O passo do jabuti

O passo do jabuti

Está difícil, né? A gente sabe. Para todo lado que se olha parecem pipocar mil notícias ruins e, justo quando achávamos que estaria passando, o Brasil entra no pior momento da pandemia. Às vezes dá vontade de correr para as montanhas. Mas, espera. Dá uma parada rápida no home office, respira fundo, coloca uma música boa e vem que esse texto é sobre renovar as energias e fazer uma reflexão.

Você sabia que temos um exemplo super positivo de organização, planejamento e estratégia contra o coronavírus? Isso mesmo, aqui no Brasil! Difícil de acreditar, né? Mas não é fakenews. No interior do Mato Grosso, o povo Kuikuro se organizou para fazer isolamento com auxílio de médicos durante o último ano e agora eles estão finalmente sendo vacinados. A comunidade tem 600 pessoas, todas sobreviveram à pandemia e agora estão imunizadas.

Você pode até falar: “Ai, gotas, o que eu tenho a ver com um povo indígena do interior do Mato Grosso?”. Por isso, te convidamos a olhar mais de perto. Você conhece os Kuikuro? Então nos permita contar um pouquinho sobre eles. Pesquisas arqueológicas encontraram registros de que este povo vive desde os anos 950 DC na região que hoje se chama Mato Grosso. A jornada dos Kuikuro vem de longe. Ao longo desses séculos, eles enfrentaram muitos problemas e a Covid-19 não é o primeiro vírus a cruzar o caminho deles.

Mil anos depois dos primeiros registros, nos anos de 1950, os Kuikuro enfrentaram uma epidemia de sarampo que dizimou metade de sua população. Foi tão catastrófico que eles precisaram abandonar uma aldeia. Seu nome era Lahatuá ótomo, e até hoje alguns anciãos ainda lembram deste triste capítulo em sua história. Mas, como prometido, esse texto é para falar de coisa boa. Isso tudo é para explicar que os Kuikuro sobreviveram ao sarampo. Sabe como? Com organização, coordenação, trabalho em equipe e… acreditando na ciência.

Na década de 1960 foram feitas campanhas de vacinação e o povo não apenas sobreviveu, como se fortaleceu e cresceu. Eles começaram a reocupar seus territórios tradicionais, que de fato nunca tinham sido abandonados, já que eram continuamente visitados e utilizados por conterem importância histórica e espiritual. E, já nos anos 1980, o crescimento populacional permitiu o surgimento de novas aldeias.

Quarenta anos depois, um novo vírus aparece. Mas agora os Kuikuro já têm todo o conhecimento que os anciãos traziam da experiência de Lahatuá ótomo. Em comum acordo entre todos, eles se isolaram e construíram uma casa para manter o distanciamento daqueles que apresentassem os sintomas. Também fizeram contato com especialistas em saúde indígena, compraram alimentos, álcool em gel, máscaras, cilindros de oxigênio e remédios para febre. Feito o estoque, eles se fecharam em suas aldeias até a chegada da vacina. Ela chegou este mês. Os Kuikuro receberam a segunda dose da vacina e a liderança Yanama Kuikuro deu o recado no Jornal Nacional: “O povo kuikuro não acredita em fake news. Acreditamos na ciência e tomamos a vacina”. E o técnico de enfermagem da aldeia, Kauti Kuikuro, explicou o segredo do sucesso: “Graças a nossa organização ninguém saiu para cidade, ninguém precisou fazer oxigênio, ninguém foi a óbito também”.

Ser Kuikuro — ou Kayapó, ou Guajajara, ou quilombola — passa por um conceito muito importante: a vida em comunidade, em busca do bem comum. Viver numa comunidade tradicional envolve essa noção de que as decisões são pelo bem do todo e que todos têm sua parcela de contribuição. Talvez seja difícil para uma pessoa que vive na grande cidade absorver completamente essa ideia, ainda mais quando estamos distantes fisicamente uns dos outros. Mas esse é um ensinamento muito importante que as comunidades tradicionais passam: para alcançar o bem comum é preciso um esforço conjunto e coordenado de todos.

E é porque tanto indígenas quanto quilombolas entendem que é preciso o todo, que eles foram ao Supremo Tribunal Federal no ano passado. Não adianta apenas as aldeias e os quilombos fazerem sua parte, os governos precisam fazer a parte deles também. E assim, as lideranças nacionais dessas duas comunidades foram ao Supremo para cobrar do governo federal um plano, o que gerou uma ação para indígenas e outra para quilombolas. Ora, os caciques conseguiram traçar e executar um plano em suas aldeias. Por que um presidente – e toda a equipe de inteligência que ele dispõe – não conseguiria?

Esse tipo de ação que foi aberta se chama Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). O nome é complexo e o processo também. Preceitos fundamentais são questões intrinsecamente conectadas aos valores mais profundos da sociedade, são como os alicerces da Constituição. Mexer em alicerces é algo muito difícil, delicado, que deve ser feito com paciência e atenção para que as coisas não desmoronem. Mas vamos combinar que, para quem veio lá de 950 dC e já enfrentou outras pandemias, a visão de tempo não é a mesma do imediatismo cibernético da maioria das pessoas.

“A gente é igual ao passo do jabuti: observando, vendo nossa estratégia para poder avançar”, diz a liderança Munduruku Alessandra Korap, primeira mulher brasileira a receber o prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, no ano passado, quando também recebeu o Taz Panter Preis, premiação alemã para defensores do meio ambiente.

Veja como realmente parecemos falar línguas diferentes num mesmo país: no dialeto do Congresso Nacional, jabuti é quando um parlamentar tenta inserir no texto de um projeto de lei um trecho completamente alheio, desconfigurando a lei. Mas nos idiomas milenares dos povos indígenas, jabuti significa persistência, e muitas vezes esse animal é retratado na espiritualidade como símbolo de astúcia, sabedoria. Se fosse uma entidade das religiões de matriz africana, muito respeitadas nos quilombos, ele seria um preto velho. Como canta o ponto: “Preto velho pisa no caminho devagar. Olha que o caminho tem espinho”.

Frente a situações muito difíceis, o pânico, a ansiedade e o medo têm o poder de nos paralisar momentaneamente. Ficamos chocados e queremos correr para as montanhas. Mas aqueles que há séculos mantêm a longa caminhada sabem o verdadeiro remédio: perseverança. É um pé depois do outro. É o passo do jabuti.

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Uma nova luta

Uma nova luta

Sobre a pandemia de Covid-19, quilombolas e indígenas podem dizer: “de onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo”. Cravada há mais de 50 anos pelo humorista Barão de Itararé, a máxima retrata bem o papelão do Ministério da Saúde desde que declarou situação pandêmica no país, em 18 de março de 2020. O quadro de descaso obrigou a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a exemplo do que haviam feito os indígenas, a entrar no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra o governo. O objetivo é obrigá-lo a cumprir seu dever constitucional de protegê-los do coronavírus. Até hoje, o Executivo não tomou nenhuma medida ou apresentou um planejamento para evitar a propagação da doença nesses territórios ou, pelo menos, amenizar seus efeitos. E os quilombolas são especialmente vulneráveis.

A taxa de mortalidade entre eles é maior (3,6%) que a da população em geral (3%). Editada em julho do ano passado, a Lei 14.021 até estipulava medidas de apoio às comunidades quilombolas – mas não saiu do papel. Diante da negligência do poder público, a Conaq chamou para si a responsabilidade de monitorar casos de Covid-19 nas comunidades. Até o dia 17/2, a entidade registrava 4.914 casos confirmados e 204 mortes. Se estar isolado era uma vantagem no passado, hoje isso se tornou um obstáculo. Segundo o IBGE, existem hoje pelo menos 5.972 localidades quilombolas, a maior parte localizada em áreas de difícil acesso e com população idosa numerosa. Somente 5,34% desses territórios foram titulados – ou seja, a imensa maioria não tem pleno acesso a serviços públicos. Mais de 80% dos quilombos não têm rede de esgoto e de água encanada adequadas. Além disso, estão expostos aos problemas crônicos do país, como qualquer outra comunidade: entre os 1.672 municípios com presença quilombola, 1.485 (89%) não têm leitos de UTI.

Criados para enfrentar a escravidão, os quilombos têm outros desafios nesta nova luta. Negar o racismo e renegar a herança africana brasileira são especialidades de Sérgio Camargo, atual presidente da Fundação Palmares. Seria apenas mais uma vergonha em pleno século XXI se “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira” não fosse o principal objetivo do órgão que ele preside, também responsável por certificar territórios quilombolas. O Projeto de Lei Orçamentária Anual 2021 prevê uma redução de 90% na verba que seria destinada à regularização de territórios e o programa de enfrentamento e combate ao racismo foi excluído do Plano Plurianual 2020-2024. Em nome de quê?

No Brasil, os negros são a maioria tratada como minoria; já os quilombolas são tratados como a minoria da minoria. Além do racismo estrutural, eles enfrentam o racismo ambiental. O fato de ocuparem terras é visto pelo Estado brasileiro como entrave ao desenvolvimento. A ponto de, no pico da pandemia, tentarem remover 800 famílias quilombolas no Maranhão para ampliar a Base Espacial de Alcântara. Já pensou se fizessem o mesmo num condomínio de luxo de Rio ou São Paulo? A diferença na repercussão seria do tamanho do nosso preconceito. No Amazonas, estado onde a pandemia está fora de controle, só há oito comunidades certificadas pela Fundação Palmares; já o IBGE calcula que existam muitas mais. Pelas contas do instituto, o município amazonense de Barreirinha é o que abriga mais localidades quilombolas do país, 167. É uma matemática perversa, em que o resultado mais correto vem de onde há menos poder para se promover as maiores mudanças.

Os quilombolas são guardiões de uma cultura única, com raízes africanas profundas, mas que nasceu no Brasil. Em suas comunidades, preservam o meio ambiente e são grandes produtores de alimentos orgânicos. Um estudo divulgado em 2011 pela Comissão Pró-Índio de São Paulo apontou a desaceleração do desmatamento em áreas da Amazônia com comunidades do tipo, algo valioso em um tempo no qual interferências na natureza tendem a se refletir em mudanças climáticas cada vez mais radicais. Em vez de ressentimento, os quilombos sempre foram sinônimo de resistência e só nos pedem uma coisa: respeito. Será que é muito ou somos capazes de dar isso a eles?

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Saiba mais:

O Globo – Fachin vota pela proteção de territórios quilombolas

O Globo – Covid-19: STF julga se União deve oferecer cuidados específicos a quilombolas

Yahoo Brasil – STF começa a julgar falta de assistência do governo Bolsonaro aos quilombolas na pandemia

Brasil de Fato – STF julga auxílio a quilombolas: relator vota a favor; entidades acham pouco

CONAQ

Fundação Palmares

Desembarque do trem fantasma

Desembarque do trem fantasma

Quer notícia ambiental boa em 2020? Vai pra Tasmânia! A ilha australiana hoje é 100% movida a energia renovável e os tasmanianos realizaram o feito dois anos antes do previsto. Dá até uma certa inveja, depois de um ano que, para nós, brasileiros, foi como dar uma volta num trem fantasma. Na primeira curva, descaso público com o coronavírus; em seguida, Pantanal reduzido a cinzas; logo adiante, 800 famílias quilombolas ameaçadas de despejo em plena pandemia no Maranhão; daí para frente, recordes de desmatamento e de emissões de gases do efeito estufa em zigue-zague até o grand finale: a exclusão do Brasil da Cúpula da Ambição Climática da ONU. Deu para ouvir daí a gargalhada assustadora de filme de terror?

São raros os anos como este em que todos têm, pelo menos, uma história triste para contar. Os povos originários são um exemplo. Eles viram a invasão às suas terras aumentar 135% e a Covid-19 já lhes tomou quase 900 vidas. Entre elas, as de lideranças históricas como Nelson Rikbaktsa, Dionito Macuxi, Amâncio Munduruku, Zé Carlos Arara e Aritana Yawalapiti.

Porém, apesar de doído, 2020 trouxe também conquistas importantes. A vitória de maior destaque aconteceu em 5 de agosto, quando o Supremo Tribunal Federal acatou, por unanimidade, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A medida solicitava à mais alta corte do país que determinasse o cumprimento por parte do governo federal de um dever constitucional: cuidar dos indígenas durante a pandemia. Sim, foi preciso pedir – caso você não tenha acreditado.

Como num jogo de futebol em que o placar é menos relevante do que o entrosamento do time, o mais importante neste caso não foi o resultado em si, mas o reconhecimento oficial da representatividade da Apib perante o Estado. “Durante muito tempo, os povos indígenas não foram tidos como sujeitos de direitos, não podiam falar por si só, não podiam acessar o judiciário em nome próprio; sempre tinham que depender de alguém. Então, isto tem um significado muito grande na superação da tutela, na superação da colonialidade do direito e também na reafirmação desse sujeito de direito que são os povos indígenas”, explica Eloy Terena, assessor jurídico da Apib. E os feitos da entidade não pararam por aí.

Em um caso único no mundo, a articulação está contando os casos de mortes e contaminações entre indígenas pela Covid-19. Afinal, a doença não é (nem nunca foi) uma gripezinha. Tanto trabalho tem resultado em um reconhecimento cada vez maior, não só dentro – conforme mostra a decisão do STF – como fora do Brasil. Em outubro, a Apib ganhou o Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos, do Instituto de Estudos Políticos de Washington, que existe há 44 anos. O que mais pesou na escolha foi outro gol de placa: a Jornada Sangue Indígena – Nenhuma Gota a Mais, campanha que percorreu 12 países europeus em 2019, denunciando violações de direitos cometidas pelo governo ou com seu incentivo.

É um problema de 500 anos, que os indígenas denunciam cada vez mais e melhor, e que todos nós precisamos resolver. “Nossa luta, por extensão, é por todas as pessoas que vivem neste planeta durante este tempo de crise climática”, disse Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib, em agradecimento pela honraria concedida à entidade. Este ano, Sonia também levou sozinha o Prêmio Alceu Amoroso Lima de Direitos Humanos, concedido pela Universidade Cândido Mendes.

Outra que tem sido ouvida com muita atenção por esse mundão afora é Alessandra Korap Munduruku. Ela levou o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, que existe há 37 anos. Seguindo a máxima do ex-presidente americano que dá nome a homenagem, ela não se perguntou o que o Brasil podia fazer por ela, mas sim o que ela podia fazer pelo Brasil. “Como liderança, Alessandra defende os direitos indígenas, principalmente na luta pela demarcação dos territórios indígenas e contra grandes projetos que afetam terras indígenas e territórios tradicionais na região do Tapajós”, diz a justificativa da premiação. Nós, da Gota, ficamos muito felizes, já que Alessandra foi uma das inspirações para campanha “Em Nome de Quê?”, iniciativa que reuniu indígenas e demais brasileiros na luta pelo meio ambiente.

É claro que nem tudo são prêmios – ou flores, se preferir. Enquanto o resto do mundo entende perfeitamente o recado dos povos tradicionais, o atual mandatário da nação prefere ignorá-lo. É um comportamento menos parecido com o da ema, que o renegou no Alvorada, e mais similar ao de outra ave, o avestruz. Nada presidencial, esta conduta pode gerar consequências — como, aliás, já aconteceu. Este mês, a Procuradoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia deu o seu O.K. para uma investigação inicial contra Bolsonaro por denúncias de violações contra o meio ambiente e os indígenas brasileiros. Nunca um presidente brasileiro tinha chegado a este estágio. E a primeira vez, como dizem por aí, a gente nunca esquece.

Brincadeiras à parte, é certo que 2020 será menos lembrado pelas coisas boas do que pelas péssimas lembranças que deixa. Mas nem tudo que aconteceu nos últimos 12 meses precisa ir direto para a lata de lixo. Veja, por exemplo, o caso do nosso guru Ailton Krenak, escolhido em setembro “intelectual do ano” pelo prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores. Com a honraria, ele se junta a nomes como Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda e Dom Paulo Evaristo Arns. Todos pensadores com uma ideia de Brasil muito diferente das que temos hoje e que não devemos desistir de tirar do papel.

Com Krenak, a sabedoria dos povos originários está chegando a muito mais gente. São pessoas que têm entrado em contato com valores importantes, como a preservação do meio ambiente. “A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história”, diz o escritor. Por sorte, há sempre uma nova história a ser contada e cada ano novo é uma oportunidade para recomeçarmos. Que, em 2021, em vez de um filme de terror, escrevamos uma trama repleta de heróis, transformações e com final feliz. Para nós e para o planeta.

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A chama que não se apaga

A chama que não se apaga

Depois da tempestade vem a bonança. Infelizmente, na vida real, as coisas nem sempre saem como no ditado. O exemplo mais recente é o caso dos quilombolas do Amapá: após um incêndio na principal subestação de energia do estado, no último dia 3, eles viram o já precário fornecimento de luz se tornar ainda pior. Catorze dias depois, um novo blecaute agravou a situação. Tudo isso no mês da consciência negra, que celebra a importância de pretos e pardos para o país e propõe uma reflexão em relação ao racismo que resiste em nossa sociedade.

Se antes os quilombos do Amapá chegavam a sofrer no mesmo mês até quatro blecautes que duravam alguns dias, a escuridão desta vez se prolongou por uma semana em lugares como Conceição do Macacoari. As 40 famílias que vivem na comunidade foram forçadas a fazer uma viagem no tempo. Trocaram lâmpada por lamparina e água encanada por água de poço. Diante deste cenário, a Anistia Internacional lançou uma mobilização exigindo que autoridades dos governos tomem providências em relação a esta situação.

Um ingrediente pode tornar especialmente devastador o efeito do apagão nestas comunidades: a pandemia. O Amapá só perde para Rio de Janeiro e Pará em número de quilombolas mortos por Covid-19. Quando a comparação é feita entre municípios, Macapá (com 15 casos) só fica atrás da capital fluminense, que tem 30. Os números são da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que mantém por conta própria um monitoramento. Entretanto, a organização admite que a quantidade de infectados é bem maior. “Quando adoece uma pessoa, não tem serviço de testagem ampla para a gente saber, naquele raio, quem mais se contaminou”, explica a educadora Givânia da Silva em vídeo compartilhado pela entidade no Instagram.

Um estudo da Universidade Federal do Amazonas apontou que a taxa de mortalidade do novo coronavírus entre os quilombolas de 5 estados da região é de 11,5%. É quase quatro vezes a média de 3% verificada pelo Ministério da Saúde em todo o território nacional. Um olhar menos atento poderia entender que se trata de um vírus racista. Porém, não precisa ser um expert para saber que microrganismos infecciosos desconhecem tons de pele.

De acordo com a pesquisa, na prática, é a desigualdade gerada por racismo que favorece a maior propagação do Sars-Cov-2. Esta desigualdade se reflete na dificuldade de acesso à água tratada, na falta de uma rede de esgoto e ou de coleta de lixo, na deficiência de políticas de prevenção e atenção, e mesmo na distância dos centros urbanos que, no passado, protegeu esses territórios e hoje pode atrapalhar. A distorção afeta até a distribuição da ajuda, quando ela existe. Sem energia e internet, muitos quilombolas não conseguiram pedir auxílio emergencial, por exemplo.

Os problemas não se limitam ao Amapá. Em todo o Brasil, 4.635 casos de Covid-19 foram contabilizados pela Conaq em 19 estados até o último dia 11. São histórias com nome e sobrenome, como Cirilo Araújo Brito, patriarca da comunidade do Grotão, em Goiás, que morreu no último dia 23.

Numa entrevista concedida em 2017, Cirilo contou que, na sua infância, as crianças tinham obrigação de acompanhar a conversa dos mais velhos para que pudessem passá-las adiante. Este hábito deixou de ser comum e revela um dos impactos da perda de anciãos nestas comunidades. Quando um deles morre, um pouco da trajetória de cada povo some junto. “A história quilombola e a indígena, ela é muito oral, é muito da memória. Então, a gente perdeu a pessoa, perdeu a história e perdeu parte da memória daquela comunidade”, lembra Givânia.

Entre os especialistas, o clima é de preocupação. A negligência em relação aos territórios durante a pandemia “pode vir a representar o maior genocídio da população quilombola no Brasil desde o período escravocrata”, escreveu Eduardo Rodrigues Santos, sociólogo da Universidade Nacional de Brasília, no artigo “Necropolítica, coronavírus e o caso das comunidades quilombolas brasileiras”.

Com quase 500 anos de luta, os quilombolas já não esmorecem mais diante de ameaças como a redução no reconhecimento de territórios por parte do governo federal. Em 2018, foram 144 áreas reconhecidas. Já no ano passado, só 70. O que as comunidades têm feito é buscar novas estratégias, como a eleição de um prefeito, um vice-prefeito e 54 vereadores em 2020. Para quem se define a partir de um espaço que é fruto da busca pela liberdade, a coragem nunca foi uma qualidade – mas sempre um pré-requisito.

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Saiba mais:

Anistia Internacional – Amapá pede socorro! Pressione as autoridades

G1 – Laudo inicial descarta que raio tenha causado incêndio que provocou apagão no Amapá

Folha – Macapá pode ficar até 15 dias sem luz após incêndio em subestação

G1 – Amapá tem novo apagão total

Portal Cultura – Dia da Consciência Negra: entenda o significado da data

Portal Geledés – O que é Consciência Negra?

Folha – Com apagão no Amapá, quilombolas perdem carne, peixe e polpa de fruta

Conaq e ISA – Quilombo sem Covid-19

Conaq (instagram) – Covid-19 nos quilombos

Ufam – Amazônia concentra recorde de mortes de quilombolas por covid-19

Ministério da Saúde – Painel Coronavírus

Conaq (instagram) – Cirilo Araújo Brito

Universidade Federal do Tocantins – A formação socioterritorial da comunidade remanescente de quilombo Grotão

Revista do CEAM – Necropolítica, coronavírus e o caso das comunidades quilombolas brasileiras

Nexo – A covid-19 nos quilombos. E a cobrança por ações do governo

O Globo – Quilombolas elegeram 56 representantes na eleição de ontem em dez estados — um recorde

Negligência histórica

Negligência histórica

“Fomos apresentados a Zumbi e outros personagens negros de nossa História pelo Carnaval”, lembrou Flávia Oliveira, jornalista e conselheira de Uma Gota no Oceano, em nossa última live. Por causa dessa negligência histórica mesmo ela, sambista militante cujo coração bate na cadência da bateria da Beija-Flor de Nilópolis, descobriu somente há 9 anos sua ascendência quilombola. “Confunde-se o movimento negro com o quilombola, que tem reivindicações específicas”, disse ela, na conversa que teve com Miguel Pinto Guimarães, arquiteto, urbanista e presidente de nosso conselho. Os quilombos também têm sido vítimas do descaso do governo – que chegou a lhes negar água, em veto à lei de proteção aos povos tradicionais durante a pandemia – no combate ao coronavírus.

Hoje é difícil acreditar, mas quando o Movimento Gota D’Água surgiu ainda tinha gente que pensava que não existiam mais indígenas no Brasil. De 2011 – quando começamos nossa campanha contra a construção da Usina de Belo Monte – para cá, muita coisa mudou: Sonia Bone Guajajara foi candidata à vice-Presidência da República, a deputada Joênia Wapichana é figura de destaque no Congresso Nacional, e a voz dos povos originários está mais potente como um todo e reverbera no mundo inteiro. Ainda assim, eles continuam forçados a recorrer à Justiça para que seus direitos prevaleçam. Quando Uma Gota no Oceano foi convidada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) para trabalhar com a causa quilombola, em 2017, ela tinha menos visibilidade ainda do que a indígena. “Até hoje tem gente que acredita que os quilombos acabaram com Palmares”, lembrou Flávia. Em fevereiro de 2018, os direitos dos quilombolas foram reafirmados em julgamento histórico no STF; mas, assim como acontece com os dos indígenas, continuam sendo desdenhados.

Segundo dados da Conaq e do Instituto Socioambiental (ISA), até o dia 13, 133 quilombolas tinham morrido e havia 3.465 infectados. O Estado do Rio de Janeiro lidera em número de mortes de quilombolas. “A interação com áreas urbanas facilita o contágio”, disse Flávia. Não à toa, o quilombo mais atingido é o Dona Bilina, que fica na Zona Oeste da capital fluminense (a região mais afetada da cidade), que registra 72% do total de mortos do estado. Só que, diferentemente dos indígenas, recenseados em 2010, não sabemos quantos quilombolas há no Brasil. Para ajudar no combate à pandemia, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) adiantou dados preliminares primeiro censo oficial desta população, que será concluído em 2021. Assim, ficamos sabendo que o país tem 5.972 localidades quilombolas, que estão divididas em 1.672 municípios. Acabaram-se as desculpas: tem quilombo no país inteiro e só não ver quem não quer. Não há justificativa para o governo deixá-los desamparados na luta contra a Covid-19.

É preciso reforçar: nem todos os negros são quilombolas – embora sejam a maioria – e nem todo quilombola é negro. Os negros vieram da África, mas quilombos são espaços de liberdade, não colônias estrangeiras; recebiam refugiados de diversos povos. Mas também há negros que desconhecem suas origens. Flávia só descobriu sua ascendência quando da morte repentina de sua mãe, baiana de Cachoeira: “A partir daí, comecei a me aprofundar em sua ancestralidade. Fiz um teste para um documentário chamado ‘Brasil DNA África’ e me descobri descendente da linhagem Balanta, de um território que hoje é a Guiné-Bissau. Eu nunca soube disso e em 2016 fiz uma viagem de pesquisa à Bahia com minha filha, em busca de nossas origens”. A jornalista acabou descobrindo que as terras que pertenceram ao seu bisavô deram origem ao Quilombo Tabuleiro da Vitória. “O censo de 2021 será a oportunidade de revelar de vez esse Brasil que muita gente não sabe que existe”, disse ela. Quilombos não só ajudam a preservar a natureza como guardam importantes tradições. São um patrimônio do Brasil. A cultura popular e os movimentos sociais mantiveram vivas a memória de Zumbi; hoje cabe à sociedade como um todo defender o seu legado.

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