O velório do São Francisco

novembro 2019

Meu pai nunca mais quis olhar para o São Francisco. Para ele, é como ver o corpo de um parente na sala de casa, num velório que não tem fim. Nossa terra foi declarada morta oficialmente em 1988, quando começou a funcionar a Usina Luiz Gonzaga. Ela está sepultada sob as águas do Lago Itaparica, construído para ser o reservatório da hidrelétrica. Nós, tuxá, vivíamos em 30 ilhas fluviais. A maior delas, onde fazíamos a roça, era a Ilha da Viúva. Mas cada qual tinha sua serventia: numa havia mais capivaras para caçar; noutra o peixe era abundante; a outra nos era sagrada, nosso templo. Tínhamos tudo o que queríamos. E seria assim por toda a nossa existência, pois tirávamos de lá somente o que precisávamos. Nunca fizemos o São Francisco sofrer.

Nossa cota de sacrifício para o que se convencionou chamar de progresso foi alta. Hoje, vivemos exilados às margens do rio. O indígena é parte de sua terra. Quando fomos tirados do leito do rio, perdemos parte da nossa identidade. Tivemos que nos refazer. Não somos mais os tuxá de outrora, mas ainda somos tuxá. Continuamos amando o São Francisco como a um parente e dependendo dele para sobreviver. Mas agora também nos sentimos responsáveis por ele. O rio hoje enfrenta forças além das suas. Quando diz “não destruam o futuro de nossas crianças”, o Cacique Raoni não se refere somente aos curumins kayapó, mas às crianças de todo o mundo. Porque quando o indígena defende os seus direitos e a natureza está lutando pelo bem comum.

Para além de nossas terras, o São Francisco estabelece graus de parentesco com outros povos. Muita gente também o ama como a um parente e tira dele o seu sustento. Todo o mal praticado contra o rio se reflete diretamente na vida de mais de 14 milhões de pessoas. E não são poucos esses males: suas águas recebem esgoto sem tratamento, são desviadas clandestinamente para irrigação, sofrem os efeitos das mudanças climáticas e da mineração, e são barradas para a construção de hidrelétricas. Agora, o São Francisco é vítima indireta dos maiores desastres ambientais do Brasil: os rejeitos que vazaram da barragem da Vale em Brumadinho chegaram até ele em abril; mês passado, as manchas de óleo que deram no litoral nordestino adentraram seu leito, vindas do mar.

Não é só de nossas dores que estou falando. Sempre tivemos a consciência de que somos parte de grande organismo, a Mãe Terra. Essa nossa compreensão, que é espiritual, foi confirmada pela Ciência moderna – a mesma que atestou que nosso modo de vida preserva rios e florestas. Mesmo depois de sermos arrancados de nosso território original, temos que defender a casa onde vivemos hoje de invasores. Ailton Krenak alertou: “Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir”. Desde a chegada do europeu somos obrigados a transformar nosso luto em força para lutar. Mas sabemos que hoje não estamos sós, e isso nos dá ainda mais força. Não vamos deixar que destruam o futuro de nossas crianças.

Por Dinamam Tuxá, coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo

Artigo publicado originalmente no jornal O Globo

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