Jardineiros do Éden

Jardineiros do Éden

O caraíu zu – como os Guajajara chamam o homem branco – comparou esta terra ao Jardim do Éden de suas crenças. Em nenhum momento, porém, se questionou sobre quem seriam os jardineiros daquele paraíso. Quando desembarcaram aqui, as grandes cidades europeias se assemelhavam a lixões, mas foram necessários mais de 500 anos para que se dessem conta que a terra exuberante que chamaram de Brasil não existiria sem os brasileiros originais: os povos indígenas. Depois de cinco séculos de luta e resistência, além de ganharem ministério próprio, eles agora estão à frente da Funai. Vão cuidar não só de seus interesses – como acontece na democracia, não por acaso tema do 19º Acampamento Terra Livre (ATL) –, mas também do nosso futuro.

Como santo de casa não faz milagre, a agora ministra Sonia Guajajara e outras guerreiras, tão dignas de admiração quanto ela, bateram muita perna mundo afora para convencer os demais terráqueos de que o seu modo de vida é vital para a sobrevivência de nossa espécie. Se o presidente voltou com R$ 500 milhões para o Fundo Amazônia da coroação de Charles III, o novo monarca do Reino Unido, não foi por causa de sua bela gravata, mas graças ao trabalho prévio dessas mulheres fantásticas. Democracia, para os povos originários, é ter o seu direito à terra garantido. É o principal propósito do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da Funai – presidida pela não menos admirável Joênia Wapichana. Não vai ser fácil. É uma maratona a ser corrida em tempo de 100 metros rasos.

Não se recupera cinco séculos de atraso em quatro anos; por isso, os trabalhos começaram antes mesmo de o novo governo assumir. No último dia 12 de dezembro, o Grupo de Trabalho Povos Indígenas, entregou ao presidente eleito um documento que recomendava a demarcação urgente de 13 terras, sendo cinco na maior floresta tropical do mundo, importantíssima para a regulação do clima no planeta. O relatório registra mais 66 territórios, 31 deles na Amazônia Legal, em diferentes etapas de processo. No último dia do ATL, Lula decretou a homologação de seis terras indígenas (TIs), as primeiras desde 2018.

 “Eu quero não deixar nenhuma terra indígena que não seja demarcada nesse meu mandato de quatro anos. Esse é um compromisso que eu tenho e que eu fiz com vocês antes da campanha”, disse o presidente na ocasião. É uma promessa difícil de ser cumprida, lamentavelmente. Uma TI só é demarcada definitivamente depois de passar por etapas de estudo, delimitação, declaração, homologação e regularização. O processo é muito sério, demorado, burocrático, que se assemelha a outro tipo de corrida: os 3 mil metros com obstáculos. E eles são muitos.

O MPI começou sua gestão desarmando uma bomba-relógio: a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami. Bolsonaro escancarou a porteira para a entrada do garimpo ilegal no território daquele povo, um dos mais vulneráveis do país. Os garimpeiros que invadiram a TIY não são mais aqueles poucos aventureiros miseráveis que arriscavam suas vidas mata adentro com facão e bateia, como quis nos fazer acreditar o ex-presidente: a exploração de ouro agora é feita por organizações criminosas. São bandidos de altíssima periculosidade, impiedosos, armados até os dentes, e movidos apenas a dinheiro – não há ideologia envolvida.

No Congresso, desencavaram o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que transfere do Executivo para o Legislativo a competência de demarcar TIs. Seu autor, Homero Pereira, ex-deputado e ex-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso, morreu em 2013. A bancada ruralista – que, curiosamente, tem integrantes que nunca plantaram nem feijão em algodão ou sequer são donos de terras – perdeu representantes no Congresso (eram 552 na gestão passada e hoje são 347), mas ainda tem muita influência. É uma ameaça que não deve ser desprezada, principalmente porque temos o Parlamento mais conservador – que só não se preocupa em conservar o meio ambiente – das últimas legislaturas.

Porém, a maior ameaça paira no Supremo Tribunal Federal (STF). A presidente Rosa Weber marcou para 7 de junho a retomada do julgamento da famigerada tese do “marco temporal”, paralisada desde setembro de 2021. Os ministros estão divididos, mas o próprio Bolsonaro disse que dois deles são seus bonecos de ventríloquos – e um deles, Nunes Marques, já votou favoravelmente. O julgamento está em 1 a 1, com o voto contrário de Edson Fachin. O “marco temporal” defende que somente os indígenas que estivessem de posse de suas terras no dia da promulgação da atual Constituição, 5 de outubro de 1988, podem reivindicá-las, mesmo que tenham sido expulsos sob a mira de armas.

Juristas de renome, como Dalmo Dallari (1931-2022), há anos apontavam sua inconstitucionalidade: “Está na Constituição que o índio tem direito a terra de ocupação tradicional. A Constituição não exige que se estivesse fisicamente naquele lugar, naquele dia”, afirmou, num seminário, em 2015. Segundo ele, seria um absurdo exigir que indígenas resistissem aos invasores por meios legais ou usando a força: “Até pouco tempo, o índio não tinha o direito de entrar com ação judicial. É preciso também ressaltar que a possibilidade de resistência dos índios na terra é mínima, é muito pequena. Há muitos casos em que os índios tentaram resistir e foram assassinados, porque muitos dos invasores de terras indígenas usam capangas armados para defender invasões”.

Na mesma ocasião, o professor José Afonso da Silva, um dos maiores constitucionalistas de nossa história, argumentou que o “marco temporal” não leva em consideração conquistas anteriores a 1988: documentos do período colonial já reconheciam os direitos dos indígenas sobre as terras que ocupavam. A Constituição de 1934 também os legitimava: “Deslocar o marco para 1988 e abandonar o início efetivo do reconhecimento constitucional, que é de 1934, é realmente deturpar os conceitos”.

Os ministros do STF têm em suas mãos uma decisão que pode não só influenciar o destino dos indígenas, como também de toda a Humanidade. Que tenham isso em mente na hora de votar. São pessoas cultas e bem-informadas. Os povos originários estão fazendo a sua parte, mas não podem ganhar essa corrida, que é de revezamento, sozinhos. O Brasil não é apenas uma porção de terra, somos todos nós, brasileiros – e vai chegar a hora de cada um carregar o bastão. Somente unidos podemos transformá-lo no Éden de todos os povos.

 

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O 19 de abril é apenas mais um dia de luta

O 19 de abril é apenas mais um dia de luta

por Erisvan Guajajara*

O Dia do Índio (sic) nunca foi motivo de comemoração para nós, indígenas. Embora instituído pelo Estado para celebrar nossa existência, na prática serviu, no máximo, como alívio para a consciência de quem sempre nos perseguiu.

O 19 de abril, para os povos originários, é um dia de luta. Melhor dizendo: apenas mais um dia de uma luta que se arrasta desde que o invasor chegou aqui, há mais de cinco séculos. Essa guerra sem tréguas ganhou caráter decisivo este ano, pois o adversário reforçou seu paiol de munição. Mas resistimos desde 1500 e engana-se quem acredita que vai nos pegar desprevenidos. Aprimoramos nossas armas e estamos preparados como sempre.

Não é segredo que Bolsonaro nos considere seus inimigos – afinal, ele vive se gabando disso. Melhor assim; um oponente dissimulado seria mais difícil de enfrentar. O atual presidente tem poucos meses para levar a cabo seu projeto de aniquilação, e o desespero o leva a despejar sobre nós, de uma vez, todo o seu arsenal de armas de destruição em massa, na forma de projetos de lei. E ele conta com aliados impiedosos no Congresso Nacional. É um bombardeio que nos atinge por todos os lados – mas não só a nós, é bom lembrar; o Brasil como um todo poderá sair mortalmente ferido dele.

O PL 2.159/2021, que tramita no Senado, por exemplo, praticamente elimina a necessidade de licenciamento ambiental no país para obras de infraestrutura como hidrelétricas, rodovias, ferrovias e barragens. Nem parece que só em outubro passado foi encontrado o corpo da 261ª vítima de Brumadinho, dois anos e oito meses depois do desastre. E que ainda há nove pessoas desaparecidas lá. Ou que Mariana até agora não tenha se recuperado totalmente, seis anos depois do rompimento da Barragem do Fundão. Nem mesmo que em Minas Gerais existam, no momento, mais de 30 barragens em situação crítica, e que a Usina de Belo Monte tenha levado somente ruínas ao Rio Xingu e a Altamira, no Pará.

O mesmo vale para o PL 191/2020, que libera a mineração em nossas terras. Mas, assim como o povo Munduruku, 75% da população de Santarém, a terceira maior cidade paraense (com mais de 300 mil habitantes), carrega o mercúrio do garimpo ilegal em suas veias. E o Tapajós não é o único rio que banha tanto nossas terras, como grandes centros urbanos brasileiros. Só o fato de ter sido aprovada a urgência de sua votação na Câmara Federal, serviu como senha para que garimpeiros se sentissem à vontade para empreender novas invasões. A certeza da impunidade lhes serve de estímulo – os Xipaya, que tiveram seu território atacado na semana passada, que o digam.

No Pacote da Destruição tem até armamento químico. O Projeto de Lei 526/1999, conhecido como PL do Veneno, transfere da Anvisa para o Ministério da Agricultura a competência de liberar novos agrotóxicos – alguém pensou na raposa tomando conta do galinheiro? Ainda que pesticidas sejam, vez por outra, despejados de propósito em nossas aldeias, é o consumidor brasileiro em geral que vai pagar caro pela ganância alheia.

Ainda que não sejamos o alvo primário, o Projeto de Lei 2.633/2020, o PL da Grilagem, também pode nos vitimar. Essa bomba, já aprovada pela Câmara e encaminhada ao Senado em agosto passado, anistia invasores e incentiva novos roubos de terras públicas. Estamos no meio desse tiroteio, cujo maior prejudicado é um patrimônio de todos; territórios indígenas não homologados fazem crescer os olhos de muita gente.

E aí chegamos ao PL 490/2007, feito sob encomenda para nos prejudicar. O projeto tem como objetivo não só inviabilizar a demarcação de novas terras indígenas, como até anular muitas já demarcadas. O pretendido tiro de misericórdia institui o dispositivo do “marco temporal”. Segundo este, só teriam direito à posse de seus territórios os povos que os estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Cidadã. Isso valeria até para os que foram expulsos deles pelo uso da violência. O recém-falecido jurista Dalmo Dallari era seu opositor ferrenho, já que é inconstitucional. Mas sabemos que Bolsonaro costuma jogar fora do que chamam de “quatro linhas”. Ele pode até tentar, mas nós resistiremos.

Hoje, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) tem uma forte equipe jurídica, formada por advogados de origem indígena, que vem infligindo derrotas memoráveis ao governo, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF). Ajudamos a construir a Constituição de 1988 e, de lá para cá, temos nos preparado para defendê-la em todos os campos de batalha.

Continuaremos a ocupar espaços: queremos eleger uma bancada no Congresso do tamanho dos 900 mil que somos e formada pelos 305 povos que representamos. O Brasil é indígena, e não só por um dia, vamos aldear a política brasileira.

Que não nos destaque em um único dia, que nossa história não seja apagada, somos os primeiros, e seguimos na responsabilidade para salvar nossos territórios e o planeta. A luta pela terra, pela vida e direito dos povos indígenas é todos os dias.

*Erisvan Guajajara é jornalista do seu povo, no Maranhão. Atua no movimento indígena desde 2010, dentro de organizações políticas, e como ativista cultural, usando a comunicação e as novas tecnologias para o empoderamento da juventude indígena, para combater as mudanças climáticas e para registrar e denunciar, por meio de documentários e fotografias, a exploração ilegal de madeira em territórios indígenas. Fundou a rede “Mídia Índia” com mais dois jovens de seu povo, Edvan Guajajara e Flay Guajajara, para dar voz aos povos originários do Brasil e desenvolver uma rede de comunicação indígena na América Latina. Foi colaborador do jornal “Amazônia Real” e atualmente é repórter do Portal Terra, onde este artigo também foi publicado.

A boiada do apocalipse 

A boiada do apocalipse 

Enquanto Juscelino Kubitschek ambicionava que o Brasil avançasse “50 anos em 5”, o atual presidente prometeu fazer voltar ao que era há quatro, cinco décadas. Ele engatou a marcha-a-ré e pisou fundo no acelerador, mas, ainda assim, três anos não foram o suficiente; então, decidiu envenenar a máquina em seus últimos meses de mandato. O governo elencou suas prioridades para 2022, usando combustível aditivado para tratorar meio ambiente e povos tradicionais. A nova meta é passar a boiada do apocalipse. Um bovino já entrou, na marra: a Câmara aprovou, em regime de urgência, o PL do Veneno. E tem mais praga do Egito Antigo a caminho. Como fechar essa porteira?

O Projeto de Lei 6299/2002, que facilita ainda mais o uso de agrotóxicos no país, ainda precisa de aprovação do Senado; porém mais 11 bombas, plantadas em variadas instâncias, nos esperam nos próximos meses. Algumas delas são motosserras movidas a caneta: o PL 510/2021, conhecido como PL da Grilagem, que faz o crime compensar ao regulamentar áreas protegidas que foram invadidas; e o PL 3.729/2004, que afrouxa ainda mais a regulamentação do licenciamento ambiental, como se Mariana e Brumadinho não tivessem existido ou nada houvesse acontecido na virada do ano em Minas Gerais.

“No meu governo, não foi demarcada terra indígena”, gabou-se outro dia mesmo o presidente. Quando o assunto são os povos originários, os ataques costumam ser mais frequentes – porque é onde ele tem encontrado mais resistência. Com o PL 490/2007, que estabelece um “marco temporal” para que indígenas possam reclamar seus territórios, Executivo e Legislativo formaram uma aliança contra o Judiciário, já que a causa está em julgamento no Supremo Tribunal Federal. Também pode ter agente duplo nessa guerra, pois mais de uma vez Bolsonaro afirmou ter escolhido ministros obedientes.

E tem o PL 191/2020, que abre as terras indígenas para a mineração, uma verdadeira obsessão: ainda em campanha, o então candidato já falava em encher a Amazônia de Serras Peladas. Para cercar por todos os lados, ele lançou um novo ardil, no último dia 14, o decreto que cria o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala. O objetivo seria “estimular o desenvolvimento da mineração artesanal e em pequena escala”. Mas precisava? Hoje, a região concentra 72,5 % de toda a área de mineração no Brasil e, segundo um relatório do projeto MapBiomas, a área tomada por garimpeiros em terras indígenas e unidades de conservação cresceu 495% e 301%, respectivamente, entre 2010 e 2020. O mercúrio corre nas veias de Yanomami e Munduruku, e envenena o Rio Tapajós.

Ainda que as consequências dessas ações sejam apenas coincidências infelizes, que o governo estivesse coberto das mais nobres intenções, era para pensar no que deu errado, né? Isso não acontece porque por trás desse aparente apetite irracional por destruição, se esconde o objetivo de sempre, que tradicionalmente move a política brasileira: tirar direitos dos vulneráveis para aumentar os privilégios dos poderosos. Mas o governo atual tem uma prioridade exclusiva, que é armar civis. A vítima mais evidente é a segurança nas grandes cidades, também ameaçada por absurdos como o “excludente de ilicitude”, na prática uma licença para matar. Só que vai sobrar bala perdida pra todo mundo, incluindo os povos tradicionais, que conhecem miliciano como jagunço.

Dois projetos de lei, o 6.438/2019 e o 3.723/2019, rondam perigosamente o Congresso. Desde a posse, o presidente baixou mais de 30 decretos e atos normativos para facilitar o acesso às armas. Embora a caça seja proibida no Brasil, caçadores podem comprar até 30 armas, 15 delas de uso restrito, e até seis mil balas; o volume de importação de armas de fogo no Brasil aumentou 33% em 2021 em relação a 2020. É o maior número desde 1997, quando a atividade começou a ser monitorada pelo Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex). No ano passado, foram importadas 140.559 armas de fogo, contra 119.335 de 2020. Tem gente armada até os dentes até dizer chega.

Enquanto isso, assassinatos de indígenas aumentaram 61% entre 2019 e 2020, segundo o “Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2020”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em dezembro passado, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou dados preliminares relativos à violência no campo em 2021. Os dados são assustadores: do início de 2021 até o fim de agosto, foram registrados 26 assassinatos, 30% a mais do que o ano de 2020 inteiro. 

Das 26 vítimas, oito eram indígenas e três, quilombolas. “A coroa portuguesa declarou guerra justa aos povos que não aceitavam a conversão ao Cristianismo. Isso é excludente de ilicitude. Já existe há 521 anos. O que é o bandeirante? O que é o capitão do mato? Eles são os milicianos!”, traduz para o português moderno Casé Angatu Xukuru Tupinambá, historiador e professor na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC-BA), e Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Será que sobra algum Brasil no fim do ano? A gente pode pressionar o Congresso e o Judiciário para que reduzir os danos de 2022, mas é bom lembrar que não existe melhor abaixo-assinado do que a urna. 

 

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O próprio DEM dá razão aos quilombolas

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O próprio DEM admite: errou ao entrar com uma ação no STF contra os direitos constitucionais dos quilombolas. “É um equívoco do passado. O pensamento do partido não é mais o mesmo”, disse o atual presidente do partido, o senador José Agripino. O problema é que o julgamento trouxe à tona outra ameaça: o “marco temporal”.

Segundo esta tese, só teriam direito as terras as comunidades que as estivessem ocupando até a data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. E a maioria foi expulsa de seu território, muitas vezes com violência, antes deste dia. Hoje, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239 será retomado, com o voto do ministro Edson Fachin. A luta quilombola segue por outra frente.

Via BBC Brasil

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Um ano de extremos

Um ano de extremos

Instabilidade e variações ao longo do período. Pelo lado positivo: 2017 foi o ano em que barramos a liberação da Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), uma enorme área na Amazônia, para a exploração mineral, mostrando que, unidos, somos fortes. Se houve retrocessos socioambientais no país, diante da avalanche de leis semeada pela bancada ruralista no Congresso, o estrago foi até pequeno – pois em grande parte, as votações ficaram para 2018. Estrago real e muito maior quem mostrou, de fato, foi a natureza, revoltada com nosso descaso: este foi um ano de recordes de queimadas e de estiagem, que quase secou o maior reservatório de água do Brasil. Motivos para nos mobilizarmos em 2018 não faltam.

A crise política aumentou o poder da bancada ruralista que usou seus 240 votos na Câmara para dar apoio a projetos e garantir a cadeira do presidente da República, recebendo em troca uma série de “agrados” e reivindicações atendidas. Do perdão para dívidas à redução de contribuições fiscais e à anistia para grileiros, passando pelo loteamento de cargos e o esvaziamento de órgãos governamentais “incômodos”, como a Funai e o Ibama. E, também, uma série de alterações na legislação à sua feição que, entre outras coisas, liberam agrotóxicos banidos no Primeiro Mundo, enfraquecem o licenciamento ambiental e a fiscalização, dificultam o reconhecimento e a demarcação de terras indígenas e quilombolas e reduzem as áreas protegidas de florestas. Dentro de uma estratégia coordenada, Executivo e Legislativo lançaram ao longo do ano uma coleção de Medidas Provisórias (MPs), Projetos de Emendas Constitucionais (PECs) e Projetos de Lei (PLs) que tratavam das mesmas matérias, sucessivamente, até que um deles fosse aprovado em votações que, muitas vezes aconteciam na calada da noite.

Do Palácio do Planalto vieram Medidas Provisórias como as MPs 756/2016 e 758/2016, que se aprovadas acabariam de uma vez com mais de 1,1 milhão de hectares de áreas de proteção e Unidades de Conservação das florestas brasileiras, como a Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, que teria 37% de sua extensão liberados para exploração por mineradoras e pecuaristas. Somadas, nada menos que 10% de todas as terras protegidas do país (cerca de 80 mil km2, ou uma Áustria) estiveram – e boa parte ainda está – em risco.

Felizmente, boa parte desse verdadeiro bombardeio legislativo acabou sendo desarmado ou, pelo menos por enquanto, mantido no ar. O contra-ataque veio com contestações legais (várias das “bombas” são simplesmente inconstitucionais e foram denunciadas pelo Ministério Público), emendas e adiamentos. Tudo sob forte influência e pressão do movimento de resistência integrado por organizações e entidades ambientalistas, indígenas, de direitos humanos, do campo e da mobilização da opinião pública.

Foi esse conjunto de vozes, com grande repercussão no exterior, que fez, por exemplo, com que o presidente da república recusasse na liberação para a exploração mineral da Renca. E, na mesma região, que a licença ambiental para a instalação da mineradora predadora Belo Sun fosse cancelada – pelo menos até que, cumprindo procedimentos legais, a população tradicional diretamente afetada pelo empreendimento seja ouvida e levada em conta.

A grande visibilidade dada a essas e outras ameaças e retrocessos repercutiu no exterior. Na Noruega, o presidente Temer enfrentou protestos e recebe um pito da primeira ministra e a bagagem de volta recebeu um corte considerável nos repasses feitos pelo país nórdico para o Fundo Amazônia. E, especialmente durante o período da COP-23 de Bonn, nosso país foi muito criticado pelo papel “o que eu faço não é bem o que eu digo” que anda representando no campo socioambiental. Além do aumento do desmatamento e do desrespeito aos direitos das comunidades tradicionais, a edição da MP do Trilhão – que dá para petroleiras incentivos e isenções trilionárias –, que torna o cumprimento das metas brasileiras de emissões no Acordo de Paris virtualmente impossível. Descobrimos ainda que somos a única grande economia do mundo que aumentou expressivamente suas emissões de gases do efeito estufa sem obter nenhum crescimento econômico.

Batalhas importantes aconteceram também no STF, onde foram barradas as tentativas de legalizar o arrendamento de terras indígenas na amazônia e a diminuição de limites de parques nacionais. O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto de Titulação Quilombola, que coloca em xeque os direitos dessas comunidades, porém, foi duas vezes adiado e, agora, está marcado para fevereiro próximo. De praticamente desconhecida da grande maioria da população, depois da mobilização e de campanhas por seus direitos, a luta dos quilombolas ganhou destaque, conseguindo mais de 100 mil adesões.

No bojo dessa ação, entretanto, já houve uma definição preocupante: o princípio do marco temporal, tese defendida pelo governo e que condiciona o reconhecimento ao direito pela terra a grupos quilombolas que comprovem a ocupação das áreas reivindicadas na data de promulgação da Constituição de 1988, já foi apreciado e reconhecido, deixando sem garantias aqueles que tenham sido expulsos antes dessa data. Um princípio que ameaça – e por isso, também, une em uma mesma luta – quilombolas e indígenas.

Alheia às decisões políticas ou jurídicas, a natureza impôs duras penas ao país. O ano de 2017 foi o que mais registrou queimadas desde 1998, quando o monitoramento por satélites começou a funcionar. Foram 273 mil focos de calor, incluídos aí os 65 mil hectares do Parque Nacional Chapada dos Veadeiros, destruídos este ano no maior incêndio de sua história, com fortes indícios de ter sido criminoso. O fogo foi favorecido pela seca de uma crise hídrica tão violenta que deixou o maior reservatório de água do país, Serra da Mesa (GO) com menos de 8% de sua capacidade. A natureza do Brasil, no entanto, deu grande demonstração de sua abundância no relatório divulgado, também este ano pelo WWF-Brasil e pelo Instituto Mamirauá, apresentando ao mundo nada menos que mais 381 espécies, entre plantas, peixes, anfíbios, répteis e mamíferos. E isso somente na Amazônia.

Se podemos tirar uma lição e, com ela, um alento para as dificuldades que certamente continuaremos a enfrentar em 2018, é que em poucos momentos da história de nosso país a força da opinião pública e do engajamento dos movimentos socioambientais foi tão importante quanto neste período em que vivemos. Foi sua pressão que, a despeito do peso da bancada ruralista e de poderosos lobbies, como o da mineração, fez com que o governo, no mínimo, desacelerasse suas ações de mudança e de revisão de direitos. Isso nos garantiu mais tempo para que possamos agir. Em 2018, talvez mais do que nunca, nossa mobilização será fundamental para o futuro do país.

 

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