Não adianta chorar sobre o Cerrado derrubado

Não adianta chorar sobre o Cerrado derrubado

Kátia Penha e Tasso Azevedo*

É preciso cuidar da saúde do corpo inteiro, não apenas de um órgão. O fechamento dos dados do DETER para ano de 2023 publicado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou que, apesar da redução de 50% do desmatamento na Amazônia, houve um aumento de 43% no Cerrado. A maior floresta tropical do mundo voltou a receber os cuidados necessários, enquanto nosso segundo maior bioma, tão vital quanto ela, não teve o mesmo tratamento e perdeu mais de 7,8 mil km² de vegetação nativa em 2023.

A crise climática pôs os olhos do mundo sobre a Amazônia, mas se nem todos lá fora conhecem a importância do Cerrado, aqui ela deveria ser óbvia: é nele que nascem oito das 12 maiores bacias hidrográficas brasileiras, incluindo a do São Francisco, da qual dependem 16 milhões de pessoas. A realidade do bioma exige uma estratégia de ação diferente da Amazônia. 

Enquanto na Amazônia a maioria da terra é pública e a proporção de área passível de desmatamento em propriedades rurais é de 20%, no Cerrado, a maioria das áreas é privada e a área autorizável para desmatamento chega a 80%. Por outro lado, a legislação europeia que trata da proibição da importação de produtos oriundos de áreas desmatadas leva em conta uma definição da FAO, que deixa de fora mais de 70% da área remanescente de Cerrado. Como existe a expectativa que essa definição seja revista em breve, indivíduos correm para desmatar enquanto podem.

Para reverter o quadro no Cerrado, três ações são fundamentais. Primeiro, ampliar as áreas protegidas (Unidades de Conservação e Terras Indígenas) do bioma para pelo menos 30% de sua área. A Amazônia tem mais de 40% de seu território resguardado, enquanto no Cerrado essa proporção fica entre 12% e 14%. Outra medida não menos eficaz é não dar subsídios para a agricultura em áreas onde há desmatamento. Isso se traduz em eliminar a aplicação dos recursos do Plano Safra em áreas desmatadas recentemente – seja legal ou ilegal.

Uma terceira ação deve ser criar um mecanismo de pagamento por manutenção da vegetação nativa que, ao mesmo tempo, serviria de incentivo para conservar e um desincentivo para desmatar. O Brasil apresentou na última COP uma proposta em que se paga uma quantia por ano por hectare preservado e desconta o equivalente a 100 hectares para cada um desmatado. Porém, na ponta do lápis, deixar o bioma na mão de quem sabe cuidar dele é a opção mais lógica e viável, e menos onerosa.

Os territórios quilombolas têm sido barreiras contra o desmatamento desenfreado: dados do MapBiomas mostram que entre 1985 e 2022, a perda de vegetação nativa em quilombos foi de 4,7%, contra 25% em terras privadas. No Cerrado, há 63 deles.

Não à toa, em 2021 o Quilombo Kalunga, o maior do país, foi reconhecido pelo Protected Planet, um programa ambiental da ONU, como o primeiro Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do Brasil. O Kalunga tem 2.620 km², porém somente 49% dessa área está regularizada.

Atualmente tramitam pelo Incra 1.787 processos de titulação de quilombos e, até hoje, só 207 foram titulados, sendo 59 parcialmente – como é o caso do Kalunga –, que somam 38 mil km², o equivalente a 0,5% do território nacional. É uma condição necessária para a sobrevivência não só do povo quilombola, mas de todos. Nós dependemos do Cerrado de pé e vivo; ele é um órgão fundamental para o corpo Terra.

*Kátia Penha é coordenadora nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)

*Tasso Azevedo é engenheiro florestal e coordenador geral do MapBiomas

O coração quilombola precisa bater mais forte

O coração quilombola precisa bater mais forte

Pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas nos últimos dez anos, segundo a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ). Uma delas foi Flávio Gabriel dos Santos, o Binho do Quilombo, filho de Mãe Bernadete, morto em 2017. A matriarca do quilombo Pitanga dos Palmares foi assassinada na semana passada por lutar por justiça e pela proteção do território tradicional. Mãe Bernadete sabia que a regularização fundiária, com a titulação dos quilombos, é o primeiro passo para combater a violência contra a população quilombola. Quilombo é questão de segurança alimentar, climática e pública – a última, um dever do Estado. O coração quilombola precisa bater cada vez mais forte.

Depois de ser adiado duas vezes seguidas, o novo Censo do IBGE finalmente revelou o tamanho de nosso coração quilombola: são 1,32 milhão de pessoas que pulsam em 1.696 municípios, em todas as regiões do Brasil – e em todos os estados, exceto Acre e Roraima. O instituto identificou 494 territórios oficialmente delimitados, que abrigam 203.518 moradores. Ou seja, a imensa maioria deles (87,4%) ainda reside no limbo da burocracia e da ganância de alguns. A Constituição de 1988 reconheceu sua existência e seus direitos, mas só agora eles começam a entrar na sala das decisões. Eles devem entrar.

É verdade que hoje há representantes quilombolas no Executivo e o Censo os localizou no mapa. Essa população e o Estado nunca tiveram tais ferramentas nas mãos: informação e a possibilidade de realizar. Chegou a hora de os quilombos se inserirem definitivamente no centro das decisões. Um exemplo prático: com esses dados detalhados sobre a localização das comunidades e o tamanho exato dessa a população – antes apontados como a razão de que para que as políticas públicas voltadas para eles estivessem absurdamente defasadas no orçamento federal – os recursos teriam mais chance de chegar aonde são mais necessários. A começar pelas ações de reconhecimento, demarcação e titulação dos territórios quilombolas.

Para que isso aconteça, é preciso incluir políticas públicas exclusivamente voltadas à população quilombola no Plano Plurianual. Conhecido como PPA, ele define critérios e objetivos de longo prazo do governo. Uma prioridade é óbvia: a legalização da posse da terra, primeiro passo para garantir o acesso dos quilombolas a outros direitos constitucionais. De outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição, até agora, menos de 200 das cerca de 6 mil comunidades foram tituladas – o ponto final de um longo processo de regularização fundiária que passa por dois órgãos: Fundação Palmares e Incra. Nesse ritmo, só daqui a dois mil anos as 1.896 ações de ações em andamento serão concluídas. 

A segunda maior concentração de quilombolas do país, cerca de 430 mil pessoas (32,1% do total), está na Amazônia Legal, que tem 148 quilombos titulados e outros 583 em processo de titulação. Nas terras que ocupam, o desmatamento é próximo do zero há 13 anos; sua importância no combate à crise climática é sabido. Mas as comunidades precisam ser legalizadas para que possam ser melhor protegidas pelo Estado. O tráfico e seus pistoleiros de aluguel são apenas mais uma ameaça. A maior é aquela desde sempre: a invasão de terras. Não se trata apenas de proteger a natureza, mas também de se salvar vidas humanas, como a de Mãe Bernadete Pacífico.

Mãe Bernadete era mulher no quinto país que mais pratica o feminicídio no mundo, um número que cresceu 6,1% em 2022, chegando a 1.437 mortas. É negra, e pessoas com a mesma cor de pele que ela têm três vezes mais chances de serem assassinadas, além de serem as que mais morrem pelas mãos do Estado: em média, cinco pessoas negras foram mortas, por dia, em ações policiais, em 2021. Em números totais: os negros representam 65% dos 2.154 óbitos registrados na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo estados monitorados pela Rede de Observatórios em Segurança Pública. Ela também era ialorixá, em tempos em que a intolerância contra religiões de matriz africana dispara: em 2020, foram registrados 86 casos de violência, enquanto, em 2021, eles chegaram a 244, um aumento de 183%. Mas foi covardemente assassinada aos 72 anos por questões fundiárias, dentro da associação do Quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia.

Os assassinatos no campo tiveram um aumento de 30% entre 2021 (35 mortos) e 2022 (47, com nove adolescentes e uma criança entre eles), aponta a Comissão Pastoral da Terra. E as lideranças comunitárias são os alvos mais frequentes dessa violência. Mãe Bernadete exercia uma liderança natural, tanto religiosa como política, na sua comunidade, localizada na região metropolitana de Salvador (BA). Cerca de 290 famílias vivem no local de 8,54 km². A associação de moradores local reúne 120 agricultores que produzem farinha, frutas e verduras. Foi certificado em 2004, mas ainda não foi titulado. Por isso, é mais cobiçado.

De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas nos últimos dez anos. A própria Bernardete pedia Justiça por seu filho, Flávio Gabriel dos Santos, o Binho do Quilombo, morto por um grupo de homens armados em 2017. Ao legalizar territórios, a violência diminuirá. Quilombo é questão de segurança alimentar, climática e pública – a última, um dever do Estado. O coração quilombola precisa bater cada vez mais forte.  

 

Marco temporal é racismo fundiário (artigo de Biko Rodrigues)

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/07/marco-temporal-e-racismo-fundiario.shtml

Ao menos 30 líderes quilombolas foram assassinados nos últimos dez anos, diz entidade

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/ao-menos-30-lideres-quilombolas-foram-assassinados-nos-ultimos-dez-anos-diz-entidade.shtml 

Morta a tiros na Bahia, Bernadete Pacífico falou sobre violência contra quilombolas em encontro com presidente do STF em julho

https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/08/18/morta-a-tiros-na-bahia-bernadete-pacifico-falou-sobre-violencia-contra-quilombolas-em-encontro-com-presidente-do-stf-em-julho.ghtml

Censo do IBGE: quase um terço dos quilombolas do Brasil mora na Amazônia Legal

https://g1.globo.com/economia/censo/noticia/2023/07/27/censo-do-ibge-quase-um-terco-dos-quilombolas-do-brasil-mora-na-amazonia-legal.ghtml 

Comunidade quilombola liderada por Mãe Bernadete enfrenta luto e medo

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/comunidade-quilombola-liderada-por-mae-bernadete-enfrenta-luto-e-medo.shtml 

Vítimas de violência em conflito por terra, quilombolas ainda são “apagados” em decisões políticas

https://oeco.org.br/reportagens/vitimas-de-violencia-em-conflito-por-terra-quilombolas-ainda-sao-apagados-em-decisoes-politicas/ 

Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas em 1.696 municípios

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37464-brasil-tem-1-3-milhao-de-quilombolas-em-1-696-municipios#:~:text=O%20Censo%202022%20mostrou%20que,total%20de%20quilombolas%20do%20pa%C3%ADs

A importância do Censo na formulação de políticas públicas para quilombolas

https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2023/08/19/a-importancia-do-censo-na-formulacao-de-politicas-publicas-para-quilombolas.htm 

No atual ritmo, Brasil levará 2.188 anos para titular todos os territórios quilombolas com processos no Incra

https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/no-atual-ritmo-brasil-levara-2188-anos-para-titular-todos-os-territorios-quilombolas-com-processos-no-incra/23871

1.437 mulheres foram mortas no Brasil simplesmente por serem mulheres

https://observatorio3setor.org.br/noticias/1-437-mulheres-foram-mortas-no-brasil-simplesmente-por-serem-mulheres/ 

Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio no mundo

https://www.camara.leg.br/tv/553531-brasil-tem-a-quinta-maior-taxa-de-feminicidio-no-mundo/ 

Negros são maioria dos mortos em ações policiais

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-11/negros-sao-maioria-dos-mortos-em-acoes-policiais 

Risco de assassinato é 3 vezes maior para negros do que para não negros no Brasil

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/11/risco-de-assassinato-e-3-vezes-maior-para-negros-do-que-para-nao-negros.shtml 

Casos de ataques às religiões de matriz africana crescem 270%

https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-01/casos-de-ataques-religioes-de-matriz-africana-crescem-acima-de-270#:~:text=Em%202021%2C%20as%20notifica%C3%A7%C3%B5es%20contra,mu%C3%A7ulmana%2C%20judaica%20e%20a%20ind%C3%ADgena.

Marco temporal é racismo fundiário

Marco temporal é racismo fundiário

O Senado Federal retoma as atividades no dia 1º de agosto com a ameaça de votar o PL 2903, que propõe transformar a tese do “marco temporal” em lei. Um precedente para outras armadilhas, como o PL 1942/2022, considerado uma bomba-relógio plantada no Congresso contra os quilombolas.

Por Biko Rodrigues*

No mês passado, a chamada Abolição da Escravatura completou 135 anos, mas ainda há os que não se conformam com nossa autonomia.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) votou contra a adoção de um “marco temporal” em relação aos territórios quilombolas. “As comunidades quilombolas chegaram ao Brasil em um processo da escravidão. Remeter essa luta histórica a 1988 é deslegitimar todo o processo histórico do país”, declarou, na época, o ministro Luís Roberto Barroso. Além de considerar a tese inconstitucional, a decisão ainda foi ratificada dois anos depois pelo mesmo STF.

Acreditávamos ter exorcizado essa assombração naquela ocasião, mas o Congresso está tentando trazê-la de volta do Além. A bancada ruralista tenta passar um trator chamado projeto de lei (PL) 490/2007 por cima dos direitos de nossos irmãos indígenas —e sabemos que depois tentarão nos atingir.

Se os povos originários, os primeiros habitantes do Brasil, poderão ser obrigados a provar que estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988, imaginem nós, cujos ancestrais só chegaram depois de 1500? Os africanos escravizados vieram para cá contra sua vontade, mas também criaram raízes neste solo, os quilombos.

Há uma bomba-relógio plantada no Congresso contra nós. O PL 1942/2022 determina que só terá a posse definitiva da terra as comunidades quilombolas que a estavam ocupando na data da promulgação da atual Constituição. Detalhe: o autor do projeto tem como prenome Coronel, é do Partido Liberal, do ex-presidente que nos pesa em arrobas, e deputado por Santa Catarina, que só tem menos quilombos reconhecidos (19) que os estados de Rondônia, Roraima, Distrito Federal e Acre —onde o colonizador não se estabeleceu. Em nome de quem ele legisla?

Dizem que o tempo é o senhor da razão, mas “senhor” é uma palavra que causava arrepios em nossos ancestrais, e o tempo corre contra nós.

Existe um precedente perigoso. Da mesma forma que votaram o PL 490 em regime de urgência, podem fazer o mesmo com o 1942. Enquanto isso, os processos de titulação patinam no Incra: desde que conquistamos nossos direitos, há 34 anos, menos de 200 das 6.000 comunidades foram tituladas. Nesse ritmo, só daqui a cerca de 2.000 anos as 1.896 ações em andamento serão concluídas; e ainda há mais 4.000 que sequer iniciaram esse processo.

O que está acontecendo conosco tem nome e sobrenome: racismo fundiário. O marco temporal inverte a lógica judicial; exige de quem é acusado de não ser dono de sua terra comprovar que estava ali, quando o ônus da prova cabe ao acusador. Nos anos 1970/80, a grilagem prosperou como nunca no país, com indígenas e quilombolas sendo expulsos de suas terras sob a mira de armas. Nossas terras também foram comidas pelas beiradas, encolhendo aos poucos. Um exemplo disso é Brasília: a capital federal foi erguida em áreas que pertenciam ao Quilombo de Mesquita.

O PL 1942 ainda prevê a titulação individual dos territórios, não coletiva, como é hoje. Os quilombos são coletivos justamente para resguardar os direitos da coletividade. São inalienáveis, não podem ser vendidos, passam de geração para geração; quando a posse é individual, passa a seguir uma lógica mercadológica da terra. O Brasil precisa se aquilombar.

O país tem compromissos ambientais com o resto do mundo. Hoje, temos 148 quilombos titulados na Amazônia Legal; nos últimos 13 anos, o desmatamento neles foi zero. Quilombos são barreiras de proteção ao verde e ajudam a validar nossa carteira de potência ambiental.

*Biko Rodrigues é coordenador-executivo da Conaq – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

Ecossistema Brasil

Ecossistema Brasil

Eduardo Souza Lima
Jornalista e articulista
Maria Paula Fernandes
Jornalista e diretora da Uma Gota No Oceano

Bastou a Terra voltar a ser redonda para o mundo dar voltas. Lula e Raoni, que subiram a rampa do Planalto de braços dados, estavam em lados opostos em 2011, quando a gente começou a testemunhar essa história: o primeiro, como fiador da construção de Belo Monte, enquanto o segundo era uma das vozes mais ativas contra aquela monstruosidade. Coincidência ou não, as duas palavras que caracterizaram o movimento contra a usina, união e reconstrução, viraram mote do governo; e um conceito nascido na floresta, o socioambientalismo, foi adotado como inspiração.

União e reconstrução: milhares de cidadãos brasileiros que viviam às margens do Rio Xingu, um dos mais importantes afluentes do Amazonas, tiveram que refazer suas vidas por causa de Belo Monte, no Pará. A hidrelétrica não só tornou mais miserável as vidas dos povos indígenas que moram na região da Grande Volta, como as de ribeirinhos, extrativistas, quilombolas e até mesmo da população urbana da maior cidade local, Altamira. Unidos, os movimentos sociais se fortaleceram e acabaram se tornando determinantes na oposição mais eficaz contra o último governo, que já foi tarde e deixou muito estrago.

Que a usina, como ferida aberta na floresta, sirva de advertência para evitar novos erros; mas, passados mais de 10 anos, existem demandas mais urgentes. A devastação promovida na Amazônia nos últimos quatro anos é motivo mais que nobre para rever pensamentos e promover reconciliações. A paz é elemento fundamental para uma reconstrução sólida. “Eu decidi participar para mostrar para todo mundo que agora não é mais tempo de ódio”, disse Raoni sobre sua presença na cerimônia de posse. É uma causa acima de diferenças, mesmo que justificáveis. Hoje, os povos da floresta também governam.

“Ninguém conhece melhor nossas florestas nem é mais capaz de defendê-las do que os que estavam aqui desde tempos imemoriais. Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental”, reconheceu Lula em seu discurso de posse no Congresso Nacional, ao anunciar a criação do tão esperado Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Quem assume a pasta é ex-coordenadora executiva da Apib, candidata à vice-Presidência da República em 2018 e deputada federal recém-eleita Sonia Bone Guajajara. Guerreira de metro e meio que se agiganta diante do maior galalau, Sonia Guajajara foi uma voz fundamental para tornar a causa indígena brasileira conhecida em todo o mundo. Não à toa, foi eleita uma das cem pessoas mais influentes de 2022 pela revista “Time”.

A Funai agora se chama Fundação Nacional dos Povos Indígenas (e não mais “do Índio”) e foi vinculada ao MPI. Cabe à instituição demarcar territórios e Joênia Wapichana será, mais uma vez, pioneira, ao se tornar não só a primeira indígena, como também a primeira mulher a ocupar sua presidência. Ela também foi a primeira advogada indígena a exercer a profissão no Brasil e a primeira a ocupar uma cadeira na Câmara Federal. Mestre pela Universidade do Arizona (EUA), Joênia fez a defesa oral do caso da demarcação da Serra Raposa do Sol frente ao STF, um marco na luta pelos direitos dos povos originários.

Já o conceito de socioambientalismo nasceu a partir de ações de Chico Mendes (1944-1988). O Patrono Nacional do Meio Ambiente percebeu que, entre os milhões de seres vivos que compõem essa explosão de biodiversidade que é a Amazônia, está o Homo sapiens. Ele está por lá há pelo menos 14 mil anos, vivendo em harmonia como seus demais companheiros de ecossistema. Seres humanos e floresta são indissociáveis. Povos tradicionais não a prejudicam; ao contrário, cuidam dela.

Esta ideia chegou ao governo por sua conterrânea e discípula acreana Marina Silva, outra ambientalista reconhecida no mundo inteiro. Ainda na primeira gestão de Lula, como ministra do Meio Ambiente, ela se inspirou nesse pensamento para experimentar outro conceito, o da transversalidade. O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDam), que deve ser retomado, é o melhor exemplo de gestão transversal – pois atravessa ministérios, instituições diversas, governos estaduais e municipais – bem-sucedida: reduziu o desmatamento na região de 27 mil km² em 2004 para 4,5 mil km², em 2012.

A visão socioambiental de Marina a guiou também na criação do Fundo Amazônia, ainda na primeira passagem pelo Ministério do Meio Ambiente e, este ano, da novíssima Secretaria Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável, no agora rebatizado Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Seu objetivo é apoiar os povos e comunidades da floresta em seu trabalho imprescindível de preservação do verde e, por conseguinte, ao equilíbrio climático. Já os quilombolas, que desenvolveram técnicas sustentáveis de regeneração de solos, terão secretarias próprias no Ministério da Igualdade Racial, comandado por Anielle Franco, e no de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, chefiado por Paulo Teixeira – que também vai abrigar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Nos últimos quatro anos a Amazônia foi devastada como nunca e não adianta fingir que nada aconteceu. É preciso regenerar, replantar, reconstruir, unir e pacificar. Os povos da floresta estão chegando ao poder neste governo, mas vão precisar de toda ajuda possível, pois os desafios são imensos. O povo brasileiro forma um ecossistema dos mais sofisticados, porque diverso, e tem que fazer parte dessa transversalidade. Não “tá tudo dominado” enquanto tudo não estiver interligado.

 

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Os três ‘S’ quilombolas

Os três ‘S’ quilombolas

Quem nunca provou da culinária quilombola não sabe o que está perdendo. Além de ser muito gostosa, o que costumam chamar de ‘manjar dos deuses’, ela é saudável e não agride a natureza. Junta os três “s” – sabor, saúde e sustentabilidade – porque sua agricultura semeia receitas ancestrais, como não usar agrotóxicos ou fertilizantes químicos, que envenenam a comida da maioria da população brasileira, e preserva o meio ambiente. Na verdade, faz mais que preservar: regenera. Quilombolas recuperam nascentes de rios e solos degradados, além de promoverem o reflorestamento, entre vários outros serviços ambientais importantíssimos.

Mais um ingrediente que realça o paladar dessa cozinha é a sua diversidade: como há quilombos em todas as regiões do Brasil, eles também protegem a maioria de nossos biomas e suas espécies vegetais nativas, e os pratos são variados. Come-se diferente em cada comunidade, mas sempre se come bem – quilombolas usam os frutos naturais da terra onde vivem. Segundo dados preliminares do IBGE, que no momento realiza o primeiro censo específico para esta população, há cerca de mil localidades quilombolas na Amazônia. E a maior floresta tropical do mundo é comprovadamente protegida por eles.

Em 2011, a Comissão Pró-Índio de São Paulo realizou um estudo em 35 comunidades da região de Oriximiná, no Norte do Pará. Elas ocupam 6.944 km² e, até o ano 2000, somente 64 km² dessa área havia sido desmatada; entre 2006 e 2009, apenas 6 km². Mas não só: os quilombolas amazônidas são grandes produtores de alimentos. E foi justamente na Floresta Amazônica que começou o mapeamento que está sendo feito pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) sobre essa produção, que estava fora do radar.

“Para ter acesso a crédito e políticas de governo, o próprio Estado que nega nossos direitos exige que tenhamos nossos territórios regularizados. Não à toa, essa é nossa principal preocupação. Mas há 20 anos não havia dados sobre a nossa produção. Por isso, a Conaq começou essa iniciativa. A gente precisava nos colocar no mapa da agricultura familiar, como produtores de alimentos”, explica Kátia Penha, coordenadora nacional da entidade. Este alimento não fica restrito às comunidades quilombolas: também chega à merenda escolar de diversos municípios e às mesas de milhões de brasileiros. Poderia ser muito mais, se políticas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) não tivessem sido tão enfraquecidos pelo governo atual.

Olhos e ouvidos do mundo estão voltados para a Amazônia, mas o Brasil abriga outros ecossistemas igualmente importantes, que estão sendo devastados às escondidas e silenciosamente. Daí a necessidade de a Conaq estender esse trabalho fundamental a outras regiões. Os quilombolas também estão atentos aos efeitos das mudanças climáticas e trabalhando em formas de amenizá-los. Nunca é demais lembrar que Bahia, Minas Gerais e Tocantins foram os estados mais prejudicados pelas chuvas que castigaram o país na virada de 2021 para 2022. E, nos dois primeiros, estão localizadas os maiores número de comunidades quilombolas do país, respectivamente 1.046 e 1.021.

Devido a isso, para esta nova fase do estudo foram selecionados quilombos baianos, mineiros e tocantinenses, além de comunidades de Goiás, Maranhão, Mato Grosso e Paraíba, e dois biomas: Cerrado e Caatinga. Do primeiro, nem é preciso se estender muito: na caixa d’água do país, nascem oito das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras. Mesmo assim, está sendo devastado pela monocultura da soja, em mais um tiro no pé do agronegócio irresponsável, que ricocheteia na gente como bala perdida. “Já a Caatinga é um bioma que não é reconhecido como produtor de alimento. O sudestino vê o semi-árido nordestino como uma região morta. Mas ela tem um solo riquíssimo, capaz de produzir comida não só para o Nordeste, como para todo o país”, diz Kátia Penha.

A iniciativa da Conaq de mapear a produção rural abrange mais de 60% das comunidades certificadas do país e também tem como objetivo apoiar na autonomia econômica dessas populações. “É bom lembrar que a agricultura familiar é uma atividade que gera emprego e renda”, frisa Penha.

Toda a população brasileira deveria ser eternamente grata aos quilombolas, mas parte dela retribui o bem que nos fazem com preconceito, violência e invasões, e impedindo que legalizem suas terras, como manda a Constituição de 1988 – até hoje, só 4% deles foram titulados. Aquilombar é servir à vida e à natureza: aquilombemos todos.

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