Luta é substantivo feminino

Luta é substantivo feminino

Luta é substantivo feminino. De uma ocupação numa floresta na Alemanha, Greta Thunberg (agachada no meio) manda saudações, via Twitter, para a Marcha das Mulheres Indígenas. A menina sueca é a criadora do Fridays For Future, movimento que vem incentivando jovens do mundo inteiro a cobrarem medidas mais efetivas dos governos de seus países contra o avanço das mudanças climáticas.
Do lado de cá do Atlântico, em Brasília, nossas guerreiras estão lutando pelo direito à terra, sob o lema “Território: nosso corpo, nosso espírito”. Amanhã elas saem em passeata pela cidade. Greta sabe que os povos indígenas são os mais habilitados para proteger a floresta – e que o verde é a barreira mais eficaz contra o desequilíbrio climático.

Foto: Fridays For Future

Não temos tempo a perder

Não temos tempo a perder

Não há tempo para meias-palavras: “Declaramos inequivocamente que a Terra está enfrentando uma emergência climática”, diz um manifesto assinado por mais de 11 mil cientistas de 153 países, publicado no último dia 5, na revista “BioScience”. O texto nos prepara para o pior ao afirmar, com todas as letras, que as “mudanças climáticas podem provocar sofrimento sem precedentes”. A publicação marca o aniversário de 40 anos da primeira Conferência sobre Alterações Climáticas, que aconteceu em Genebra, na Suíça, em 1979. Para chegar a essa conclusão, foram analisadas informações reunidas e publicadas de lá para cá. Entraram no estudo dados sobre o uso de energia, alterações de temperatura, crescimento populacional, desmatamento, degelo das calotas polares, índices de fertilidade, emissões de CO₂ e até o PIB dos países.

Os cientistas não fizeram isso só para nos apavorar, eles também apontam saídas. O relatório também fala de medidas urgentes que devemos tomar para evitar o pior. Para início de conversa, propõe taxar emissões de carbono, como forma a desestimular o consumo de combustíveis fósseis, além de eliminar os subsídios para o setor. A ideia é trocar o quanto antes o petróleo por fontes de energia renováveis. A segunda diz respeito aos poluentes de curta duração. São gases, como os hidrofluorcabonetos usados em refrigeração, que permanecem pouco tempo na atmosfera, mas têm grande impacto no efeito estufa. Limitar o seu uso poderia reduzir em até 50% os efeitos das mudanças climáticas.

Outra ação urgente diz respeito à preservação e restauração de ecossistemas – não só florestas, mas também o fitoplâncton, recifes de corais, mangues e pântanos. Também é preciso mudar nossos hábitos alimentares e reduzir o desperdício: comer mais frutas, vegetais e grãos, e menos carne “pode melhorar a saúde humana e reduzir significativamente as emissões de gases do efeito estufa”, diz o texto. E, é claro, racionalizar a exploração dos recursos naturais do planeta e buscar um modelo econômico mais sustentável.

O mais importante é que essas medidas sejam tomadas ontem. Outro relatório, do Fundo Ecológico Universal (FEU), também divulgado no dia 5, afirma que dos 184 compromissos firmados pelos países signatários do Acordo de Paris, cerca de 75% são insuficientes para retardar o aquecimento global, afirma relatório. O documento, que será apresentado na próxima Conferência sobre as Mudanças Climáticas da ONU (COP-25), em dezembro, na Espanha, ainda diz que, para piorar, alguns desses compromissos sequer começaram a ser implementados.

E o Brasil, o que tem feito? De acordo com a nova estimativa do Sistema de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima, houve apenas um leve aumento de 0,3% em 2018 em relação a 2107. É para comemorar? Nem tanto. A boa notícia é que o aumento do uso de energias renováveis – movido, principalmente, pelos parques eólicos – compensou a quantidade de CO₂ lançada na atmosfera com o desmatamento. A má é que as emissões ligadas à destruição da floresta cresceram 3,6% e respondem por 44% do total. É uma informação especialmente preocupante se a gente levar em conta que a taxa de desmatamento disparou: segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), houve um aumento de 80% em relação a setembro de 2018. A floresta perdeu 802 km² de verde, o equivalente a mais da metade da área da cidade de São Paulo.

Este fato se torna mais preocupante ainda diante das últimas notícias: também no dia 5 o governo revogou o decreto que estabelecia o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar, que impedia a expansão do seu cultivo na Amazônia. A medida pode ser um tiro no pé, pois além de o clima da floresta tropical ser ruim para este tipo de lavoura, o decreto 6.961, de 2009, foi um dos principais fatores que fez do etanol brasileiro um sucesso de venda no exterior. “É o único biocombustível de primeira geração aceito pela União Europeia, Japão e outros países como medida de redução das emissões de efeito estufa”, diz o pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Raoni Rajão. “A manutenção desse zoneamento é condição necessária para que a UE mantenha a cota de importações de 850 milhões de litros do Mercosul”, completa.

A outra diz respeito ao fim da moratória da soja na Amazônia, reivindicado por produtores com o apoio do Executivo. Por este acordo as empresas se comprometem a não comprar o produto cultivado em áreas desmatadas. É uma ideia que não se justifica pois em 2006, quando a moratória foi adotada, a soja ocupava 1,1 milhão de hectares de Amazônia e na safra 2017/18, a área havia aumentado para 4,66 milhões e somente 2% não cumpria a exigência. É autossabotagem que se chama.

Saiba mais:

BioScience – World Scientists’ Warning of a Climate Emergency  

As seis mudanças urgentes para conter a emergência climática, segundo 11 mil cientistas 

Metas do Acordo de Paris são insuficientes, alerta estudo  

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As mulheres indígenas não marcham só por elas

As mulheres indígenas não marcham só por elas

Diz a mitologia Munduruku que, nos tempos antigos, as mulheres habitavam o ekçá – a casa dos homens – e cabia aos homens trabalharem para elas. Esses papéis foram invertidos mais tarde; como qualquer sociedade, as comunidades indígenas são dinâmicas: assimilam costumes e se adaptam às circunstâncias. Hoje, um novo movimento feminista floresce no mundo. As mulheres indígenas não querem voltar a habitar o ekçá, mas igualdade. E, principalmente, garantir que seus direitos, assegurados pela Constituição, sejam respeitados. Por isso, assumiram um novo papel e agora lutam, lado a lado, com os homens.

As mulheres têm se destacado no movimento indígena atual. São nomes como a deputada federal Joênia Wapichana, Nara Baré, que está à frente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) e Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), candidata à vice-Presidência da República na última eleição. E não por acaso, as mulheres também estão à frente da luta contra as mudanças climáticas: segundo um estudo da Universidade de Sidney, na Austrália, são elas que mais sofrem com os seus efeitos.

É neste contexto que nasce a Marcha das Mulheres Indígenas, que começa hoje, Dia Internacional dos povos Indígenas, e vai até o dia 13, em Brasília. No desfecho, elas levam às ruas da cidade as suas reivindicações e no dia 14, juntam-se à Marcha das Margaridas. O evento começou a ser gestados a partir de 2016, quando foi realizado a primeira plenária de mulheres indígenas no Acampamento Terra Livre (ATL). O tema escolhido para o encontro foi “Território: nosso corpo, nosso espírito”. Nada mais adequado, já que os indígenas se consideram parte indissociável da terra onde nasceram e vivem.

E é bom que todos fiquem atentos ao que elas têm a dizer: o recém-divulgado relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU indica que a consolidação do direito à terra dos povos indígenas como uma das principais respostas para a crise climática. Nada mais óbvio: se a Terra é o corpo e a alma do indígena, ninguém melhor do que ele para cuidar dela.

O velório do São Francisco

O velório do São Francisco

Meu pai nunca mais quis olhar para o São Francisco. Para ele, é como ver o corpo de um parente na sala de casa, num velório que não tem fim. Nossa terra foi declarada morta oficialmente em 1988, quando começou a funcionar a Usina Luiz Gonzaga. Ela está sepultada sob as águas do Lago Itaparica, construído para ser o reservatório da hidrelétrica. Nós, tuxá, vivíamos em 30 ilhas fluviais. A maior delas, onde fazíamos a roça, era a Ilha da Viúva. Mas cada qual tinha sua serventia: numa havia mais capivaras para caçar; noutra o peixe era abundante; a outra nos era sagrada, nosso templo. Tínhamos tudo o que queríamos. E seria assim por toda a nossa existência, pois tirávamos de lá somente o que precisávamos. Nunca fizemos o São Francisco sofrer.

Nossa cota de sacrifício para o que se convencionou chamar de progresso foi alta. Hoje, vivemos exilados às margens do rio. O indígena é parte de sua terra. Quando fomos tirados do leito do rio, perdemos parte da nossa identidade. Tivemos que nos refazer. Não somos mais os tuxá de outrora, mas ainda somos tuxá. Continuamos amando o São Francisco como a um parente e dependendo dele para sobreviver. Mas agora também nos sentimos responsáveis por ele. O rio hoje enfrenta forças além das suas. Quando diz “não destruam o futuro de nossas crianças”, o Cacique Raoni não se refere somente aos curumins kayapó, mas às crianças de todo o mundo. Porque quando o indígena defende os seus direitos e a natureza está lutando pelo bem comum.

Para além de nossas terras, o São Francisco estabelece graus de parentesco com outros povos. Muita gente também o ama como a um parente e tira dele o seu sustento. Todo o mal praticado contra o rio se reflete diretamente na vida de mais de 14 milhões de pessoas. E não são poucos esses males: suas águas recebem esgoto sem tratamento, são desviadas clandestinamente para irrigação, sofrem os efeitos das mudanças climáticas e da mineração, e são barradas para a construção de hidrelétricas. Agora, o São Francisco é vítima indireta dos maiores desastres ambientais do Brasil: os rejeitos que vazaram da barragem da Vale em Brumadinho chegaram até ele em abril; mês passado, as manchas de óleo que deram no litoral nordestino adentraram seu leito, vindas do mar.

Não é só de nossas dores que estou falando. Sempre tivemos a consciência de que somos parte de grande organismo, a Mãe Terra. Essa nossa compreensão, que é espiritual, foi confirmada pela Ciência moderna – a mesma que atestou que nosso modo de vida preserva rios e florestas. Mesmo depois de sermos arrancados de nosso território original, temos que defender a casa onde vivemos hoje de invasores. Ailton Krenak alertou: “Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir”. Desde a chegada do europeu somos obrigados a transformar nosso luto em força para lutar. Mas sabemos que hoje não estamos sós, e isso nos dá ainda mais força. Não vamos deixar que destruam o futuro de nossas crianças.

Por Dinamam Tuxá, coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo

Artigo publicado originalmente no jornal O Globo

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