Uma questão de humanidade

Uma questão de humanidade

Quando as caravelas de Cabral chegaram aqui, em 1500, já tinha gente morando há pelo menos 10.500 anos. Agorinha, em maio, foi descoberto um fóssil humano em Serranópolis, no sul de Goiás, com cerca de 12 mil anos; e tem uns e outros que têm o descaramento de exigir dos povos originários que provem que ocupavam suas terras ancestrais em 5 de outubro de 1988. Longe de nós passar pano para o colonizador escravagista e genocida ou para ditadores sanguinários, mas até os portugueses e os militares reconheciam a posse dos indígenas de suas terras, e criaram leis para garanti-la – se as cumpriam ou não, é outro papo. Logo, é vergonhoso que justamente no período mais democrático de nossa História, em pleno século XXI, quando até os animais dito irracionais conquistaram os seus direitos, tenha gente exigindo comprovante de residência deles.

No Congresso Nacional, exumaram este ano – já que o seu autor, um ex-deputado e ex-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso, morreu em 2013 – o Projeto de Lei (PL) 490, de 2007, que, entre outras barbaridades, estabelece o tal de “marco temporal”, que obriga os indígenas a provarem que ocupavam seu território ancestral na data da promulgação da atual Constituição. Se foram expulsos de lá na base da bordoada, o problema é deles; uma inversão do Código Penal, que diz que cabe ao requerente – leia-se invasor – o ônus da prova. O fato de que, até aquela data, esses povos eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar com ações na Justiça, é um mero inconveniente. O PL foi aprovado na Câmara Federal com a velocidade do RBR de Max Verstappen, bicampeão da Fórmula-1. Enquanto isso, o julgamento sobre a tese jurídica do marco temporal segue em marcha lenta no Supremo Tribunal Federal (STF).

Hora da aula de História: quiçá entusiasmado por ter sido durante o seu reinado que Portugal se livrou do jugo espanhol, D. Afonso VI, vulgo O Vitorioso, editou, em 1º de abril de 1680, o Alvará Régio, que reconheceu os indígenas como “primários e naturais senhores” de suas terras, além de proibir sua remoção involuntária. Naquele ano, também nasceu o temível pirata Edward Teach, cognome Barba Negra. Assim como o corsário inglês, os deputados que votaram a favor do PL 490 não demonstraram o menor respeito pela propriedade alheia; em vez de perna, têm cara-de-pau e olho grande, não de vidro.

O Regimento das Missões foi baixado em 1686 por D. Pedro II, irmão e sucessor d’O Vitorioso. Ele era um golpista nato, pois depôs Afonso, mas manteve e ampliou sua política em relação aos povos originários: garantiu-lhes o direito de se recusarem a deixar suas terras e o seu uso exclusivo, proibindo que homens “brancos e mestiços”, exceto missionários, morassem nas aldeias. Ok, ele queria submetê-los ao cristianismo; porém, os primeiros invasores que tomaram o Brasil em nome da coroa portuguesa não deixaram de registar no papel as posses de seus habitantes originais. Dados a golpes como D. Pedro II, os parlamentares da bancada ruralista acreditam que têm um rei na barriga, e que não devem satisfação a ninguém, por considerarem o povo, a quem deveriam servir, seus súditos.

Eminência parda do Reino de Portugal de 1750 a 1777, o Marquês de Pombal também foi o maior representante do Iluminismo português. Enquanto foi Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino (o equivalente hoje ao cargo de Primeiro-Ministro) editou duas leis que garantiam os direitos dos povos originários. A de 1755 determinava que eles tinham “inteiro domínio e pacífica posse das terras (…) para gozarem delas per si e todos os seus herdeiros” – que estão aí até hoje – e o Diretório Pombalino do Maranhão e Grão-Pará, de 1758, determinou que “o direito dos índios nas povoações elevadas a vilas prevalece sobre o de outros moradores”, pois eles “são os primários e naturais senhores das mesmas terras”. Sebastião José de Carvalho e Melo, seu nome de batismo, tinha outras intenções, é verdade: também queria civilizar (sic) os indígenas; mas essa é outra história.

Fala-se muito que o PL 490, que hoje tramita no Senado sob o número 2.903, tem como objetivo-mor a chamada “segurança jurídica”, que traria paz ao campo. Porém, pouco antes de D. Pedro I dar o Grito do Ipiranga, a Resolução 76 da Mesa de Desembargo do Paço, editada em 17 de julho de 1822, aboliu o regime de sesmarias – que destinava terras à agricultura, inclusive as que já tinham dono – responsável por um sem-número de conflitos entre indígenas e colonos. Menos de duas décadas depois, já durante o Brasil Império, D. Pedro II, baixou, em 1850, a Lei das Terras n.601, que determinava que, em relação aos territórios de ocupação originária, “não há posse a legitimar, há domínio a reconhecer”. Simples assim. O Decreto 1.318, editado quatro anos depois, ainda garantia a posse dos indígenas às aldeias estabelecidas fora de suas terras tradicionais, com direito a títulos de propriedade. Mesmo que fosse da boca pra fora, já fomos um pouco melhores, né?

Na infância da República, em 1910, durante o governo de Nilo Peçanha, foi aprovado o Decreto 8.072, que criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, depois Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Além disso, determinou a restituição das terras roubadas dos indígenas. A partir de nossa terceira Constituição, em 1934, todas as seguintes procuravam resguardar os direitos dos povos originários, das mais diversas formas. Mesmo a infame Carta Magna de 1967, que nos foi imposta por ditadores golpistas e extinguiu o SPI, no seu artigo 198, determinava a anulação de ações na Justiça que tivessem “por objeto o domínio, a posse ou a ocupação” das terras indígenas, sem direito a indenização para os ocupantes.

Em 1973, ainda nos anos de chumbo, foi criada a Lei 6.001, conhecida como Estatuto do Índio, que estipulou regras para demarcações e determinou que todas as terras dos indígenas estivessem demarcadas até 1978 – o que, como sabemos, não aconteceu. É verdade que a ditadura assassinou cerca de 8 mil deles, segundo a Comissão da Verdade; mas em plena democracia testemunhamos o massacre Yanomami e as mortes de mais de mil indígenas por Covid-19, devido à omissão criminosa do governo anterior – aquele que não demarcou nem um centímetro de terra para eles.

A Constituição de 1988 trouxe grandes avanços para a causa dos indígenas. Além de passar a considerá-los cidadãos brasileiros como outros quaisquer, ela também garantiu – ou deveria ter garantido – definitivamente seus direitos territoriais. Mas, assim como aconteceu com o Estatuto do Índio, o prazo determinado pelo Artigo 67 dos seus Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, que diz que “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”, não foi cumprido. E isso abriu um flanco perigoso, que agora pode ser usado contra eles. Imagine se criassem uma lei para lhe fazer Justiça e ela se tornasse sua maior desgraça?

Congressistas dizem que há “muita terra para pouco índio” e que eles são “um entrave para o desenvolvimento do país”. Não fazem isso por falta de informação: latifundiários que invadiram terras indígenas doaram R$ 3,6 milhões para membros da bancada ruralista. Hoje, os Guarani ocupam uma área total de 2.250 km² no Mato Grosso do Sul, o que dá uma densidade demográfica de 27,2 habitantes por quilômetro quadrado, quatro vezes maior que a do estado, que é de 6,8, segundo o IBGE. Outro dado: entre 2000 e 2014, o agronegócio cresceu 41%, enquanto, no mesmo período, foram homologadas 137 terras indígenas, 141 declaradas e 162 identificadas. Os números não mentem, já os políticos…

A gente poderia, mais uma vez, apelar para a racionalidade, falando novamente da importância da preservação do meio ambiente para todos os habitantes deste planeta e do papel fundamental dos povos originários para que isso aconteça; ou simplesmente relembrar que o “marco temporal” é inconstitucional – pode esmiuçar a Constituição de 1988 à vontade que você não vai encontrar nenhuma menção a ele. Mas preferimos apelar para a sua consciência: é uma questão de humanidade, amor ao próximo e Justiça.

Num piscar de olhos

Num piscar de olhos

É num piscar de olhos: 18 árvores foram derrubadas por segundo na Amazônia em 2021. A estimativa do Mapbiomas, parece daqueles números impossíveis de se imaginar. Já de acordo com o sistema de alerta do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), desmatou-se 16.557 km² de florestas no ano passado no Brasil, o equivalente a quase três vezes a área do Distrito Federal – e um número 20% maior que o de 2020. Piscou, perdeu: a destruição nos primeiros quatro meses do ano foi 1.968 km², um aumento de 70,7% em relação a 2021, um recorde de velocidade absoluto. Mas não adianta chorar sobre a árvore derrubada; é hora de frear esse trator desgovernado.

Por exemplo: já é possível medir o tamanho do estrago de uma das maiores obsessões deste governo, a liberação da mineração em terras indígenas. Uma pesquisa da Escola Politécnica (Poli) da USP calcula que, em 30 anos perderíamos 7.626 km² de Amazônia abrindo só dez áreas do Amapá e do Pará para o garimpo. Isso dá cinco vezes o tamanho do município de São Paulo.

O estudo da Poli, publicado na revista “Nature Sustainability, usou como exemplos a Renca (Reserva Nacional de Cobre e Associados), duas terras indígenas e várias áreas de preservação. “Metade de todo esse desmatamento aconteceria em áreas de alta importância para conservação da biodiversidade, evidenciando a importância do estabelecimento de áreas protegidas, em que a mineração e seus impactos não são permitidos”, explica Juliana Siqueira-Gay, engenheira ambiental e coautora da pesquisa.

Só no primeiro momento, com o trabalho de escavação de novas minas, a Amazônia perderia 183 km² de floresta. Para se ter uma ideia, todo o parque de mineração do Pará atual, o estado da região onde a atividade é mais praticada, ocupa 337 km². A destruição total de 7.626 km² calculada pelo estudo seria atingida em seguida, por vias indiretas, como a construção de infraestrutura – pistas de pouso, estradas e depósitos.

Além do tamanho do prejuízo para o meio ambiente, outra coisa já se sabe de antemão: o lugar de onde essa riqueza é extraída é o menos favorecido por ela. O ouro vai embora e ficam a violência, a morte de rios e lagos, e a destruição do verde. A liberação da mineração em terras indígenas é uma medida defendida somente pelo governo, pois mesmo as grandes mineradoras já se manifestaram contra. Em nome de quê?

A Amazônia já foi uma grande fornecedora de oxigênio, mas hoje emite mais CO₂ do que absorve; já foi chamada de ar-condicionado do planeta, porém já existem partes da floresta que hoje são fontes de calor. Mondo afora a situação não está melhor: as metas do Acordo de Paris já estão totalmente ultrapassadas e um estudo do Centro de Biodiversidade e Mudanças Climáticas do Instituto de Pesquisa de Produtos Florestais e Florestais, no Japão, concluiu que a área de floresta per capita no mundo diminuiu 60% em 60 anos.

Está em nossas mãos botar o clima do planeta nos trilhos. Se a gente fizer o trabalho direitinho, termina o serviço num piscar de olhos. Tem um belo atalho bem à nossa frente, ele se chama eleição.

 

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Só o Brasil real salva o Brasil do Brasil oficial

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“O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”, dizia Machado de Assis, em 1861. Não é de hoje que quem manda no Brasil (o país oficial) não está à altura de seu povo (o real); mas raras vezes essa disparidade ficou tão evidente quanto agora. Enquanto o governo toma decisões que agridem nossa dignidade e nos isolam cada vez mais do resto do mundo, cidadãos brasileiros buscam soluções para essas adversidades e ganham até reconhecimento internacional. Ao mesmo tempo em que descobrimos que 33 milhões de pessoas, quase meia França, passam fome no Brasil, a etnobióloga Patrícia Medeiros é premiada naquele país por seus estudos sobre o uso de plantas silvestres como alimento. Não só comemos pouco, como comemos mal.

A pernambucana de 35 anos, que é professora da Agroecologia e Engenharia Florestal na Universidade Federal de Alagoas (Ufal), foi uma das 15 ganhadoras do International Rising Talents, concedido a jovens cientistas mulheres pela Fundação L’Oréal, em parceria com a Unesco. “Hoje nós comemos pouquíssimas coisas. No Brasil e no mundo, nossa alimentação é baseada em poucas espécies convencionais”, diz Patrícia. O problema é que esses alimentos têm deficiências de micronutrientes, como ferro, cálcio e outros minerais fundamentais para uma boa nutrição. Já as plantas silvestres são ricas nessas substâncias.

No cardápio elaborado por ela entram araçá, jenipapo, taioba, cambuí e ouricori, que muitas vezes não chegam aos nossos pratos por puro preconceito. Esse menu mais variado ajudaria a atacar mais duas calamidades: a perda da biodiversidade – muitas dessas plantas estão dando espaço para monoculturas como o da soja, do milho e da cana-de-açúcar – e o uso cada vez mais desmedido de agrotóxicos e fertilizantes químicos, já que são naturalmente adaptadas aos seus biomas nativos.

Em seus estudos, Patricia mira outro problema que vem sendo solenemente ignorado pelo “país oficial”: as consequências das mudanças climáticas. “Quanto mais diversas forem nossas opções alimentares, há mais chances de ter elementos com os quais contar no futuro incerto. Há espécies mais resistentes às altas temperaturas e, principalmente, à ausência de chuvas”, explica. E foi justamente a preocupação com o caos que pode ser causado pelo desequilíbrio climático que rendeu a outro brasileiro, o climatologista Carlos Nobre, uma honraria inédita: ser o único brasileiro eleito para a Royal Society, a academia de ciências mais antiga do mundo, sediada em Londres – Dom Pedro II chegou lá antes, mas por causa de seu pistolão de imperador (o “país oficial”), não por suas pesquisas.

Um estudo publicado em março pelo jornal científico “Nature Climate Change” mostrou que, nos últimos 20 anos, a maior floresta tropical do mundo, também vital para ajudar a regular o clima do planeta, vem demorando cada vez mais para conseguir se recuperar dos longos e cada vez mais constantes períodos de seca. Isso está a deixando mais perto de seu ponto de inflexão, quando não terá mais capacidade de regeneração.

Nobre foi o primeiro a calcular este limite, em 2007: isso aconteceria se 40% da Floresta Amazônica fossem abaixo. Dez anos depois, as estimativas foram refeitas, mostrando-se ainda mais preocupantes: 20% de destruição decretaria sua sentença de morte – ou mesmo aterradoras, se levarmos em conta que, segundo a ONG The Nature Conservancy, essa porcentagem já foi atingida. “Nos últimos três anos e meio, com o atual governo federal do Brasil, vimos um descontrole proposital, uma política de expandir a agropecuária, de levar a mineração a tomar tudo ali, áreas indígenas, protegidas, tudo. Nós voltamos, por incrível que pareça, para as décadas de 1970 e 1980”, denuncia Nobre.

O Brasil real dos povos originários é a nossa maior esperança de salvar a Amazônia. O papel das terras indígenas tem sido fundamental: segundo um levantamento da plataforma Mapbiomas, entre 1985 e 2020 só 1,6% da perda de cobertura florestal no país se deu nesses territórios, e quase 20% de toda a vegetação nativa do país estão localizados neles. Não à toa, enquanto o presidente da República foi barrado no último encontro do G7, Sonia Guajajara, uma das vozes mais ativas do movimento indígena, entrou para a prestigiada lista das cem pessoas mais influentes do mundo da “Times”.

Outro brasileiro lembrado pela revista americana foi o pesquisador Tulio de Oliveira, descobridor variante Ômicron do novo coronavírus. Desnecessário relembrar o desempenho catastrófico do “país oficial” no combate à Covid-19. Mas um estudo do Banco Mundial diz que a pandemia fez o Brasil andar dez anos para trás. Segundo o relatório, desperdiçamos 40% do potencial de nossas crianças – o PIB do país poderia ser 158% maior, caso o aproveitamento fosse de 100%. As razões são diversas, vão da falta de emprego, educação e alimentação deficientes, às desigualdades de gênero e raciais.

Além disso, os cortes promovidos pelo governo na área de ciência e tecnologia ainda tem provocado uma fuga de cérebros. Tulio de Oliveira, por exemplo, é diretor do Centro de Resposta e Inovação Epidemiológica da África do Sul. O Banco Mundial estima que o Brasil precisaria de 60 anos para alcançar o nível de capital humano alcançado pelos países desenvolvidos há três anos. É muito tempo para recuperar. O capital humano é outro recurso natural do qual somos ricos, mas que também não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar. É hora de o Brasil real salvar o Brasil do Brasil oficial.

 

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O 19 de abril é apenas mais um dia de luta

O 19 de abril é apenas mais um dia de luta

por Erisvan Guajajara*

O Dia do Índio (sic) nunca foi motivo de comemoração para nós, indígenas. Embora instituído pelo Estado para celebrar nossa existência, na prática serviu, no máximo, como alívio para a consciência de quem sempre nos perseguiu.

O 19 de abril, para os povos originários, é um dia de luta. Melhor dizendo: apenas mais um dia de uma luta que se arrasta desde que o invasor chegou aqui, há mais de cinco séculos. Essa guerra sem tréguas ganhou caráter decisivo este ano, pois o adversário reforçou seu paiol de munição. Mas resistimos desde 1500 e engana-se quem acredita que vai nos pegar desprevenidos. Aprimoramos nossas armas e estamos preparados como sempre.

Não é segredo que Bolsonaro nos considere seus inimigos – afinal, ele vive se gabando disso. Melhor assim; um oponente dissimulado seria mais difícil de enfrentar. O atual presidente tem poucos meses para levar a cabo seu projeto de aniquilação, e o desespero o leva a despejar sobre nós, de uma vez, todo o seu arsenal de armas de destruição em massa, na forma de projetos de lei. E ele conta com aliados impiedosos no Congresso Nacional. É um bombardeio que nos atinge por todos os lados – mas não só a nós, é bom lembrar; o Brasil como um todo poderá sair mortalmente ferido dele.

O PL 2.159/2021, que tramita no Senado, por exemplo, praticamente elimina a necessidade de licenciamento ambiental no país para obras de infraestrutura como hidrelétricas, rodovias, ferrovias e barragens. Nem parece que só em outubro passado foi encontrado o corpo da 261ª vítima de Brumadinho, dois anos e oito meses depois do desastre. E que ainda há nove pessoas desaparecidas lá. Ou que Mariana até agora não tenha se recuperado totalmente, seis anos depois do rompimento da Barragem do Fundão. Nem mesmo que em Minas Gerais existam, no momento, mais de 30 barragens em situação crítica, e que a Usina de Belo Monte tenha levado somente ruínas ao Rio Xingu e a Altamira, no Pará.

O mesmo vale para o PL 191/2020, que libera a mineração em nossas terras. Mas, assim como o povo Munduruku, 75% da população de Santarém, a terceira maior cidade paraense (com mais de 300 mil habitantes), carrega o mercúrio do garimpo ilegal em suas veias. E o Tapajós não é o único rio que banha tanto nossas terras, como grandes centros urbanos brasileiros. Só o fato de ter sido aprovada a urgência de sua votação na Câmara Federal, serviu como senha para que garimpeiros se sentissem à vontade para empreender novas invasões. A certeza da impunidade lhes serve de estímulo – os Xipaya, que tiveram seu território atacado na semana passada, que o digam.

No Pacote da Destruição tem até armamento químico. O Projeto de Lei 526/1999, conhecido como PL do Veneno, transfere da Anvisa para o Ministério da Agricultura a competência de liberar novos agrotóxicos – alguém pensou na raposa tomando conta do galinheiro? Ainda que pesticidas sejam, vez por outra, despejados de propósito em nossas aldeias, é o consumidor brasileiro em geral que vai pagar caro pela ganância alheia.

Ainda que não sejamos o alvo primário, o Projeto de Lei 2.633/2020, o PL da Grilagem, também pode nos vitimar. Essa bomba, já aprovada pela Câmara e encaminhada ao Senado em agosto passado, anistia invasores e incentiva novos roubos de terras públicas. Estamos no meio desse tiroteio, cujo maior prejudicado é um patrimônio de todos; territórios indígenas não homologados fazem crescer os olhos de muita gente.

E aí chegamos ao PL 490/2007, feito sob encomenda para nos prejudicar. O projeto tem como objetivo não só inviabilizar a demarcação de novas terras indígenas, como até anular muitas já demarcadas. O pretendido tiro de misericórdia institui o dispositivo do “marco temporal”. Segundo este, só teriam direito à posse de seus territórios os povos que os estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Cidadã. Isso valeria até para os que foram expulsos deles pelo uso da violência. O recém-falecido jurista Dalmo Dallari era seu opositor ferrenho, já que é inconstitucional. Mas sabemos que Bolsonaro costuma jogar fora do que chamam de “quatro linhas”. Ele pode até tentar, mas nós resistiremos.

Hoje, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) tem uma forte equipe jurídica, formada por advogados de origem indígena, que vem infligindo derrotas memoráveis ao governo, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF). Ajudamos a construir a Constituição de 1988 e, de lá para cá, temos nos preparado para defendê-la em todos os campos de batalha.

Continuaremos a ocupar espaços: queremos eleger uma bancada no Congresso do tamanho dos 900 mil que somos e formada pelos 305 povos que representamos. O Brasil é indígena, e não só por um dia, vamos aldear a política brasileira.

Que não nos destaque em um único dia, que nossa história não seja apagada, somos os primeiros, e seguimos na responsabilidade para salvar nossos territórios e o planeta. A luta pela terra, pela vida e direito dos povos indígenas é todos os dias.

*Erisvan Guajajara é jornalista do seu povo, no Maranhão. Atua no movimento indígena desde 2010, dentro de organizações políticas, e como ativista cultural, usando a comunicação e as novas tecnologias para o empoderamento da juventude indígena, para combater as mudanças climáticas e para registrar e denunciar, por meio de documentários e fotografias, a exploração ilegal de madeira em territórios indígenas. Fundou a rede “Mídia Índia” com mais dois jovens de seu povo, Edvan Guajajara e Flay Guajajara, para dar voz aos povos originários do Brasil e desenvolver uma rede de comunicação indígena na América Latina. Foi colaborador do jornal “Amazônia Real” e atualmente é repórter do Portal Terra, onde este artigo também foi publicado.

Visão seletiva

Visão seletiva

“E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio”, canta Caetano Veloso em “Um índio”, aquele que “descerá de uma estrela colorida, brilhante”, como o sol. Já em 1977, ele previa nessa canção a enrascada em que nos meteríamos e quem indicaria a saída: os povos originários, com seu conhecimento ancestral, “mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”.

Assim como a canção, o último relatório sobre mudanças climáticas do IPCC da ONU é de arrepiar, embora pelo motivo oposto. Mas há aqueles que, por alguma razão, não enxergaram o óbvio – ou se recusam a notá-lo. Para ajudá-los a abrir os olhos, 45 anos depois, o cantor leva seu violão para Brasília, no Ato pela Terra contra o Pacote da Destruição: “Eu acho que está na hora de a gente se manifestar na rua, botar a cara na rua”, convida. Porque a pressa e a pressão só não aumentam mais que o desmatamento e o desrespeito aos direitos humanos no país.

Com as bênçãos do governo e do presidente de Câmara Federal, congressistas ameaçam aprovar a qualquer momento cinco projetos de lei, o Pacote da Destruição, que podem ferir o Brasil de morte. O que trata de liberação da mineração em terras indígenas, o PL 191/2020, voltou para o topo da lista, como consequência indireta da guerra entre Rússia e Ucrânia – ou “uma boa oportunidade”, como disse o presidente Bolsonaro. Ele pode levar à inutilização das maiores reservas de água do planeta e à extinção de povos. “Depois de exterminada a última nação indígena / E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida”, como também está dito em “Um índio”.

E seria uma catástrofe a nível global, não só local. A mineração ajuda a pôr árvores abaixo e CO₂ lá em cima. Caso o desmatamento siga no ritmo atual, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) calcula que a floresta perderia 17 mil km² de área até 2030. Todo esse verde viraria mais 800 milhões de toneladas de CO₂ na atmosfera. Tem mais: no último dia 7, o jornal científico “Nature Climate Change” publicou um estudo da Universidade de Copenhaguen que indica que mais de ¾ da floresta vêm perdendo sua capacidade de regeneração desde 2003.

Ou seja, a Amazônia está se aproximando mais rápido do que se pensava de seu ponto de inflexão. “Se a perda da Floresta Amazônica se tornar irreversível, o efeito sobre a mudança do clima será significativo”, disse Tim Lenton, diretor do Global Systems Institute, na Universidade de Exeter, Inglaterra, coautor do texto. Caso a gente chegue a esse ponto, 90 bilhões de toneladas de CO₂ vão pro céu – e a Terra vira inferno.

A justificativa dada é nossa dependência externa de fertilizantes minerais; então convém lembrar que os indígenas não só preservam a Amazônia, como ajudaram a cultivá-la. Porém, se há quem não veja o que é claro como o dia, existem os que parecem dotados de visão de raios-x. Só isso explicaria que o Presidente da República conseguisse descobrir as jazidas de potássio em plena Amazônia, já que as conhecidas se encontram entre 650m e 1.200m de profundidade. O seu dom, entretanto, parece ter uma fraqueza: só funciona em terras indígenas. Seja lá qual for o problema, é para lá que ele mira.

O fertilizante russo é apenas a bola da vez; antes, cogitou-se até que o Brasil entrasse para o ramo de bijuterias de nióbio. Ronaldinho Gaúcho era craque nisso: olhar para um lado e tocar para o outro. “A demanda por potássio em terras indígenas é irrisória. O interesse real das mineradoras está na extração de ouro e diamante”, analisa a jogada Márcio Santilli, sócio-fundador e assessor político do Instituto Socioambiental (ISA). “Não são os interesses dos indígenas ou da União que motivam a proposta de regulamentação dessa atividade, mas sim o interesse econômico de determinados grupos”, pontifica o Ministério Público Federal. Precisa de VAR?

Há 40 jazidas do mineral e de fósforo, outro ingrediente da receita dos fertilizantes, que não estão localizadas em terras indígenas ou unidades de conservação. Mas ainda que o presidente pudesse enxergar o subsolo, parece que ele não consegue ver o óbvio, que as verdadeiras riquezas da Amazônia estão na superfície. O “Ato pela Terra contra o Pacote da Destruição” também prevê a entrega de um documento ao Senado: “O presidente da Câmara tem dado mostras de fazer passar toda a desastrosa permissividade que o atual governo propõe”, explica Caetano Veloso. É preciso tirar a peneira da frente dos olhos daqueles que ainda se negam a ver o sol.

O Ato pela Terra contra o Pacote da Destruição acontece neste dia 9/03 (terça-feira), a partir das 15h, em frente ao Congresso Nacional, em Brasília. O ato reúne artistas e representantes da sociedade civil, e é apoiado por 232 entidades e movimentos.

 

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