Negligência histórica

Negligência histórica

“Fomos apresentados a Zumbi e outros personagens negros de nossa História pelo Carnaval”, lembrou Flávia Oliveira, jornalista e conselheira de Uma Gota no Oceano, em nossa última live. Por causa dessa negligência histórica mesmo ela, sambista militante cujo coração bate na cadência da bateria da Beija-Flor de Nilópolis, descobriu somente há 9 anos sua ascendência quilombola. “Confunde-se o movimento negro com o quilombola, que tem reivindicações específicas”, disse ela, na conversa que teve com Miguel Pinto Guimarães, arquiteto, urbanista e presidente de nosso conselho. Os quilombos também têm sido vítimas do descaso do governo – que chegou a lhes negar água, em veto à lei de proteção aos povos tradicionais durante a pandemia – no combate ao coronavírus.

Hoje é difícil acreditar, mas quando o Movimento Gota D’Água surgiu ainda tinha gente que pensava que não existiam mais indígenas no Brasil. De 2011 – quando começamos nossa campanha contra a construção da Usina de Belo Monte – para cá, muita coisa mudou: Sonia Bone Guajajara foi candidata à vice-Presidência da República, a deputada Joênia Wapichana é figura de destaque no Congresso Nacional, e a voz dos povos originários está mais potente como um todo e reverbera no mundo inteiro. Ainda assim, eles continuam forçados a recorrer à Justiça para que seus direitos prevaleçam. Quando Uma Gota no Oceano foi convidada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) para trabalhar com a causa quilombola, em 2017, ela tinha menos visibilidade ainda do que a indígena. “Até hoje tem gente que acredita que os quilombos acabaram com Palmares”, lembrou Flávia. Em fevereiro de 2018, os direitos dos quilombolas foram reafirmados em julgamento histórico no STF; mas, assim como acontece com os dos indígenas, continuam sendo desdenhados.

Segundo dados da Conaq e do Instituto Socioambiental (ISA), até o dia 13, 133 quilombolas tinham morrido e havia 3.465 infectados. O Estado do Rio de Janeiro lidera em número de mortes de quilombolas. “A interação com áreas urbanas facilita o contágio”, disse Flávia. Não à toa, o quilombo mais atingido é o Dona Bilina, que fica na Zona Oeste da capital fluminense (a região mais afetada da cidade), que registra 72% do total de mortos do estado. Só que, diferentemente dos indígenas, recenseados em 2010, não sabemos quantos quilombolas há no Brasil. Para ajudar no combate à pandemia, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) adiantou dados preliminares primeiro censo oficial desta população, que será concluído em 2021. Assim, ficamos sabendo que o país tem 5.972 localidades quilombolas, que estão divididas em 1.672 municípios. Acabaram-se as desculpas: tem quilombo no país inteiro e só não ver quem não quer. Não há justificativa para o governo deixá-los desamparados na luta contra a Covid-19.

É preciso reforçar: nem todos os negros são quilombolas – embora sejam a maioria – e nem todo quilombola é negro. Os negros vieram da África, mas quilombos são espaços de liberdade, não colônias estrangeiras; recebiam refugiados de diversos povos. Mas também há negros que desconhecem suas origens. Flávia só descobriu sua ascendência quando da morte repentina de sua mãe, baiana de Cachoeira: “A partir daí, comecei a me aprofundar em sua ancestralidade. Fiz um teste para um documentário chamado ‘Brasil DNA África’ e me descobri descendente da linhagem Balanta, de um território que hoje é a Guiné-Bissau. Eu nunca soube disso e em 2016 fiz uma viagem de pesquisa à Bahia com minha filha, em busca de nossas origens”. A jornalista acabou descobrindo que as terras que pertenceram ao seu bisavô deram origem ao Quilombo Tabuleiro da Vitória. “O censo de 2021 será a oportunidade de revelar de vez esse Brasil que muita gente não sabe que existe”, disse ela. Quilombos não só ajudam a preservar a natureza como guardam importantes tradições. São um patrimônio do Brasil. A cultura popular e os movimentos sociais mantiveram vivas a memória de Zumbi; hoje cabe à sociedade como um todo defender o seu legado.

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Deixem os quilombolas ficarem em casa

Deixem os quilombolas ficarem em casa

Diz-se que o Brasil é um país sem memória. Então vale relembrar: os portugueses chegaram aqui em 1500 e trouxeram os primeiros negros africanos para a Capitania de Pernambuco entre 1539 e 1542. O regime escravocrata só foi oficialmente abolido em 13 de maio de 1888 – ou seja, durou cerca de 350 anos, dois terços de nossa História oficial. Entretanto, o direito às terras que eles conquistaram em sua luta pela liberdade só foi reconhecido um século depois, pela Constituição de 1988. Nesses tempos de pandemia de coronavírus, o bom senso e a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendam o isolamento social como a melhor forma de prevenção. Mas tem gente querendo despejar os quilombolas. No último dia 10 de março, em evento para empresários na Flórida – na fatídica viagem que teve como saldo metade da comitiva presidencial infectada pela covid-19 –, Jair Bolsonaro ameaçou: “Essas demarcações de terras quilombolas, têm 900 na minha frente para serem demarcadas, não podem ocorrer”.

Somente sete anos depois da promulgação da Constituição titulou-se a primeira, a Comunidade Boa Vista, no Pará. Até hoje, apenas 39 territórios foram titulados pelo governo federal. “Somos um só povo, uma só raça”, também disse o presidente naquela ocasião, como se o direito dos quilombolas fosse um privilégio. Isso ninguém discute: eles são brasileiros e pertencem à raça humana. Mas também tiveram garantido o direito à manutenção de sua cultura própria por meio dos artigos 215 e 216 da Constituição. O primeiro determina que o Estado proteja as manifestações culturais afro-brasileiras; já o segundo considera patrimônio cultural brasileiro, a ser promovido e protegido pelo Poder Público, os bens de natureza material e imaterial dos diferentes grupos que formam a sociedade brasileira garantindo, assim, sua diversidade. Democracia pressupõe igualdade na diversidade.

Só em 2003 o Decreto 4887 regularizou definitivamente o processo de demarcação de terras de descendentes de africanos escravizados. Esta deliberação foi alvo de uma Ação Indireta de Inconstitucionalidade (ADI), ajuizada pelo DEM – na época ainda PFL. O processo se arrastou de 2012 até 8 de fevereiro de 2018, quando finalmente o Supremo Tribunal Federal, por dez votos a um, considerou a ADI improcedente. Foi uma vitória histórica, que acreditava-se definitiva. O Decreto 4887 também reservou à Fundação Cultural Palmares a competência pela emissão de certidões para titulações de comunidades quilombolas. Desde então, foram emitidas 3.271.

Bolsonaro pode dizer o que quiser, mas não pode agir inconstitucionalmente; então adotou a mesma estratégia que vem usando contra os povos indígenas: enfraquece instituições com a intenção de retardar os processos. Ele mantém na presidência da fundação um negro que nega o racismo. Sérgio Camargo foi levado ao cargo por Roberto Alvim, o ex-secretário de Cultura demitido por fazer um discurso de inspiração nazista. E vem seguindo a mesma cartilha: extinguiu sete colegiados e exonerou alguns de seus principais quadros.

Os ataques continuaram: em 27 de março, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, numa escapulida que deu de sua quarentena, publicou a Resolução nº 11. Havia a suspeita de que ele tinha contraído a Covid-19 na tal viagem à Flórida. E o objetivo do texto era remover, em plena pandemia, 792 famílias (cerca de duas mil pessoas) de 27 comunidades quilombolas no Maranhão. A área de 12.645 hectares seria destinada à expansão do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). O Ministério Público Federal (MPF) protestou contra essa temeridade e no dia 2 de abril foi firmado um compromisso entre representantes do Ministério da Defesa e do GSI para que a remoção não seja feita enquanto durar a pandemia. Será? Um estudo publicado na revista “Science” no último dia 14, assinado por cinco pesquisadores da Universidade de Harvard, projeta que pode haver necessidade de distanciamento e quarentena até 2022.

Alcântara é o município com o maior número de comunidades quilombolas do Brasil: são 200 comunidades, mais de 3 mil famílias, cerca de 22 mil pessoas. Existem quilombos em todas as regiões do país. Os ainda não titulados enfrentam dificuldades para ter acesso a serviços básicos, como transporte, educação e saúde. A infraestrutura médica é precária. Tanto nos EUA quanto aqui, a maior parte dos mortos pela Covid-19 são pessoas negras. Por saberem de todos esses riscos, os quilombolas têm agido com mais responsabilidade do que a maioria da população. Segundo o monitoramento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), até o dia 21 havia apenas sete casos confirmados e duas mortes (uma no Amapá e outra em Pernambuco). Os quilombolas querem e estão se esforçando para respeitar a quarentena. Vamos deixá-los ficarem em casa?

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#SomosTodosQuilombolas

#SomosTodosQuilombolas

O governo avança vorazmente sobre os nossos direitos, sem distinção: sejam trabalhadores da cidade ou do campo, sejam os povos tradicionais, estamos todos sendo prejudicados. E os ataques vêm do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Por isso, é importante que estejamos unidos. A causa deles deve ser nossa também. Quilombolas são brasileiros como nós. Somos todos quilombolas! Assine a nossa petição!

Ficha técnica:

Argumento: Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)
Elenco: Ícaro Silva e Letícia Colin
Roteiro: Letícia Leite (Instituto Socioambiental – ISA)
Direção: Maria Paula Fernandes (Uma Gota No Oceano)
Edição: Bruno Marques e Eduardo Souza Lima (Uma Gota No Oceano)
Diretor de fotografia: Guga Dannemann
Assistente de áudio: Vitor Aguiar
Produção: Bruno Marques (Uma Gota No Oceano)
Agradecimento especial: Mabel Arthou

Os 30 anos da Constituição Verde

Os 30 anos da Constituição Verde

Em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a nova Constituição Federal do Brasil. Meus pais não eram casados e eu nem pensava em nascer. Desde fevereiro de 1987, 72 senadores e 487 deputados federais trabalhavam intensamente, em parceria com a sociedade, para elaborar nossa nova Carta Magna. Quando a Constituição Cidadã nasceu, o país mal tinha saído de 21 anos de uma ditadura militar e, por isso, se tornou o principal símbolo do processo de redemocratização nacional. Ela assegura nossa liberdade e os direitos dos cidadãos, incluindo os povos indígenas e quilombolas.

O Artigo 231 deixa claro que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. E a Carta também garante os territórios, usos e costumes dos povos indígenas, além das áreas ocupadas por descendentes de quilombolas, reconhecendo a pluralidade étnica e cultural do Brasil e, por isso, ela é considerada um marco. E não custa lembrar que esses povos tradicionais estavam no Brasil lutando pelo direito de serem reconhecidos e terem suas terras demarcadas muito antes de você e eu estarmos por aqui. 

Também conhecida como Constituição Verde, ela também protege nossas florestas, rios e mares, ao reconhecer o Meio Ambiente como um direito fundamental do povo brasileiro. O Artigo 225 diz: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Nesta semana em que a Constituição completa 30 anos teremos as eleições gerais, vamos eleger os novos congressistas e também o ou a presidente da República. E eu fico pensando que, felizmente, não presenciei a ditadura, mas a estudei e foi o suficiente para me causar pavor e saber que não seria este o país que eu desejaria para o meu futuro.

Tenho 25 anos, sou recém-formado em jornalismo e trabalho em uma ONG que lida com questões socioambientais. Neste contato direto com povos indígenas e quilombolas, vejo o quanto ainda precisamos caminhar para garantir na prática tudo o que está escrito na nossa Constituição. Sei que é um processo difícil e que demanda tempo. Mas devemos reconhecer a importância da nossa Carta Magna. Ela deve ser preservada. É por isso que vim aqui deixar meu recado e lembrar que precisamos estar conscientes de que nosso voto é o motor que vai impulsionar nosso país pra frente.

Bruno Marques,

jornalista das redes sociais da Uma Gota no Oceano.

 

O campo à mercê da intoxicação aguda por agrotóxicos

O campo à mercê da intoxicação aguda por agrotóxicos

O veneno bate à porta. A Human Rights Watch divulgou hoje (20/7) um estudo que registra casos de intoxicação aguda por agrotóxicos em sete comunidades rurais, entre elas quilombolas e indígenas, de sete estados do Brasil.

Para a pesquisa, 73 pessoas foram entrevistadas. Entre os sintomas relatados estão vômito, diarreia, dormência, irritação nos olhos, dor de cabeça e tontura.

Moradores de cinco das sete localidades também dizem que chegaram a ser ameaçados de morte, caso denunciassem os casos. Há escolas que foram atingidas por agrotóxicos pulverizados por aviões. Em nome de que jogam veneno sobre nossas crianças?

Via G1

Foto: Marizilda Cruppe/Human Rights Watch

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