Quilombo, substantivo feminino

Quilombo, substantivo feminino

Dandara não foi só a mulher de Zumbi, mas também uma grande guerreira, exímia capoeirista, que lutava ao lado dos homens de Palmares e que preferiu se jogar de um precipício a se entregar; e coube a Tereza de Benguela liderar o povo do Quilombo do Quariterê – que acolhia negros e indígenas – quando seu marido, José Piolho, foi morto. Mas essas duas heroínas não são exceções que confirmam uma regra. Na verdade, as mulheres sempre se destacaram – e ainda se destacam – na luta quilombola. Se nem todos sabem é porque, além de racista, o Brasil é um país machista.

Esta semana, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) realiza, em Brasília, o II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas: Resistir para Existir, que terá a luta pelos territórios como um dos pilares dos debates, que reúnem mulheres de todo o país. E não à toa: muitas dessas comunidades quilombolas nasceram como matriarcados. Um exemplo pode ser encontrado bem pertinho da capital federal, o Quilombo de Mesquita. Sua origem remonta ao século 18, quando bandeirantes, em busca de ouro, fundaram a Vila Santa Luzia, em 1746. Quando o vil metal começou a escassear, um tal capitão Paulo Mesquita deu no pé e doou sua fazenda a três mulheres negras alforriadas.

E é aí que o Brasil cabra-macho mostra a sua cara: os nomes das fundadoras se perderam na História. Sabe-se somente que deram origem às famílias Lisboa da Costa, Pereira Braga e Teixeira Magalhães, herdeiras de Mesquita, que ganhou sua certificação de território remanescente quilombola da Fundação Cultural Palmares apenas em 2016. Só que, antes, perdeu boa parte de sua área. Os quilombolas levavam seus bois para pastar onde hoje fica a Esplanada dos Ministérios; e, assim como foi a mão de obra negra que carregou esse país nas costas por mais de 300 anos, ela também ajudou a erguer sua nova capital.

Foram moradores de Mesquita que, por exemplo, construíram o chamado Catetinho, feito especialmente para que Juscelino Kubitschek visse as obras de perto. A comida do presidente bossa nova e dos candangos saía de suas plantações e cozinhas, e eles também construíram a primeira hidrelétrica de Brasília, Saia Velha, em 1958. É claro que este trabalho nunca teve o reconhecimento merecido. Ao contrário, continuam a comer sua comunidade pelas bordas. O olho do homem branco é grande e a especulação imobiliária avança sobre Mesquita, para construírem condomínios de luxo. Ironicamente, dois desses olhos grandes são de um ex-presidente, José Sarney, sócio da empresa Divitex Pericumã.

O primeiro encontro nacional dessas guerreiras aconteceu em 2012 e, no ano seguinte, foi criado o Coletivo de Mulheres Quilombolas da CONAQ. Assim como aconteceu no movimento indígena, a força feminina tem sido fundamental nos avanços conquistados pelos quilombolas. Este ano, o evento terá como principal objetivo justamente fortalecer a luta pelos direitos da população quilombola no país, para que abusos e ameaças que a população de Mesquita vem sofrendo ao longo dos séculos virem, definitivamente, coisa do passado. Vivemos um momento em que os quilombolas estão presentes no Executivo, ocupando cargos em ministérios. Mas ainda há muito a ser feito.

A começar pela regularização fundiária: menos de 5% dos quilombos do país são titulados. Segundo um levantamento da ONG Terra de Direitos, caso seja mantida a velocidade atual de regularização de quilombos, só daqui a 2.188 anos os 1.802 processos em andamento no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) serão concluídos. E, além da questão territorial, há outra, essa de vida ou de morte. Segundo o Atlas da Violência, numa edição especial de 2019 sobre a mulher, 66% das vítimas de feminicídios no Brasil eram negras. Elas são maioria quando se trata de brutalidade e minoria quando se fala de representatividade nos espaços de poder e decisão política. 

Não basta reconhecer que a luta das mulheres quilombolas é justa e urgente, dado que é óbvio. Precisamos todos nos juntar a elas, independentemente do gênero ou da cor da pele. Além das razões humanitárias, que deveriam bastar, é uma questão que diz respeito ao nosso futuro. Atualmente, há 148 quilombos titulados Amazônia Legal, onde vivem 11.754 famílias. O desmatamento é seu vizinho próximo, mas nunca entrou neles nos últimos 13 anos. Façamos como Dandara: vamos dar um rabo de arraia na opressão.

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Um ano sem Bruno Pereira e Dom Phillips

Um ano sem Bruno Pereira e Dom Phillips

Fazer justiça a Bruno e Dom não é apenas punir os responsáveis por suas mortes. Não aprovar o marco temporal é, também, honrar a memória deles.

Por Beatriz Matos e Alessandra Sampaio*

Completamos um ano sem Bruno e sem Dom. São 365 dias sem o aconchego de seus abraços, sem as conversas confidentes, sem a vida compartilhada. Para os filhos, são 8.760 horas sem o canto de Bruno que embalava seu ninar, sem o seu “colo grandão”, sem as tantas plantas que ele ensinava a nomear e cultivar. Para os amigos, são 52 semanas sem as suas gargalhadas, sem seus conselhos precisos, sem as mãos estendidas, sem o ombro acolhedor. Perdemos muito e perdemos todos. Além de nós, foi o mundo que perdeu dois grandes defensores dos direitos humanos, dois grandes defensores da floresta, dois grandes defensores do direito à diversidade, pois lutavam pelo direito indígena ao usufruto exclusivo das terras tradicionais.

Neste longo ano, vivemos de tudo que vocês possam imaginar. Vimos o ex-presidente da República vilipendiar as memórias de nossos entes queridos, sugerindo seu envolvimento com o tráfico de drogas, vimos o ex-vice-presidente da República afirmar que eles estavam fazendo mal a pobres trabalhadores ribeirinhos, vimos o advogado de defesa dos assassinos construir uma narrativa repugnante que tenta transformar Bruno em vilão e Dom em aventureiro, tal qual fez, este mesmo advogado, com a memória da irmã Dorothy Stang. Mas vimos também muita solidariedade vinda de todos os cantos do planeta, de pessoas que compartilham desse amor pela floresta e desse amor pela autonomia dos povos originários. Vimos os indígenas realizarem as buscas pelos corpos quando o Estado desdenhou da urgência em procurá-los, vimos grandes artistas cantarem em memória de nossos amores e vimos jornalistas comprometidos com a verdade dos fatos para rebater tantas mentiras disseminadas.

Hoje, depois de tanta dor e sofrimento, nós seguimos fortalecidas com a luta de Bruno e de Dom. E, na esteira da luta deles por um mundo mais justo, por um planeta mais vivo e por uma sociedade mais diversa, nós acompanhamos, atentas, a dois grandes julgamentos que, para nós, dizem respeito a essa luta: o julgamento pela condenação dos culpados de suas mortes e o julgamento sobre a instituição de um marco temporal de ocupação para as terras indígenas. O resultado de ambos os casos nos dirá o que, de fato, o Brasil pensa sobre os defensores da floresta e sobre as garantias constitucionais dos direitos territoriais indígenas. 

Estes dois julgamentos dizem respeito à quantidade de preocupação que o Brasil deposita na proteção do meio ambiente. São indissociáveis. O Brasil, infelizmente, ainda figura entre os países com taxas preocupantes de desmatamento e entre os países que mais matam defensores de direitos humanos, dentre os quais estão muitos indígenas. Precisamos urgentemente sair deste ranking nefasto. Isso somente ocorrerá se nos unirmos em torno deste ideal, que deve ser de todos nós. Garantir os direitos indígenas às terras que eles tradicionalmente ocupam é, a um só tempo, defender a nossa Constituição, a nossa Democracia e o nosso futuro no planeta.

Fazer justiça a Bruno e Dom não é apenas punir os responsáveis por suas mortes, mas, também, assegurar que os indígenas tenham garantidos e efetivados os seus direitos territoriais constitucionais. Com o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, o STF terá a oportunidade de nos dizer que Bruno e Dom não morreram em vão. Não aprovar um marco temporal de ocupação é, também, honrar a memória deles.

Beatriz Matos – esposa do indigenista Bruno Pereira, é antropóloga e Diretora de Proteção Territorial e Povos Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas

Alessandra Sampaio, esposa do jornalista britânico Dom Phillips, trabalha para concluir o livro que ele estava escrevendo: “Como Salvar a Amazônia”

Querem arrancar nosso coração

Querem arrancar nosso coração

Por Alessandra Korap e Juarez Saw Munduruku*

 

Pariwat, o nome que nós, Munduruku, usamos para chamar o homem branco, também significa inimigo. Não queríamos que fosse assim. Os livros de História registram que o primeiro contato entre nós aconteceu em 1742. O encontro não foi amistoso e, desde então, lutamos para nos defender. Como somos valentes, o invasor firmou um acordo de paz conosco ainda no fim daquele século. Mas ele nunca foi cumprido, como vários seguintes. Agora, corremos o risco de ser atropelados pela EF-170, a Ferrogrão.

O Pariwat também se sentia nosso dono. Isso só começou a mudar a partir de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. Nela, garantimos nossos direitos territoriais e o de praticarmos nossos costumes e tradições. Além disso, foi estabelecido um prazo de cinco anos para que todas as terras indígenas estivessem demarcadas. Porém, a Sawre Ba’pim, que seria diretamente impactada pela ferrovia, só foi reconhecida em fevereiro deste ano, pela primeira indígena presidente da Funai, Joênia Wapichana.

A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) nos assegura o direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado em caso de obras em nossas terras. Em 2014 criamos o Protocolo de Consulta Munduruku, porque nenhum de nós toma sozinho uma decisão que diga respeito a todos: cada morador de nossas 155 aldeias tem direito a opinar. Apesar disso, no ano seguinte inauguraram o Complexo Hidrelétrico de Teles Pires, num importante afluente do Tapajós, contra a nossa vontade.

As barragens do monstrengo fizeram submergir a corredeira das Sete Quedas, um lugar sagrado para nós. Lá viviam a Mãe dos Peixes, o músico Karupi e os espíritos de nossos antepassados. Já imaginaram se transformassem a Basílica de Nossa Senhora Aparecida num shopping center? A área inundada também servia de local para a desova de peixes como pintados, pacus, pirararas e matrinxãs. Os pajés falam com nossos ancestrais, mas quem consulta as árvores e os bichos? Nós, indígenas, fazemos parte da floresta, do seu corpo, e ela faz parte de nós. É o nosso coração.

A Ferrogrão ligaria a cidade de Sinop, em Mato Grosso, ao porto de Miritituba, no Pará. Ela serviria apenas para escoamento de soja, que depois seguiria em barcaças gigantes pelo Tapajós, numa hidrovia. Para a construção da ferrovia, seria preciso alterar os limites do Parque Nacional Jamanxim, que é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. A Lei 13.452 foi sancionada em 2017 especialmente para isso. Calcula-se que 2 mil km² de mata seriam destruídos de início. Mais duas Florestas Nacionais serão impactadas, além do território Sawre Muybu, as reservas Praia do índio e Praia do Mangue, o próprio rio e os povos Kayapó e Panará. O desmatamento impediria o Brasil de cumprir seus compromissos ambientais internacionais. E isso seria só o começo.

A estrada de ferro pode ser o fim da linha para a Amazônia. Seus 993 km de trilhos abririam caminho para toda sorte de invasor, como grileiros, traficantes, garimpeiros e madeireiros, que levariam mais insegurança e violência aos que vivem na floresta. E a Lei 13.452 pode servir de precedente para outros empreendimentos. Se construída, a Ferrogrão trará a reboque a necessidade de novos portos, hidrovias e rodovias, uma infraestrutura que exigiria mais energia. A desculpa perfeita para tirar do papel a Hidrelétrica de São Luiz, no Tapajós, o último afluente da margem direita do Amazonas sem barragens. Além da locomotiva, precisamos nos preocupar com os vagões. 

O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes acolheu a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6553 em março de 2021 e suspendeu os efeitos da Lei 13.452. Desde então, o caso aguarda julgamento. A presidente Rosa Weber agendou a votação em plenário para 31 de maio. Falar da importância da floresta – e dos povos que vivem nela – para o planeta é chover no molhado. Este reconhecimento é internacional: fomos em abril aos EUA buscar o Prêmio Goldman de Meio Ambiente 2023, o mais importante do mundo. Não deixem o Pariwat arrancar o coração Munduruku. Sejam nossos Okipit: irmãos.

*Alessandra Korap é ativista do povo Munduruku e, em 2023, ganhou o Prêmio Goldman de Meio Ambiente; 

*Juarez Saw Munduruku é cacique da aldeia Sawre Muybu, no Pará

 

Cheiro de Belo Monte no ar

Cheiro de Belo Monte no ar

Há uma grande diferença entre ambição e cobiça: a primeira pode ser uma coisa boa; a segunda, jamais. Exemplos práticos: o atual governo tem a ambição de transformar o Brasil na maior potência ambiental de fato; porém, o mesmo grupo político que hoje está no poder foi movido pela cobiça quando construiu Belo Monte. A hidrelétrica, que gera mais prejuízos que energia, está lá, desde 2016, como lição a ser aprendida – para que erro igual não seja repetido. Por isso, causa preocupação a declaração do presidente Lula de que “se explorar esse petróleo tiver problema para a Amazônia, certamente não será explorado, mas eu acho difícil, porque é a 530 km de distância da Amazônia”. Esses “mas” costumam ser prenúncio de más notícias.

O Ibama negou a autorização, porque os senões são muitos. Para começar, a região já tem cerca de 100 poços perfurados e não se encontrou nada que justificasse novas explorações – vários deles, por sinal, foram fechados por causa de acidentes. Nesse quesito particular, o Brasil tem um currículo nada invejável: foram nove desastres do tipo de 2011 a 2022, quase um por ano. Ficar a “530 km de distância da Amazônia” não é nenhuma vantagem, pois a Petrobras levaria quase dois dias para chegar ao local em caso de vazamento. Além disso, a empresa não está habituada com as correntes marítimas locais, que são bem diferentes das bacias de Campos (RJ) e Santos (SP). Mas o argumento definitivo é que se estima que a produção na região seria pelo menos três vezes menor que as das reservas marinhas do Sudeste. Não tem um cheirinho de Belo Monte no ar?

E esse odor desagradável se espalha floresta adentro. Lula se comprometeu a zerar o desmatamento no país até 2030. Mas, até lá, muito verde pode vir abaixo. Um desses projetos, asfaltar a BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, serviria de tapete vermelho para toda sorte de malfeitor: invasores de terras protegidas, traficantes, grileiros, mineradoras e garimpeiros ilegais, milicianos, contrabandistas de madeira etc. A rodovia, que tem 885 km de extensão, pode impactar 69 terras indígenas – onde vivem 18 etnias e povos isolados –, 41 unidades de conservação e a última grande área contínua de mata virgem da Amazônia brasileira. A estrada é uma ideia de jerico da ditadura, reabilitada pelo governo anterior; isso já seria motivo de sobra para ser descartada pelo atual. 

O traçado da BR-319 já existe, mas só um pequeno trecho, em condições precárias, está aberto. O impasse recai sobre o asfaltamento do chamado “trecho do meio”, que conectaria os dois extremos da rodovia – do Amazonas a Rondônia. Ainda assim, a estrada serve de porteira aberta para criminosos em geral. Bastou Bolsonaro anunciar que ela receberia asfalto novo para que o desmatamento disparasse: o número vinha caindo desde 2001. Em 2020, foi de 216 km²; em 2021, deu um triplo-carpado para 453 km²; no ano passado, chegou a 480 km². A estrada era inviável de nascença, mais um elefante branco, como a usina no Rio Xingu: “A BR-319 não tinha nenhum raciocínio econômico. Era tudo paranoia de que a Amazônia seria tomada pela cobiça internacional”, diz o biólogo Philip M. Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). 

Esse delírio pode impactar uma área de 39 mil km² (maior que Alemanha e Holanda juntas) e bagunçar mais os regimes de chuva naquelas regiões. Em 2021, 15% dos 10,3 km² devastados em toda Amazônia Legal aconteceram na área e a estrada sequer se presta ao transporte de cargas. “Se for asfaltada, a rodovia BR-319 irá beneficiar até mesmo quadrilhas de roubo de carros. Além disso, as estradas vicinais ilegais ao longo da rodovia estão abrigando vários tipos de atividades criminosas, como grilagem de terras, desmatamento ilegal e garimpo”, diz Lucas Ferrante, também biólogo do Inpa. Uma pesquisa de 2020, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), estima que, com o asfaltamento, as emissões de gases do efeito estufa quadruplicariam na região nos próximos 30 anos, chegando a 8 bilhões de toneladas, o quádruplo do que o país emite em um ano. 

A EF-170, vulgo Ferrogrão, também fede um bocado. A ferrovia, que ligaria Sinop (MT) ao porto de Miritituba (PA), serviria somente para escoar a soja do Centro-Oeste; no fim da linha, a produção seguiria por uma hidrovia no Rio Tapajós. Para construí-la, seria necessário tirar um naco do Parque Nacional Jamanxim, que é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. Em 2017, o presidente Michel Temer sancionou a Lei 13.452 exclusivamente para este fim. Calcula-se que 2 mil km² de verde sumiriam de cara. 

O pior é que a lei, que está no centro do julgamento prestes a ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pode criar jurisprudência para outras obras. E a estrada de ferro abriria caminho para outros portos, hidrovias e rodovias. Essa infraestrutura exigiria mais energia; e aí quem garante que novas hidrelétricas também não seriam construídas? Os 993 km da Ferrogrão ainda impactariam mais duas Florestas Nacionais (Flonas) e os povos Kayapó, Munduruku e Panará – que não tiveram respeitado seu direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado. É ou não é puro suco de Belo Monte? Depois disso tudo, com que moral o Brasil se sentaria à mesa de negociação climática? Precisamos relembrar ao governo que o caminho da cobiça não rende só mau cheiro.

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O dia (maldito) que não terminou

O dia (maldito) que não terminou

Aydano André Motta

Caiu na segunda-feira – dia consagrado à mudança, à reforma, ao reinício – o 14 de maio de 1888, quando o Brasil amanheceu sob nova lei, que, teoricamente, tornou ilegal a existência de escravizados. Então regente do país imperial, a princesa Isabel escolheu a véspera (domingo) para sancionar o par de artigos lacônicos, em verdade rasos: 

“Art 1º: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.

“Art 2º: Revogam-se as disposições em contrário”.

Como se diria mais de um século depois, #sóquenão. A olho nu parecia o fim da chaga tão longeva como cruel, mas na verdade foi apenas a transformação do 14 de maio no dia que jamais terminou. Está aí até hoje, congelado no calendário brasileiro, para forjar a terra do racismo, do martírio dos corpos negros.

Naquele domingo de outono, 135 anos atrás, mais de 750 mil escravizados ganharam a liberdade. Quase a população do então Estado do Rio, ou 50% a mais do que os 522 mil habitantes do então Distrito Federal. A multidão de africanos sequestrados pelo tráfico negreiro e seus descendentes foi lançada à própria sorte, sem qualquer contrapartida social. 

Paralelamente, os governantes empenharam-se em incentivar a imigração de europeus, num projeto de embranquecimento da sociedade. Havia oferta de trabalho para os de pele branca, enquanto os ex-escravizados viravam alvo da lei da vadiagem, criada três anos depois. Quem não tinha emprego era perseguido pela polícia, início da marginalização do povo preto, que perdura até hoje.

O Brasil se aferrou intencionalmente a uma subcidadania, “que tem cor e sexo”, atesta o professor Hélio Santos, um de nossos maiores pensadores negros, presidente do Conselho Deliberativo da Oxfam. Ele se refere às mulheres negras, andar mais baixo da injustiça social. “A desigualdade aqui é uma decisão política e perpassa todos os governos”, conclui o intelectual, militante pioneiro em ações e movimentos para reparação do preconceito e da intolerância.

Eis aí, aliás, a palavra que precisa ser dita e repetida: reparação. Mais do que tratados com dignidade, os descendentes de escravizados merecem ser indenizados por toda a iniquidade sofrida pelos seus antepassados – exatamente como aconteceu com os judeus no Holocausto. O passivo dos 354 anos de escravidão – e do interminável 14 de maio – é gigantesco. 

Mas quando a assinatura da princesa ainda estava fresca, naturalizou-se a cegueira. A história oficial tentou apagar personagens fundamentais para a conquista, muito além da burocracia legal – Luís Gama, Luísa Mahin, Zumbi dos Palmares, os irmãos Rebouças, Maria Firmina dos Reis e muitos outros demoraram décadas para terem sua luta reconhecida. 

No começo, o 13 de maio virou feriado (só deixou de ser em 1930, pela óbvia falta de razões para comemoração) e os negros despejados em cortiços e favelas, vítimas de seguidos processos de higienização. Sem emprego nem amparo, foram postos à margem da sociedade. 

Com as forças de repressão vigilantes, não havia sequer margem para reação. Somente em 1931 (mais de 40 anos depois) surgiu em São Paulo a Frente Negra Brasileira, que teve núcleos em todo o país, oferecendo assistência jurídica, social e, principalmente, educacional, para fornecer condições de inserção no mercado de trabalho dominado pelos brancos. 

E só duas décadas atrás, às portas do século 21, as cotas educacionais começaram a ser implantadas. Os beneficiados, aliás, estão entre os melhores alunos – apesar de perseguidos por inclemente preconceito. De qualquer jeito, as ações de reparação são contra-ataque tímido, num cenário ainda muito hostil. Entre incontáveis exemplos, basta observar qualquer presídio brasileiro: a quarta maior população carcerária do mundo (e contando) tem uma cor só. 

Até chegar a 2023, quando, em pouco mais de cinco meses, 1.202 pessoas foram encontradas trabalhando em condições análogas à escravidão – a última delas, uma senhora de 63 anos que, por 47, serviu três gerações de uma família, em condições degradantes.

Como ensinam Lazzo Matumbi e Jorge Portugal em “14 de maio”, samba-reggae educativo sobre a saga sem fim de um país:

“No dia 14 de maio, eu saí por aí

Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir

Levando a senzala na alma, eu subi a favela

Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia

Um dia com fome, no outro sem o que comer

Sem nome, sem identidade, sem fotografia

O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver”

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