março 2025 | Direitos indígenas, Mudanças Climáticas, Povos Tradicionais, Quilombola
O artigo abaixo mostra que, em um marco histórico para a agenda climática no Brasil, o Observatório do Clima (OC) elegeu, pela primeira vez, uma indígena e uma quilombola para sua coordenação. A rede climática é a maior do país, composta por 133 organizações. A entrada dessas duas lideranças atenta para a importância da demarcação de territórios, da proteção de comunidades tradicionais e do combate às mudanças climáticas. O texto foi publicado na Folha de S.Paulo em 23 de março de 2025. A Gota, como membro da rede do Observatório do Clima, reforça a importância dessa conquista. Confira:
Indígena e quilombola ingressam na coordenação da maior rede climática do Brasil
Em oposição a retrocessos na agenda de diversidade e inclusão, Observatório do Clima tem composição inédita em sua gestão
Cristiane Fontes
Duas mulheres que são expressão da imensa diversidade do Brasil e possuem atuações pioneiras passam agora a integrar a coordenação do OC (Observatório do Clima), a maior rede climática do Brasil, composta por 133 organizações.
Deroní Mendes, do ICV (Instituto Centro de Vida), e Valéria Paye, da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), foram eleitas na última reunião anual do OC, realizada em fevereiro em São Paulo. O encontro teve a participação de quase 200 representantes, a maior assembleia desde a fundação da rede, em 2002.
Valéria Paye, indígena dos povos tiriyó e kaxuyana da aldeia Missão Tiriyó, no Pará, perto da fronteira com o Suriname, é graduada em ciências sociais pela UnB (Universidade de Brasília) e foi a primeira mulher indígena a assumir a representação política da Coiab em Brasília, em 2008. Desde então, participou da fundação da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e da organização dos diversos ATLs (Acampamentos Terra Livre), a maior assembleia dos povos e organizações indígenas do Brasil.
Em 2018, integrou a coordenação executiva da Apib, substituindo a atual ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, que estava em campanha política. Em 2020, tornou-se diretora-executiva do Podáali – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, o primeiro fundo criado por e para indígenas no país.
Já Deroní Mendes é quilombola, a nona de 11 filhos de agricultores tradicionais de Vila Bela da Santíssima Trindade, no sudoeste de Mato Grosso, onde a heroína negra Tereza de Benguela (1700-1770) liderou o Quilombo de Quariterê, o maior do estado, por mais de duas décadas.
Ela migrou da área rural para estudar e ingressou no terceiro setor cuidando da biblioteca do escritório Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) em Cáceres, onde cursava geografia na Unemat (Universidade do Estado do Mato Grosso). Vicente Puhl, então coordenador da Fase por lá, que empregava duas de suas irmãs —uma como faxineira e a outra como babá—, a convidou após saber das péssimas condições de trabalho dela em uma loja na cidade.
Mendes entrou no ICV em 2007, como assistente de projetos, deixando a organização em 2009 para ingressar no Instituto Indígena Maiwu de Estudos e Pesquisas de Mato Grosso. Retornou ao instituto em 2012, desde então envolvida com o fortalecimento da agenda de políticas para povos e comunidades tradicionais e meio ambiente. Atualmente, é coordenadora do programa de transparência e justiça climática.
“A minha chegada e a da Deroní representam a inclusão da visão indígena e de uma mulher negra em um ambiente acadêmico elitizado e, até o momento, predominantemente branco”, diz Paye. Ela descreve a nova etapa como um grande desafio, seja pela composição do observatório, seja pela consciência da importância de assumir esse espaço no atual contexto geopolítico.
Em novembro, o Brasil sediará, em Belém, a COP30, conferência do clima das Nações Unidas, enquanto diversos países e empresas recuam de seus compromissos climáticos e cancelam políticas de inclusão e diversidade.
Mendes diz ter sentido surpresa e certa apreensão com a eleição para o cargo, pelo peso das organizações e profissionais da instituição. “Eu recebi a notícia com orgulho. Nunca antes uma quilombola e uma indígena estiveram nesse lugar. Depois disso, muitas outras virão, com certeza. E acredito que deixaremos a nossa contribuição.”
Elas dividem a coordenação com Adriana Ramos, assessora de política e direito socioambiental do ISA (Instituto Socioambiental), Andréia Bavaresco, coordenadora executiva do IEB (Instituto Internacional de Educação do Brasil), Ane Alencar, diretora de ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), e Délcio Rodrigues, diretor do Instituto ClimaInfo.
“A entrada delas é algo inédito. Ter uma indígena e uma quilombola, ambas ao mesmo tempo, é um ineditismo duplo. Também é parte de um processo de alargamento das fronteiras da agenda climática para além da agenda técnica e de negociação, algo que começamos a materializar há alguns anos”, afirma Márcio Astrini, secretário-executivo do OC, reeleito no cargo, por mais cinco anos, na última assembleia.
A médio prazo, Astrini expressa o desejo de que, ao deixar a rede, seu lugar seja ocupado por uma mulher, preferencialmente negra, quilombola ou indígena.
Adriana Ramos reforça que as mudanças ocorrem porque “a diversidade dentro da rede aumentou, exigindo que as instâncias de gestão e governança refletissem” o mesmo. “É uma alegria ter conosco duas mulheres que são muito ativas, militantes, extremamente competentes, reconhecidas.”
Na coordenação da rede, tanto Mendes quanto Paye têm como prioridade ampliar a pauta da defesa dos territórios e da diversidades de povos indígenas e comunidades tradicionais.
“É preciso ter um GT [grupo de trabalho] de demarcação e titulação de territórios de povos e comunidades tradicionais, para fazer essa pauta avançar dentro do Congresso, em outros espaços”, diz Mendes. “Esses territórios e nossas práticas são essenciais para evitar que as temperaturas globais ultrapassem 1,5°C de aquecimento [meta do Acordo de Paris], então precisam ser protegidos, titulados e demarcados.”
Nesse sentido, o antropólogo Aurélio Vianna, oficial de programas sênior da iniciativa internacional Tenury Facility, diz que o OC ganha muito com a indicação de Valeria Paye, por sua experiência na gestão de fundos para indígenas.
“Ela demonstra que é possível os indígenas constituírem seus próprios fundos e participarem das discussões globais sobre financiamento climático. Hoje, é uma das vozes mais relevantes nas conversas sobre o acesso de povos, comunidades e organizações indígenas a recursos da cooperação internacional e da filantropia”, avalia.
Mendes e Paye também destacam a necessidade de proteger os territórios quilombolas e indígenas diante do aumento da vulnerabilidade causado pela aceleração da crise climática, que coloca em risco a segurança alimentar.
“A agenda de adaptação é muito nova. Agora que a gente começa a escutar os nossos parentes a falarem disso, porque as queimadas, as secas, as cheias realmente estão afetando os territórios, não só materialmente, mas também culturalmente”, diz Paye.
“Na região do Oiapoque [no Amapá], tem uma praga resistente que está afetando a plantação do bem mais importante para os povos de lá, que é a mandioca. A farinha pode ser comprada, mas há todo um saber e uma cultura ao redor do plantio que não estão conseguindo praticar”, exemplifica.
O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.
agosto 2024 | Direitos humanos, Povos Tradicionais, Quilombola, Quilombolas
Resíduos da lógica escravocrata
Por: Deborah Duprat, Vercilene Dias e Élida Lauris
O projeto colonial que se desenvolveu no Brasil teve por princípio criar aquilo que Achille Mbembe chama de “um mundo composto por duas categorias de pessoas: de um lado, os sujeitos que agem, do outro, os objetos sobre os quais se intervém”. O escravizado, assim, é a experiência da cisão do humano e da ausência de autonomia, vontade e razão. Essa violência a um só tempo de dessubjetivação, exploração e extermínio foi o embrião dos grandes genocídios do século XX.
A transferência da violência em suas formas mais abjetas para o solo europeu foi o motor da criação, logo após a Segunda Guerra Mundial, da Organização das Nações Unidas e da subsequente Declaração Universal dos Direitos Humanos, que formula um regime de direitos universais para todas as pessoas. Perante esse regime de direitos, Estados, como o brasileiro, assumem o compromisso com sociedades inclusivas, diversas e orientadas pela paz. Isso é o que também diz a nossa Constituição, que anuncia a igualdade e a justiça como valores supremos.
As normas de direitos humanos partem de duas premissas muito simples: a violação deve ser investigada e punida em tempo razoável e as vítimas e seus familiares devem ter centralidade nos processos de apuração de responsabilidade. O Estado brasileiro já foi condenado por diversas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não tomar medidas eficazes para reprimir delitos e proteger pessoas, gerando impunidade e violando direitos humanos. São exemplos disso os casos Ximenes Lopes, Sétimo Garibaldi, Escher, Gomes Lund, Favela Nova Brasília, Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, Herzog, Fábrica de Fogos de
Santo Antônio de Jesus, Márcia Barbosa e Sales Pimenta.
Nos assassinatos de pessoas quilombolas, da falta de ação eficaz do Estado brasileiro decorre uma situação intolerável de impunidade sistêmica. O assassinato de Mãe Bernadete expôs de forma crua o problema da omissão e da falta de diligência devida nos homicídios de quilombolas. Com sua morte, a sociedade tomou conhecimento de que ela lutava há mais de seis anos por justiça pelo assassinato de seu filho Flávio Gabriel Pacífico, o Binho do Quilombo. Depois de a própria família ter conduzido investigações para elucidar o caso, suspeitos da morte de Binho foram finalmente identificados no último mês de julho.
Dados inéditos da Conaq, reunidos no relatório “Assassinatos de Quilombolas – ameaças a quilombolas defensores de direitos humanos 2019-2024”, apontam para uma quantidade desproporcional de homicídios de pessoas quilombolas nos estados do Maranhão, da Bahia e do Pará, assim como a lentidão absurda nos processos de titulação dos quilombos. As duas questões se alimentam e mantêm os resíduos de uma lógica escravocrata: negar direitos e eliminar corpos negros.
É a própria Constituição brasileira que afirma o reconhecimento do domínio das terras que comunidades quilombolas ocupam. A inércia do Estado na titulação reforça a percepção dos grupos hegemônicos de que são os únicos portadores de direitos, inclusive a ideia de que seu poder inclui o uso inconsequente da violência. Quando os processos judiciais se eternizam, os fatos não são devidamente investigados e os agressores não são responsabilizados, vai sendo semeada a certeza da impunidade e a de que o direito à vida da população quilombola não é fundamental para o Estado brasileiro.
Poucos meses antes de sua morte, Mãe Bernardete tinha estado com a Presidente do Supremo Tribunal Federal em visita ao Quilombo Quingoma, na Bahia. Em sessão do Colegiado, a Ministra afirmou que “ainda temos um longo caminho a percorrer, como sociedade, no sentido de um avanço civilizatório e da efetivação dos direitos fundamentais que nossa Constituição Cidadã assegura a todos”. Quanto as famílias quilombolas ainda terão que percorrer? Quando alcançarão paz, segurança e direitos nos seus territórios?
Deborah Duprat é Advogada e subprocuradora-geral da República aposentada
Vercilene Dias é Quilombola do Quilombo Kalunga, coordenadora do Coletivo Jurídico da CONAQ, doutoranda em Direito pela UnB, pesquisadora, e especialista em direitos quilombolas
Élida Lauris é Doutora em Sociologia, pesquisadora em direitos humanos, especialista em violência contra quilombolas defensores de direitos humanos
*Publicado no Correio Brasiliense, em 18 de agosto de 2024.
janeiro 2024 | Agronegócio, Catástrofe ambiental, Cerrado, Deforestation, Desmatamento, Povos Tradicionais, Quilombola
Kátia Penha e Tasso Azevedo*
É preciso cuidar da saúde do corpo inteiro, não apenas de um órgão. O fechamento dos dados do DETER para ano de 2023 publicado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou que, apesar da redução de 50% do desmatamento na Amazônia, houve um aumento de 43% no Cerrado. A maior floresta tropical do mundo voltou a receber os cuidados necessários, enquanto nosso segundo maior bioma, tão vital quanto ela, não teve o mesmo tratamento e perdeu mais de 7,8 mil km² de vegetação nativa em 2023.
A crise climática pôs os olhos do mundo sobre a Amazônia, mas se nem todos lá fora conhecem a importância do Cerrado, aqui ela deveria ser óbvia: é nele que nascem oito das 12 maiores bacias hidrográficas brasileiras, incluindo a do São Francisco, da qual dependem 16 milhões de pessoas. A realidade do bioma exige uma estratégia de ação diferente da Amazônia.
Enquanto na Amazônia a maioria da terra é pública e a proporção de área passível de desmatamento em propriedades rurais é de 20%, no Cerrado, a maioria das áreas é privada e a área autorizável para desmatamento chega a 80%. Por outro lado, a legislação europeia que trata da proibição da importação de produtos oriundos de áreas desmatadas leva em conta uma definição da FAO, que deixa de fora mais de 70% da área remanescente de Cerrado. Como existe a expectativa que essa definição seja revista em breve, indivíduos correm para desmatar enquanto podem.
Para reverter o quadro no Cerrado, três ações são fundamentais. Primeiro, ampliar as áreas protegidas (Unidades de Conservação e Terras Indígenas) do bioma para pelo menos 30% de sua área. A Amazônia tem mais de 40% de seu território resguardado, enquanto no Cerrado essa proporção fica entre 12% e 14%. Outra medida não menos eficaz é não dar subsídios para a agricultura em áreas onde há desmatamento. Isso se traduz em eliminar a aplicação dos recursos do Plano Safra em áreas desmatadas recentemente – seja legal ou ilegal.
Uma terceira ação deve ser criar um mecanismo de pagamento por manutenção da vegetação nativa que, ao mesmo tempo, serviria de incentivo para conservar e um desincentivo para desmatar. O Brasil apresentou na última COP uma proposta em que se paga uma quantia por ano por hectare preservado e desconta o equivalente a 100 hectares para cada um desmatado. Porém, na ponta do lápis, deixar o bioma na mão de quem sabe cuidar dele é a opção mais lógica e viável, e menos onerosa.
Os territórios quilombolas têm sido barreiras contra o desmatamento desenfreado: dados do MapBiomas mostram que entre 1985 e 2022, a perda de vegetação nativa em quilombos foi de 4,7%, contra 25% em terras privadas. No Cerrado, há 63 deles.
Não à toa, em 2021 o Quilombo Kalunga, o maior do país, foi reconhecido pelo Protected Planet, um programa ambiental da ONU, como o primeiro Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do Brasil. O Kalunga tem 2.620 km², porém somente 49% dessa área está regularizada.
Atualmente tramitam pelo Incra 1.787 processos de titulação de quilombos e, até hoje, só 207 foram titulados, sendo 59 parcialmente – como é o caso do Kalunga –, que somam 38 mil km², o equivalente a 0,5% do território nacional. É uma condição necessária para a sobrevivência não só do povo quilombola, mas de todos. Nós dependemos do Cerrado de pé e vivo; ele é um órgão fundamental para o corpo Terra.
*Kátia Penha é coordenadora nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)
*Tasso Azevedo é engenheiro florestal e coordenador geral do MapBiomas
agosto 2023 | Uncategorized
Pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas nos últimos dez anos, segundo a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ). Uma delas foi Flávio Gabriel dos Santos, o Binho do Quilombo, filho de Mãe Bernadete, morto em 2017. A matriarca do quilombo Pitanga dos Palmares foi assassinada na semana passada por lutar por justiça e pela proteção do território tradicional. Mãe Bernadete sabia que a regularização fundiária, com a titulação dos quilombos, é o primeiro passo para combater a violência contra a população quilombola. Quilombo é questão de segurança alimentar, climática e pública – a última, um dever do Estado. O coração quilombola precisa bater cada vez mais forte.
Depois de ser adiado duas vezes seguidas, o novo Censo do IBGE finalmente revelou o tamanho de nosso coração quilombola: são 1,32 milhão de pessoas que pulsam em 1.696 municípios, em todas as regiões do Brasil – e em todos os estados, exceto Acre e Roraima. O instituto identificou 494 territórios oficialmente delimitados, que abrigam 203.518 moradores. Ou seja, a imensa maioria deles (87,4%) ainda reside no limbo da burocracia e da ganância de alguns. A Constituição de 1988 reconheceu sua existência e seus direitos, mas só agora eles começam a entrar na sala das decisões. Eles devem entrar.
É verdade que hoje há representantes quilombolas no Executivo e o Censo os localizou no mapa. Essa população e o Estado nunca tiveram tais ferramentas nas mãos: informação e a possibilidade de realizar. Chegou a hora de os quilombos se inserirem definitivamente no centro das decisões. Um exemplo prático: com esses dados detalhados sobre a localização das comunidades e o tamanho exato dessa a população – antes apontados como a razão de que para que as políticas públicas voltadas para eles estivessem absurdamente defasadas no orçamento federal – os recursos teriam mais chance de chegar aonde são mais necessários. A começar pelas ações de reconhecimento, demarcação e titulação dos territórios quilombolas.
Para que isso aconteça, é preciso incluir políticas públicas exclusivamente voltadas à população quilombola no Plano Plurianual. Conhecido como PPA, ele define critérios e objetivos de longo prazo do governo. Uma prioridade é óbvia: a legalização da posse da terra, primeiro passo para garantir o acesso dos quilombolas a outros direitos constitucionais. De outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição, até agora, menos de 200 das cerca de 6 mil comunidades foram tituladas – o ponto final de um longo processo de regularização fundiária que passa por dois órgãos: Fundação Palmares e Incra. Nesse ritmo, só daqui a dois mil anos as 1.896 ações de ações em andamento serão concluídas.
A segunda maior concentração de quilombolas do país, cerca de 430 mil pessoas (32,1% do total), está na Amazônia Legal, que tem 148 quilombos titulados e outros 583 em processo de titulação. Nas terras que ocupam, o desmatamento é próximo do zero há 13 anos; sua importância no combate à crise climática é sabido. Mas as comunidades precisam ser legalizadas para que possam ser melhor protegidas pelo Estado. O tráfico e seus pistoleiros de aluguel são apenas mais uma ameaça. A maior é aquela desde sempre: a invasão de terras. Não se trata apenas de proteger a natureza, mas também de se salvar vidas humanas, como a de Mãe Bernadete Pacífico.
Mãe Bernadete era mulher no quinto país que mais pratica o feminicídio no mundo, um número que cresceu 6,1% em 2022, chegando a 1.437 mortas. É negra, e pessoas com a mesma cor de pele que ela têm três vezes mais chances de serem assassinadas, além de serem as que mais morrem pelas mãos do Estado: em média, cinco pessoas negras foram mortas, por dia, em ações policiais, em 2021. Em números totais: os negros representam 65% dos 2.154 óbitos registrados na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo estados monitorados pela Rede de Observatórios em Segurança Pública. Ela também era ialorixá, em tempos em que a intolerância contra religiões de matriz africana dispara: em 2020, foram registrados 86 casos de violência, enquanto, em 2021, eles chegaram a 244, um aumento de 183%. Mas foi covardemente assassinada aos 72 anos por questões fundiárias, dentro da associação do Quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia.
Os assassinatos no campo tiveram um aumento de 30% entre 2021 (35 mortos) e 2022 (47, com nove adolescentes e uma criança entre eles), aponta a Comissão Pastoral da Terra. E as lideranças comunitárias são os alvos mais frequentes dessa violência. Mãe Bernadete exercia uma liderança natural, tanto religiosa como política, na sua comunidade, localizada na região metropolitana de Salvador (BA). Cerca de 290 famílias vivem no local de 8,54 km². A associação de moradores local reúne 120 agricultores que produzem farinha, frutas e verduras. Foi certificado em 2004, mas ainda não foi titulado. Por isso, é mais cobiçado.
De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas nos últimos dez anos. A própria Bernardete pedia Justiça por seu filho, Flávio Gabriel dos Santos, o Binho do Quilombo, morto por um grupo de homens armados em 2017. Ao legalizar territórios, a violência diminuirá. Quilombo é questão de segurança alimentar, climática e pública – a última, um dever do Estado. O coração quilombola precisa bater cada vez mais forte.
Marco temporal é racismo fundiário (artigo de Biko Rodrigues)
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/07/marco-temporal-e-racismo-fundiario.shtml
Ao menos 30 líderes quilombolas foram assassinados nos últimos dez anos, diz entidade
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/ao-menos-30-lideres-quilombolas-foram-assassinados-nos-ultimos-dez-anos-diz-entidade.shtml
Morta a tiros na Bahia, Bernadete Pacífico falou sobre violência contra quilombolas em encontro com presidente do STF em julho
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/08/18/morta-a-tiros-na-bahia-bernadete-pacifico-falou-sobre-violencia-contra-quilombolas-em-encontro-com-presidente-do-stf-em-julho.ghtml
Censo do IBGE: quase um terço dos quilombolas do Brasil mora na Amazônia Legal
https://g1.globo.com/economia/censo/noticia/2023/07/27/censo-do-ibge-quase-um-terco-dos-quilombolas-do-brasil-mora-na-amazonia-legal.ghtml
Comunidade quilombola liderada por Mãe Bernadete enfrenta luto e medo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/comunidade-quilombola-liderada-por-mae-bernadete-enfrenta-luto-e-medo.shtml
Vítimas de violência em conflito por terra, quilombolas ainda são “apagados” em decisões políticas
https://oeco.org.br/reportagens/vitimas-de-violencia-em-conflito-por-terra-quilombolas-ainda-sao-apagados-em-decisoes-politicas/
Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas em 1.696 municípios
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37464-brasil-tem-1-3-milhao-de-quilombolas-em-1-696-municipios#:~:text=O%20Censo%202022%20mostrou%20que,total%20de%20quilombolas%20do%20pa%C3%ADs.
A importância do Censo na formulação de políticas públicas para quilombolas
https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2023/08/19/a-importancia-do-censo-na-formulacao-de-politicas-publicas-para-quilombolas.htm
No atual ritmo, Brasil levará 2.188 anos para titular todos os territórios quilombolas com processos no Incra
https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/no-atual-ritmo-brasil-levara-2188-anos-para-titular-todos-os-territorios-quilombolas-com-processos-no-incra/23871
1.437 mulheres foram mortas no Brasil simplesmente por serem mulheres
https://observatorio3setor.org.br/noticias/1-437-mulheres-foram-mortas-no-brasil-simplesmente-por-serem-mulheres/
Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio no mundo
https://www.camara.leg.br/tv/553531-brasil-tem-a-quinta-maior-taxa-de-feminicidio-no-mundo/
Negros são maioria dos mortos em ações policiais
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-11/negros-sao-maioria-dos-mortos-em-acoes-policiais
Risco de assassinato é 3 vezes maior para negros do que para não negros no Brasil
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/11/risco-de-assassinato-e-3-vezes-maior-para-negros-do-que-para-nao-negros.shtml
Casos de ataques às religiões de matriz africana crescem 270%
https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-01/casos-de-ataques-religioes-de-matriz-africana-crescem-acima-de-270#:~:text=Em%202021%2C%20as%20notifica%C3%A7%C3%B5es%20contra,mu%C3%A7ulmana%2C%20judaica%20e%20a%20ind%C3%ADgena.
julho 2023 | Direitos humanos, Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Povos Tradicionais, Protected areas, Quilombola, Quilombolas
O Senado Federal retoma as atividades no dia 1º de agosto com a ameaça de votar o PL 2903, que propõe transformar a tese do “marco temporal” em lei. Um precedente para outras armadilhas, como o PL 1942/2022, considerado uma bomba-relógio plantada no Congresso contra os quilombolas.
Por Biko Rodrigues*
No mês passado, a chamada Abolição da Escravatura completou 135 anos, mas ainda há os que não se conformam com nossa autonomia.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) votou contra a adoção de um “marco temporal” em relação aos territórios quilombolas. “As comunidades quilombolas chegaram ao Brasil em um processo da escravidão. Remeter essa luta histórica a 1988 é deslegitimar todo o processo histórico do país”, declarou, na época, o ministro Luís Roberto Barroso. Além de considerar a tese inconstitucional, a decisão ainda foi ratificada dois anos depois pelo mesmo STF.
Acreditávamos ter exorcizado essa assombração naquela ocasião, mas o Congresso está tentando trazê-la de volta do Além. A bancada ruralista tenta passar um trator chamado projeto de lei (PL) 490/2007 por cima dos direitos de nossos irmãos indígenas —e sabemos que depois tentarão nos atingir.
Se os povos originários, os primeiros habitantes do Brasil, poderão ser obrigados a provar que estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988, imaginem nós, cujos ancestrais só chegaram depois de 1500? Os africanos escravizados vieram para cá contra sua vontade, mas também criaram raízes neste solo, os quilombos.
Há uma bomba-relógio plantada no Congresso contra nós. O PL 1942/2022 determina que só terá a posse definitiva da terra as comunidades quilombolas que a estavam ocupando na data da promulgação da atual Constituição. Detalhe: o autor do projeto tem como prenome Coronel, é do Partido Liberal, do ex-presidente que nos pesa em arrobas, e deputado por Santa Catarina, que só tem menos quilombos reconhecidos (19) que os estados de Rondônia, Roraima, Distrito Federal e Acre —onde o colonizador não se estabeleceu. Em nome de quem ele legisla?
Dizem que o tempo é o senhor da razão, mas “senhor” é uma palavra que causava arrepios em nossos ancestrais, e o tempo corre contra nós.
Existe um precedente perigoso. Da mesma forma que votaram o PL 490 em regime de urgência, podem fazer o mesmo com o 1942. Enquanto isso, os processos de titulação patinam no Incra: desde que conquistamos nossos direitos, há 34 anos, menos de 200 das 6.000 comunidades foram tituladas. Nesse ritmo, só daqui a cerca de 2.000 anos as 1.896 ações em andamento serão concluídas; e ainda há mais 4.000 que sequer iniciaram esse processo.
O que está acontecendo conosco tem nome e sobrenome: racismo fundiário. O marco temporal inverte a lógica judicial; exige de quem é acusado de não ser dono de sua terra comprovar que estava ali, quando o ônus da prova cabe ao acusador. Nos anos 1970/80, a grilagem prosperou como nunca no país, com indígenas e quilombolas sendo expulsos de suas terras sob a mira de armas. Nossas terras também foram comidas pelas beiradas, encolhendo aos poucos. Um exemplo disso é Brasília: a capital federal foi erguida em áreas que pertenciam ao Quilombo de Mesquita.
O PL 1942 ainda prevê a titulação individual dos territórios, não coletiva, como é hoje. Os quilombos são coletivos justamente para resguardar os direitos da coletividade. São inalienáveis, não podem ser vendidos, passam de geração para geração; quando a posse é individual, passa a seguir uma lógica mercadológica da terra. O Brasil precisa se aquilombar.
O país tem compromissos ambientais com o resto do mundo. Hoje, temos 148 quilombos titulados na Amazônia Legal; nos últimos 13 anos, o desmatamento neles foi zero. Quilombos são barreiras de proteção ao verde e ajudam a validar nossa carteira de potência ambiental.
*Biko Rodrigues é coordenador-executivo da Conaq – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas