Jardineiros do Éden

Jardineiros do Éden

O caraíu zu – como os Guajajara chamam o homem branco – comparou esta terra ao Jardim do Éden de suas crenças. Em nenhum momento, porém, se questionou sobre quem seriam os jardineiros daquele paraíso. Quando desembarcaram aqui, as grandes cidades europeias se assemelhavam a lixões, mas foram necessários mais de 500 anos para que se dessem conta que a terra exuberante que chamaram de Brasil não existiria sem os brasileiros originais: os povos indígenas. Depois de cinco séculos de luta e resistência, além de ganharem ministério próprio, eles agora estão à frente da Funai. Vão cuidar não só de seus interesses – como acontece na democracia, não por acaso tema do 19º Acampamento Terra Livre (ATL) –, mas também do nosso futuro.

Como santo de casa não faz milagre, a agora ministra Sonia Guajajara e outras guerreiras, tão dignas de admiração quanto ela, bateram muita perna mundo afora para convencer os demais terráqueos de que o seu modo de vida é vital para a sobrevivência de nossa espécie. Se o presidente voltou com R$ 500 milhões para o Fundo Amazônia da coroação de Charles III, o novo monarca do Reino Unido, não foi por causa de sua bela gravata, mas graças ao trabalho prévio dessas mulheres fantásticas. Democracia, para os povos originários, é ter o seu direito à terra garantido. É o principal propósito do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da Funai – presidida pela não menos admirável Joênia Wapichana. Não vai ser fácil. É uma maratona a ser corrida em tempo de 100 metros rasos.

Não se recupera cinco séculos de atraso em quatro anos; por isso, os trabalhos começaram antes mesmo de o novo governo assumir. No último dia 12 de dezembro, o Grupo de Trabalho Povos Indígenas, entregou ao presidente eleito um documento que recomendava a demarcação urgente de 13 terras, sendo cinco na maior floresta tropical do mundo, importantíssima para a regulação do clima no planeta. O relatório registra mais 66 territórios, 31 deles na Amazônia Legal, em diferentes etapas de processo. No último dia do ATL, Lula decretou a homologação de seis terras indígenas (TIs), as primeiras desde 2018.

 “Eu quero não deixar nenhuma terra indígena que não seja demarcada nesse meu mandato de quatro anos. Esse é um compromisso que eu tenho e que eu fiz com vocês antes da campanha”, disse o presidente na ocasião. É uma promessa difícil de ser cumprida, lamentavelmente. Uma TI só é demarcada definitivamente depois de passar por etapas de estudo, delimitação, declaração, homologação e regularização. O processo é muito sério, demorado, burocrático, que se assemelha a outro tipo de corrida: os 3 mil metros com obstáculos. E eles são muitos.

O MPI começou sua gestão desarmando uma bomba-relógio: a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami. Bolsonaro escancarou a porteira para a entrada do garimpo ilegal no território daquele povo, um dos mais vulneráveis do país. Os garimpeiros que invadiram a TIY não são mais aqueles poucos aventureiros miseráveis que arriscavam suas vidas mata adentro com facão e bateia, como quis nos fazer acreditar o ex-presidente: a exploração de ouro agora é feita por organizações criminosas. São bandidos de altíssima periculosidade, impiedosos, armados até os dentes, e movidos apenas a dinheiro – não há ideologia envolvida.

No Congresso, desencavaram o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que transfere do Executivo para o Legislativo a competência de demarcar TIs. Seu autor, Homero Pereira, ex-deputado e ex-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso, morreu em 2013. A bancada ruralista – que, curiosamente, tem integrantes que nunca plantaram nem feijão em algodão ou sequer são donos de terras – perdeu representantes no Congresso (eram 552 na gestão passada e hoje são 347), mas ainda tem muita influência. É uma ameaça que não deve ser desprezada, principalmente porque temos o Parlamento mais conservador – que só não se preocupa em conservar o meio ambiente – das últimas legislaturas.

Porém, a maior ameaça paira no Supremo Tribunal Federal (STF). A presidente Rosa Weber marcou para 7 de junho a retomada do julgamento da famigerada tese do “marco temporal”, paralisada desde setembro de 2021. Os ministros estão divididos, mas o próprio Bolsonaro disse que dois deles são seus bonecos de ventríloquos – e um deles, Nunes Marques, já votou favoravelmente. O julgamento está em 1 a 1, com o voto contrário de Edson Fachin. O “marco temporal” defende que somente os indígenas que estivessem de posse de suas terras no dia da promulgação da atual Constituição, 5 de outubro de 1988, podem reivindicá-las, mesmo que tenham sido expulsos sob a mira de armas.

Juristas de renome, como Dalmo Dallari (1931-2022), há anos apontavam sua inconstitucionalidade: “Está na Constituição que o índio tem direito a terra de ocupação tradicional. A Constituição não exige que se estivesse fisicamente naquele lugar, naquele dia”, afirmou, num seminário, em 2015. Segundo ele, seria um absurdo exigir que indígenas resistissem aos invasores por meios legais ou usando a força: “Até pouco tempo, o índio não tinha o direito de entrar com ação judicial. É preciso também ressaltar que a possibilidade de resistência dos índios na terra é mínima, é muito pequena. Há muitos casos em que os índios tentaram resistir e foram assassinados, porque muitos dos invasores de terras indígenas usam capangas armados para defender invasões”.

Na mesma ocasião, o professor José Afonso da Silva, um dos maiores constitucionalistas de nossa história, argumentou que o “marco temporal” não leva em consideração conquistas anteriores a 1988: documentos do período colonial já reconheciam os direitos dos indígenas sobre as terras que ocupavam. A Constituição de 1934 também os legitimava: “Deslocar o marco para 1988 e abandonar o início efetivo do reconhecimento constitucional, que é de 1934, é realmente deturpar os conceitos”.

Os ministros do STF têm em suas mãos uma decisão que pode não só influenciar o destino dos indígenas, como também de toda a Humanidade. Que tenham isso em mente na hora de votar. São pessoas cultas e bem-informadas. Os povos originários estão fazendo a sua parte, mas não podem ganhar essa corrida, que é de revezamento, sozinhos. O Brasil não é apenas uma porção de terra, somos todos nós, brasileiros – e vai chegar a hora de cada um carregar o bastão. Somente unidos podemos transformá-lo no Éden de todos os povos.

 

Saiba mais:

Terras indígenas da Amazônia aguardam há mais de 20 anos por demarcação

Sem homologação, sem proteção

Segundo Juristas, marco temporal de 1988 para terras indígenas é inconstitucional

Conheça o Vocabulário Guajajara

‘Play’ no futuro indígena

‘Play’ no futuro indígena

Por Vinícius Leal 

Uma câmera na mão e 305 ideias na cabeça, que serão contadas em 274 línguas diferentes. Este Acampamento Terra Livre (ATL) não vai ser igual àqueles 18 que passaram: agora, os povos indígenas fazem parte do governo. Com lideranças como Sonia Guajajara, Joênia Wapichana, Weibe Tapeba e Célia Xakriabá, eles têm o seu próprio ministério, o comando da Funai e da Sesai e uma representação forte no Congresso. Depois de 523 anos conquistaram, finalmente, o direito de escolherem seus papéis. Caberá às novas gerações não só registrá-la e contá-la ao mundo, como garantir que ela não seja passageira.

Em meio a tantas conquistas e diante de velhos (e novos) desafios, qual será o futuro do movimento indígena? A resposta está no presente, representado por sua juventude, parte da construção deste novo hoje e protagonista do amanhã. Usando as lentes de seus celulares, câmeras e drones esses jovens vêm revolucionando e reinventando o movimento indígena, não apenas ao se apropriarem de ferramentas das novas tecnologias, mas também se apoderando do direito de narrar suas próprias histórias, culturas e reivindicações, antes filtradas por olhares estrangeiros. E essa produção vem circulando mundo afora.

Uma nova turma de cineastas, roteiristas, fotógrafos, cinegrafistas, jornalistas, produtores culturais, artistas e, acima de tudo, ativistas, aposta no audiovisual e nas ferramentas de monitoramento territorial como instrumentos para alçar, definitivamente, os povos originários a protagonistas do debate político, socioeconômico e climático global. Afinal, eles são os guardiões de 80% da biodiversidade da Terra. São novas formas de lutar, com o olho no futuro e os pés na ancestralidade. O caminhar dessa luta será determinante não apenas para as próximas gerações de indígenas, mas para todos os seres vivos do planeta.

As novas tecnologias e a determinação dessa juventude têm ajudado de forma decisiva a ecoar pelo mundo afora a importância da luta pela proteção dos direitos e dos modos de vida dos povos tradicionais, e o papel da demarcação dos territórios para essa luta. É o que vêm fazendo os jovens Munduruku da região do Médio Tapajós para proteger a Terra Indígena Sawré Muybu, no Pará. Eles não apenas retomaram a autodemarcação de suas terras, como criaram métodos revolucionários de proteção e vigilância, que viraram referência para outras iniciativas semelhantes. Tudo devidamente documentado no curta-metragem “Autodemarcação Já!”. 

Aldira Akai, Beka Saw e Rilcelia Akay, do Coletivo Audiovisual de Mulheres Munduruku Daje Kapap Eypi, fizeram um registro da atuação dos indígenas de seu povo para percorrer e monitorar sua terra ancestral, desde a autodemarcação do território – um trabalho que começou em 2018 –, com placas de sinalização, até o trabalho constante de inspeção para expulsar invasores e desmatadores. O curta mostra como a junção das tecnologias de monitoramento e audiovisual podem contribuir para a luta dos Munduruku, e destaca a importância da demarcação para a proteção dos direitos e do bem viver dos povos indígenas. Não à tôa, a demarcação dos territórios é o tema central do ATL deste ano, que defende que, ‘sem demarcação, não há democracia’.

A defesa territorial também é o objetivo dos jovens indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, que, armados não mais apenas com arcos e flechas, mas com GPS, drones e câmeras, ajudam a proteger suas terras ancestrais de invasores. A luta dos Uru-Eu-Wau-Wau em defesa das suas terras ganhou o mundo por meio do documentário “O Território” (2022). Coproduzido pela jovem liderança indígena brasileira Txai Suruí e a National Geographic, o filme foi premiado em alguns dos principais festivais de cinema, como o Sundance, e hoje é exibido na plataforma de streaming Disney+. 

E não para por aí: da viagem em realidade virtual conduzida pela cacica Raquel Tupinambá, que guia o espectador por entre as florestas e rios da região do Tapajós na obra “Amazônia Viva” – ganhadora do prêmio de melhor filme no Festival Planeta, em Barcelona, este ano –, aos conflitos de terra envolvendo Guarani Kaiowá e fazendeiros em Mato Grosso do Sul, pano de fundo do premiado documentário “Vento na Fronteira”, a assinatura originária está presente.  

Essa nova estratégia de ocupação de espaços é uma das tantas conquistas que alçaram o movimento indígena a este novo patamar, e um instrumento crucial no processo de derrubar preconceitos, fazendo com que todo o mundo possa conhecer a luta dos povos originários através de uma nova lente: a da juventude indígena. Se os caminhos do porvir cabem a essa geração, os primeiros passos anunciam uma jornada promissora rumo a um futuro que, bem nos disseram antes, é ancestral. Olho na terra e na tela.

Movimento indígena pelo bem viver do planeta

Movimento indígena pelo bem viver do planeta

Por Eliane Xunakalo*

Estamos no abril indígena, mês que marca a luta dos povos originários. Este ano, com nossa imensa diversidade – somos 305 povos no Brasil, falantes de 274 línguas – representada nos principais espaços de poder do país. Com 86 territórios indígenas, Mato Grosso é um pequeno reduto dessa diversidade: aqui vivem 43 povos diferentes, que representam nada menos que 14% de todas as etnias do país. 

Essa diversidade se reflete também na sociedade. Nossos traços, nossos cabelos, nosso sangue estão presentes em cada cidadão mato-grossense, para não falar da vasta herança cultural. Apesar disso, Mato Grosso não elegeu indígenas para o parlamento e pouco tem contribuído com a principal luta de seus povos originários: o bem viver. E, por bem viver, a gente entende a proteção das florestas, dos rios, da biodiversidade e da nossa cultura; a proteção do nosso território. 

Quando alcançarmos nosso bem viver, o planeta estará salvo. Afinal, os povos indígenas são guardiões de 80% da biodiversidade do planeta, apesar de serem 5% da população mundial. Em Mato Grosso a gente também vem tentando defender o nosso bem viver, por uma questão de sobrevivência – nossa e do planeta. Uma análise do ICV com base em dados do Prodes, mostrou que, entre agosto de 2021 e julho de 2022, menos de 3% do desmatamento no Cerrado aconteceram em terras indígenas, o que reforça aquilo que todos já sabemos: que reconhecer e proteger territórios tradicionais é a melhor estratégia contra crimes ambientais e a favor do clima do planeta.  

Mas manter essa proteção não tem sido nada fácil, ainda mais quando não se tem apoio dos governos e parlamentos. Nos três primeiros meses de 2023, Mato Grosso foi o estado que mais desmatou a Amazônia, contribuindo e muito para a devastação no bioma atingir o segundo maior índice desde 2015. Sozinho, o estado destruiu 89% do que Amazonas e Pará desmataram juntos. O cenário afasta Mato Grosso do compromisso assumido em 2015, na Conferência do Clima, em Paris, de reduzir o desmatamento para 571 km² por ano até 2030: só nos três primeiros meses de 2023 foram desmatados 311 km². 

Nos últimos anos, a cobiça por nossas riquezas só cresceu, enquanto os mecanismos de garantia de nossos direitos foram, cada vez mais, fragilizados. O exemplo mais recente é o Projeto de Lei Complementar (PLC) 17, de 2023, em tramitação na Assembleia Legislativa, que exclui a representação indígenas no Conselho Estadual de Educação, medida considerada inconstitucional pela Defensoria Pública da União (DPU).   

O PLC 17 é o caso mais recente, mas está longe de ser a única ameaça aos povos de Mato Grosso. Direitos indígenas são atropelados por empreendimentos minerários, agropecuários e hidrelétricos, que avançam mesmo sem consulta prévia e apesar dos impactos. É o que vem acontecendo na sub-bacia do Juruena, onde vivem 20 povos indígenas, e que ajuda a dar vida ao majestoso Tapajós. Um estudo recente da OPAN revelou que, dos 167 projetos de empreendimentos hidrelétricos pensados para a região, 36 são de alto risco, sendo 27 de risco altíssimo por estarem a menos de 5 km de TIs ou comunidades tradicionais. E isso inclui as PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) e CGHs (Centrais Geradoras Hidrelétricas) que, da forma que estão sendo planejadas, geram um impacto enorme na vida dos povos tradicionais. 

Além dos indígenas, existem mais de uma centena de territórios de quilombolas e ribeirinhos que lutam pelos rios em completa invisibilidade. E sabe quem perde com isso? Todo mundo, até quem acha que saiu lucrando.

É por isso que a FEPOIMT decidiu promover o primeiro Acampamento Terra Livre (ATL) de Mato Grosso, com quatro dias de troca de saberes e audiências públicas no centro político e administrativo de Cuiabá: a Praça Ulisses Guimarães. O ATL-MT nasce como a representação da força do movimento indígena e como um espaço de escuta, intercâmbio cultural e diálogo entre todos – indígenas, sociedade em geral, parlamentares e os governos – para debater medidas e projetos que impactam nossos territórios, violam nossos direitos e afetam nossas vidas. 

Estamos levando nossa luta para a praça pública porque vamos precisar de reforços não só nas ruas e redes, mas nos poderes Executivo e Legislativo, para transformar a garantia de direitos em políticas públicas. Precisamos dar visibilidade às questões que afetam os povos indígenas porque, se impacta nossos territórios, cedo ou tarde impactará sua vida também. Quando lutamos por nossas terras ancestrais, lutamos pela Mãe Terra e pelo futuro de todos os seus filhos, sem distinção. 

Por isso, é preciso que todos conheçam nossa diversidade e se reconheçam como parte dela. Esse é o caminho que precisamos tecer para transformar o dissenso, comum a toda diversidade, em um consenso: o bem do planeta para o bem viver de todos os povos. É como nos dizia nossa grande liderança Aritana Yawalapiti: ‘Estivemos semeando e, agora, precisamos regar’.

*Eliane Xunakalo é presidente da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT)

Estética ancestral

Estética ancestral

Por Vinícius Leal

Desde que o Brasil foi ‘des-coberto’ vê-se toda nudez ser castigada sem ter consciência a respeito de quem, de fato, está nu. O ato de existir vem sendo elaborado, até então, em cima de diversos aspectos da vida social: político, econômico, cultural… A moda como expressão da necessidade humana de afirmar sua identidade coloca-se em um local estratégico, uma vez que se situa entre o indivíduo e o meio no qual ele está inserido.

Dessa relação desnudam-se inúmeros sentidos de ser e estar no mundo. O que para a sociedade não-indígena se manifesta como uma identificação com grupos culturais, tendências ou estéticas construídas, para os povos originários é uma afirmação política de resistência em uma sociedade que homogeneiza tudo; é parte de uma relação profunda com seu passado ancestral. Sabe-se de onde vem e isto guia o sentido para onde se quer ir. 

Funciona como um espelho de quem se é. A estética e a arte estão na essência e no âmago da existência dos povos. Por isso são tão verdadeiras. Darcy Ribeiro dizia que toda tecnologia desenvolvida a partir do pensar e do fazer indígena tem um sentido de ser estético e artístico muito forte. Tudo é criado como manifestação da existência indígena. 

Seja a arte plumária dos Kamaiurá, ou os grafismos dos Sateré-Mawé, passando pelo cuidado com os cabelos característico das indígenas Kayapó, até os adornos circulares usados na cabeça  pelos Ashaninka, percebe-se que cada povo expressa sua própria estética e sua arte em uma amplitude de cores e formas, o que torna a moda indígena fundamentalmente diversa, na proporção à variedade de nações e povos existentes no Brasil: 305 para ser mais exato. 

Com a recente e histórica ocupação dos povos originários em inúmeros espaços de poder, seja nas aldeias, nas cidades, na política, nas telas – incluindo as digitais –, nos palcos ou passarelas, a estética e a moda indígenas alcançam um novo patamar de significado para os brancos: seus elementos se transmutam em sinônimo de empoderamento, manifestação política e marca de resistência de um Brasil ancestral.

“Antes, nós tínhamos receio [de usar a moda indígena na cidade] por causa do preconceito. De andar pintado também. Mas, hoje em dia, não”. A estilista e artesã indígena Yrá Tikuna, que vem despontando no mercado da moda do Amazonas para o resto do país, mostra que essa virada de chave é parte de uma história que vem sendo consolidada. 

Após quatro anos de um governo extremamente nocivo aos povos originários, como foi o do ex-presidente Jair Bolsonaro, a retomada desta terra indígena chamada Brasil passa pela comunicação estética que somente a moda pode proporcionar: espalhar uma ideia capaz de ‘reflorestar corações e mentes’, parafraseando Sônia Guajajara, de forma orgânica e coerente com o que se é. 

Os vestidos com mangas esvoaçantes de liberdade da deputada federal Célia Xakriabá; os brincos de penas que se assemelham a flores que adornam o rosto da ativista e influenciadora digital Sâmela Sateré-Mawé; ou as pinturas com tinta natural de jenipapo que desenham o corpo da cantora e compositora Kaê Guajajara em suas apresentações musicais, são ocupação potente destes novos tempos.  

Célia, Sâmela e Kaê carregam consigo texturas, cores e formatos que estão para além da roupa, maquiagem e acessórios. A moda indígena é amuleto que alimenta seu empoderamento. Em seus diferentes espaços de poder, elas fazem do próprio corpo território de expressão artística de poder, política e resistência. E mais: da possibilidade de transformação da realidade a que pertencem. 

 

O Brasil Yanomami: um povo em muitos

O Brasil Yanomami: um povo em muitos

A designação Yanomami carrega consigo a ideia de território da mesma forma que a expressão Amazônia remete a uma imensidão verde que ocupa quase toda a porção Norte do Brasil. Esse imaginário é o máximo que uma sociedade que não se enxerga como parte da natureza consegue materializar. 

Quantas amazônias cabem em um bloco de massa verde que se espalha ao longo de nove estados brasileiros? Quando se fala em Terra Indígena Yanomami compara-se, frequentemente, o tamanho da área – que chega a ser maior que o território de Portugal ou duas vezes o tamanho da Suíça – mas esquece-se que, justamente por essa magnitude, há uma diversidade étnica e linguística não dimensionada. Somos um Brasil que não se dá conta de sua riqueza. E não estamos falando de ouro.

A TI Yanomami (TIY) é a maior área indígena do Brasil, o primeiro território demarcado e uma das mais importantes áreas de floresta contínua do país. Localizada na fronteira com a Venezuela, espalha-se pelos estados de Amazonas e Roraima e abriga povos que ali se articulam desde sempre em trocas, circulação de pessoas, cultivos agrícolas, saberes, narrativas, línguas.  

Por trás do que imaginamos como povo Yanomami está um conjunto de sete subgrupos já identificados: Ŷaroamë, Yanomamö/Yanonami, Yanomami/Yanomam, Yanomae, Yanomama, Sanöma e Ninam ou Yanam (Xiriana e Xirixana). Uma diversidade expressa em uma população de 31.007 indígenas, conforme dados recentes do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kwana.  

Talvez estejamos longe de abarcar a complexidade deste povo que é um e que são muitos, um pequeno Brasil dentro do Brasil. Talvez porque sequer saibamos o que venha a ser o Brasil.  

O povo Yanomami sabe que a terra não é um mero espaço geográfico recheado de minério. Hoje, o território concentra 448 pedidos de requerimentos de todo o tipo junto à Agência Nacional de Mineração (AMN). É a área com maior número de petições. 

A terra Yanomami é uma entidade viva: a Urihi ou terra-floresta é a morada de uma riqueza cultural incalculável, onde vivem falantes de seis línguas e dezesseis dialetos; onde cada comunidade é independente, mas as decisões são tomadas por consenso, frequentemente após longos debates. Onde todos têm o direito à palavra e onde vivem ainda os Ye’kwana, grupo pertencente a outra família linguística, a karíb. Onde a diferença não representa desigualdade. 

Essa imagem sequer consegue ser materializada em nossa sociedade em sua completa profundidade. Dessa fina teia de respeito e convivência, estabeleceu-se um modelo de governança próprio. 

Em seu arranjo identitário, os Yanomami se organizam em sete associações próprias, além de uma organização Ye’kwana, que se mostraram fundamentais como articuladoras de suas regiões de abrangência para a construção do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA). Desse processo nasceu o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, responsável pela tomada de decisão em toda a TIY, reunindo lideranças comunitárias, os perioma – os mais experientes – e xamãs. 

A trajetória de construção do PGTA deu origem também ao Protocolo de Consulta dos Povos Yanomami e Ye’kwana, publicado em 2019. Uma jornada que afirma a habilidade e o refinamento da governança yanomami em meio à sua complexidade logística, linguística, cultural e territorial. Um esforço que começou em 2015 e terminou em 2018.   

“A organização política yanomami e ye’kwana funciona como uma malha, em que as comunidades são nós e se interconectam diretamente apenas com os nós mais próximos. A percepção local sobre toda a extensão dessa malha só se faz necessária na relação com os não indígenas, de onde surge o desafio de ampliar a unidade de governança do nível local para toda a TIY”, diz trecho do artigo da bióloga Marina A. R. de Mattos Vieira, doutoranda em Ciência Política da Unicamp, que explica essa complexidade para que os napëpë – brancos, o outro ou inimigo, segundo os Yanomami – consigam entender. 

Em um território vasto e ditado pela dinâmica dos ciclos da natureza é possível conviver com quantas maneiras de viver? A identificação de pelo menos seis grupos indígenas isolados dentro do território yanomami mostra que a multiplicidade pode ser a maior força de um povo que entende a sua unidade como algo maior do que as diferenças. Talvez a TI Yanomami seja o Brasil que deu certo, apesar de todas as tragédias.

Saiba Mais: 

Quais são e quando nasceram as associações indígenas Yanomami? 

Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca) – 1998

Hutukara Associação Yanomami (HAY) – 2004 

Associação Wanaseduume Ye’kwana (Seduume) – 2006

Associação Yanomami do Rio Marauiá e do Rio Preto (Kurikama) – 2013; 

Texoli Associação Ninam do Estado de Roraima (Taner) – 2015 

Associação das Mulheres Kumirãyõma (Amyk) – 2015 

Hwenama Associação dos Povos Yanomami de Roraima (Hapyr), atual Urihi – 2016 

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