-se em incentivar a imigração de europeus, num projeto de embranquecimento da sociedade. Havia oferta de trabalho para os de pele branca, enquanto os ex-escravizados viravam alvo da lei da vadiagem, criada três anos depois. Quem não tinha emprego era perseguido pela polícia, início da marginalização do povo preto, que perdura até hoje.

O Brasil se aferrou intencionalmente a uma subcidadania, “que tem cor e sexo”, atesta o professor Hélio Santos, um de nossos maiores pensadores negros, presidente do Conselho Deliberativo da Oxfam. Ele se refere às mulheres negras, andar mais baixo da injustiça social. “A desigualdade aqui é uma decisão política e perpassa todos os governos”, conclui o intelectual, militante pioneiro em ações e movimentos para reparação do preconceito e da intolerância.

Eis aí, aliás, a palavra que precisa ser dita e repetida: reparação. Mais do que tratados com dignidade, os descendentes de escravizados merecem ser indenizados por toda a iniquidade sofrida pelos seus antepassados – exatamente como aconteceu com os judeus no Holocausto. O passivo dos 354 anos de escravidão – e do interminável 14 de maio – é gigantesco. 

Mas quando a assinatura da princesa ainda estava fresca, naturalizou-se a cegueira. A história oficial tentou apagar personagens fundamentais para a conquista, muito além da burocracia legal – Luís Gama, Luísa Mahin, Zumbi dos Palmares, os irmãos Rebouças, Maria Firmina dos Reis e muitos outros demoraram décadas para terem sua luta reconhecida. 

No começo, o 13 de maio virou feriado (só deixou de ser em 1930, pela óbvia falta de razões para comemoração) e os negros despejados em cortiços e favelas, vítimas de seguidos processos de higienização. Sem emprego nem amparo, foram postos à margem da sociedade. 

Com as forças de repressão vigilantes, não havia sequer margem para reação. Somente em 1931 (mais de 40 anos depois) surgiu em São Paulo a Frente Negra Brasileira, que teve núcleos em todo o país, oferecendo assistência jurídica, social e, principalmente, educacional, para fornecer condições de inserção no mercado de trabalho dominado pelos brancos. 

E só duas décadas atrás, às portas do século 21, as cotas educacionais começaram a ser implantadas. Os beneficiados, aliás, estão entre os melhores alunos – apesar de perseguidos por inclemente preconceito. De qualquer jeito, as ações de reparação são contra-ataque tímido, num cenário ainda muito hostil. Entre incontáveis exemplos, basta observar qualquer presídio brasileiro: a quarta maior população carcerária do mundo (e contando) tem uma cor só. 

Até chegar a 2023, quando, em pouco mais de cinco meses, 1.202 pessoas foram encontradas trabalhando em condições análogas à escravidão – a última delas, uma senhora de 63 anos que, por 47, serviu três gerações de uma família, em condições degradantes.

Como ensinam Lazzo Matumbi e Jorge Portugal em “14 de maio”, samba-reggae educativo sobre a saga sem fim de um país:

“No dia 14 de maio, eu saí por aí

Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir

Levando a senzala na alma, eu subi a favela

Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia

Um dia com fome, no outro sem o que comer

Sem nome, sem identidade, sem fotografia

O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver”

Jardineiros do Éden

Jardineiros do Éden

O caraíu zu – como os Guajajara chamam o homem branco – comparou esta terra ao Jardim do Éden de suas crenças. Em nenhum momento, porém, se questionou sobre quem seriam os jardineiros daquele paraíso. Quando desembarcaram aqui, as grandes cidades europeias se assemelhavam a lixões, mas foram necessários mais de 500 anos para que se dessem conta que a terra exuberante que chamaram de Brasil não existiria sem os brasileiros originais: os povos indígenas. Depois de cinco séculos de luta e resistência, além de ganharem ministério próprio, eles agora estão à frente da Funai. Vão cuidar não só de seus interesses – como acontece na democracia, não por acaso tema do 19º Acampamento Terra Livre (ATL) –, mas também do nosso futuro.

Como santo de casa não faz milagre, a agora ministra Sonia Guajajara e outras guerreiras, tão dignas de admiração quanto ela, bateram muita perna mundo afora para convencer os demais terráqueos de que o seu modo de vida é vital para a sobrevivência de nossa espécie. Se o presidente voltou com R$ 500 milhões para o Fundo Amazônia da coroação de Charles III, o novo monarca do Reino Unido, não foi por causa de sua bela gravata, mas graças ao trabalho prévio dessas mulheres fantásticas. Democracia, para os povos originários, é ter o seu direito à terra garantido. É o principal propósito do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da Funai – presidida pela não menos admirável Joênia Wapichana. Não vai ser fácil. É uma maratona a ser corrida em tempo de 100 metros rasos.

Não se recupera cinco séculos de atraso em quatro anos; por isso, os trabalhos começaram antes mesmo de o novo governo assumir. No último dia 12 de dezembro, o Grupo de Trabalho Povos Indígenas, entregou ao presidente eleito um documento que recomendava a demarcação urgente de 13 terras, sendo cinco na maior floresta tropical do mundo, importantíssima para a regulação do clima no planeta. O relatório registra mais 66 territórios, 31 deles na Amazônia Legal, em diferentes etapas de processo. No último dia do ATL, Lula decretou a homologação de seis terras indígenas (TIs), as primeiras desde 2018.

 “Eu quero não deixar nenhuma terra indígena que não seja demarcada nesse meu mandato de quatro anos. Esse é um compromisso que eu tenho e que eu fiz com vocês antes da campanha”, disse o presidente na ocasião. É uma promessa difícil de ser cumprida, lamentavelmente. Uma TI só é demarcada definitivamente depois de passar por etapas de estudo, delimitação, declaração, homologação e regularização. O processo é muito sério, demorado, burocrático, que se assemelha a outro tipo de corrida: os 3 mil metros com obstáculos. E eles são muitos.

O MPI começou sua gestão desarmando uma bomba-relógio: a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami. Bolsonaro escancarou a porteira para a entrada do garimpo ilegal no território daquele povo, um dos mais vulneráveis do país. Os garimpeiros que invadiram a TIY não são mais aqueles poucos aventureiros miseráveis que arriscavam suas vidas mata adentro com facão e bateia, como quis nos fazer acreditar o ex-presidente: a exploração de ouro agora é feita por organizações criminosas. São bandidos de altíssima periculosidade, impiedosos, armados até os dentes, e movidos apenas a dinheiro – não há ideologia envolvida.

No Congresso, desencavaram o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que transfere do Executivo para o Legislativo a competência de demarcar TIs. Seu autor, Homero Pereira, ex-deputado e ex-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso, morreu em 2013. A bancada ruralista – que, curiosamente, tem integrantes que nunca plantaram nem feijão em algodão ou sequer são donos de terras – perdeu representantes no Congresso (eram 552 na gestão passada e hoje são 347), mas ainda tem muita influência. É uma ameaça que não deve ser desprezada, principalmente porque temos o Parlamento mais conservador – que só não se preocupa em conservar o meio ambiente – das últimas legislaturas.

Porém, a maior ameaça paira no Supremo Tribunal Federal (STF). A presidente Rosa Weber marcou para 7 de junho a retomada do julgamento da famigerada tese do “marco temporal”, paralisada desde setembro de 2021. Os ministros estão divididos, mas o próprio Bolsonaro disse que dois deles são seus bonecos de ventríloquos – e um deles, Nunes Marques, já votou favoravelmente. O julgamento está em 1 a 1, com o voto contrário de Edson Fachin. O “marco temporal” defende que somente os indígenas que estivessem de posse de suas terras no dia da promulgação da atual Constituição, 5 de outubro de 1988, podem reivindicá-las, mesmo que tenham sido expulsos sob a mira de armas.

Juristas de renome, como Dalmo Dallari (1931-2022), há anos apontavam sua inconstitucionalidade: “Está na Constituição que o índio tem direito a terra de ocupação tradicional. A Constituição não exige que se estivesse fisicamente naquele lugar, naquele dia”, afirmou, num seminário, em 2015. Segundo ele, seria um absurdo exigir que indígenas resistissem aos invasores por meios legais ou usando a força: “Até pouco tempo, o índio não tinha o direito de entrar com ação judicial. É preciso também ressaltar que a possibilidade de resistência dos índios na terra é mínima, é muito pequena. Há muitos casos em que os índios tentaram resistir e foram assassinados, porque muitos dos invasores de terras indígenas usam capangas armados para defender invasões”.

Na mesma ocasião, o professor José Afonso da Silva, um dos maiores constitucionalistas de nossa história, argumentou que o “marco temporal” não leva em consideração conquistas anteriores a 1988: documentos do período colonial já reconheciam os direitos dos indígenas sobre as terras que ocupavam. A Constituição de 1934 também os legitimava: “Deslocar o marco para 1988 e abandonar o início efetivo do reconhecimento constitucional, que é de 1934, é realmente deturpar os conceitos”.

Os ministros do STF têm em suas mãos uma decisão que pode não só influenciar o destino dos indígenas, como também de toda a Humanidade. Que tenham isso em mente na hora de votar. São pessoas cultas e bem-informadas. Os povos originários estão fazendo a sua parte, mas não podem ganhar essa corrida, que é de revezamento, sozinhos. O Brasil não é apenas uma porção de terra, somos todos nós, brasileiros – e vai chegar a hora de cada um carregar o bastão. Somente unidos podemos transformá-lo no Éden de todos os povos.

 

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‘Play’ no futuro indígena

‘Play’ no futuro indígena

Por Vinícius Leal 

Uma câmera na mão e 305 ideias na cabeça, que serão contadas em 274 línguas diferentes. Este Acampamento Terra Livre (ATL) não vai ser igual àqueles 18 que passaram: agora, os povos indígenas fazem parte do governo. Com lideranças como Sonia Guajajara, Joênia Wapichana, Weibe Tapeba e Célia Xakriabá, eles têm o seu próprio ministério, o comando da Funai e da Sesai e uma representação forte no Congresso. Depois de 523 anos conquistaram, finalmente, o direito de escolherem seus papéis. Caberá às novas gerações não só registrá-la e contá-la ao mundo, como garantir que ela não seja passageira.

Em meio a tantas conquistas e diante de velhos (e novos) desafios, qual será o futuro do movimento indígena? A resposta está no presente, representado por sua juventude, parte da construção deste novo hoje e protagonista do amanhã. Usando as lentes de seus celulares, câmeras e drones esses jovens vêm revolucionando e reinventando o movimento indígena, não apenas ao se apropriarem de ferramentas das novas tecnologias, mas também se apoderando do direito de narrar suas próprias histórias, culturas e reivindicações, antes filtradas por olhares estrangeiros. E essa produção vem circulando mundo afora.

Uma nova turma de cineastas, roteiristas, fotógrafos, cinegrafistas, jornalistas, produtores culturais, artistas e, acima de tudo, ativistas, aposta no audiovisual e nas ferramentas de monitoramento territorial como instrumentos para alçar, definitivamente, os povos originários a protagonistas do debate político, socioeconômico e climático global. Afinal, eles são os guardiões de 80% da biodiversidade da Terra. São novas formas de lutar, com o olho no futuro e os pés na ancestralidade. O caminhar dessa luta será determinante não apenas para as próximas gerações de indígenas, mas para todos os seres vivos do planeta.

As novas tecnologias e a determinação dessa juventude têm ajudado de forma decisiva a ecoar pelo mundo afora a importância da luta pela proteção dos direitos e dos modos de vida dos povos tradicionais, e o papel da demarcação dos territórios para essa luta. É o que vêm fazendo os jovens Munduruku da região do Médio Tapajós para proteger a Terra Indígena Sawré Muybu, no Pará. Eles não apenas retomaram a autodemarcação de suas terras, como criaram métodos revolucionários de proteção e vigilância, que viraram referência para outras iniciativas semelhantes. Tudo devidamente documentado no curta-metragem “Autodemarcação Já!”. 

Aldira Akai, Beka Saw e Rilcelia Akay, do Coletivo Audiovisual de Mulheres Munduruku Daje Kapap Eypi, fizeram um registro da atuação dos indígenas de seu povo para percorrer e monitorar sua terra ancestral, desde a autodemarcação do território – um trabalho que começou em 2018 –, com placas de sinalização, até o trabalho constante de inspeção para expulsar invasores e desmatadores. O curta mostra como a junção das tecnologias de monitoramento e audiovisual podem contribuir para a luta dos Munduruku, e destaca a importância da demarcação para a proteção dos direitos e do bem viver dos povos indígenas. Não à tôa, a demarcação dos territórios é o tema central do ATL deste ano, que defende que, ‘sem demarcação, não há democracia’.

A defesa territorial também é o objetivo dos jovens indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, que, armados não mais apenas com arcos e flechas, mas com GPS, drones e câmeras, ajudam a proteger suas terras ancestrais de invasores. A luta dos Uru-Eu-Wau-Wau em defesa das suas terras ganhou o mundo por meio do documentário “O Território” (2022). Coproduzido pela jovem liderança indígena brasileira Txai Suruí e a National Geographic, o filme foi premiado em alguns dos principais festivais de cinema, como o Sundance, e hoje é exibido na plataforma de streaming Disney+. 

E não para por aí: da viagem em realidade virtual conduzida pela cacica Raquel Tupinambá, que guia o espectador por entre as florestas e rios da região do Tapajós na obra “Amazônia Viva” – ganhadora do prêmio de melhor filme no Festival Planeta, em Barcelona, este ano –, aos conflitos de terra envolvendo Guarani Kaiowá e fazendeiros em Mato Grosso do Sul, pano de fundo do premiado documentário “Vento na Fronteira”, a assinatura originária está presente.  

Essa nova estratégia de ocupação de espaços é uma das tantas conquistas que alçaram o movimento indígena a este novo patamar, e um instrumento crucial no processo de derrubar preconceitos, fazendo com que todo o mundo possa conhecer a luta dos povos originários através de uma nova lente: a da juventude indígena. Se os caminhos do porvir cabem a essa geração, os primeiros passos anunciam uma jornada promissora rumo a um futuro que, bem nos disseram antes, é ancestral. Olho na terra e na tela.