Lições de guerra

Lições de guerra

Uma das maiores riquezas do Brasil – corremos o risco de perdê-la também, mas essa é outra história – é a sua tradição diplomática, que privilegia a paz, o debate e o bom senso. Ela não vem de ontem, mas dos tempos do imperador. Infelizmente, isso não nos torna capazes de impedir guerras – a irracionalidade é indomável – e, muito menos, imunes às suas consequências, por mais longe que aconteçam. Porém, podemos aprender algo com elas. Mal foram disparados os primeiros tiros entre russos e ucranianos, as manchetes já estampavam que o barril de petróleo tinha atingido o seu maior preço desde 2014. Lição número 2 – a primeira, evidentemente, é faça amor, não faça guerra: nunca ponha todos os ovos na mesma cesta. Ou seja, não aposte numa única matriz energética.

No Brasil, 57,5% da eletricidade vem das hidrelétricas. Já foi bem mais, só que veio a crise hídrica – causada por nós mesmos, diga-se de passagem – e o que parecia uma fonte inesgotável começou a secar. É preciso diversificar e os investimentos em energias solar e eólica vêm crescendo, é verdade; deveria ser bem mais, entretanto. Sol e vento são de graça, mas o atual governo teima em continuar a gastar nosso dinheiro com termelétricas movidas a combustíveis fósseis, que estão ficando cada vez mais caros – o que já vinha acontecendo antes de russos e ucranianos chegarem às vias de fato. Perdemos o meio ambiente e nós, duas vezes: vemos o dinheiro de nossos impostos ser queimado e a conta de luz disparar.

Lembram-se quando começou a pandemia da Covid-19 e faltaram máscaras no mercado? A guerra contra o coronavírus tem uma semelhança com a que ora castiga a Europa nesse sentido. Assim como a China havia monopolizado o mercado de material hospitalar, hoje os europeus têm que ficar pianinho com Putin, ou entram numa fria. Eles são totalmente dependentes do gás que vem da Rússia para aquecerem seus lares no inverno – por ironia, a mesma estação que ajudou o país a derrotar Napoleão e Hitler. Lição número 3: há setores que não devem ser terceirizados, pois são estratégicos para a soberania nacional.

No último dia 22, os acionistas deram o seu aval para a privatização da Eletrobras. É como entregar a chave de casa para um estranho. Haja confiança. Há duas semanas, tivemos uma notícia bastante desagradável relacionada a outro setor estratégico: a Changi, uma empresa de Cingapura, simplesmente desistiu de administrar o Aeroporto Internacional Tom Jobim, vulgo Galeão, oito anos depois de ganhar o leilão de sua concessão. A razão alegada foi que o negócio estava dando prejuízo.

Os aeroportos do Nordeste foram privatizados em 2019. Quem dá as cartas agora é a empresa espanhola Aena, uma estatal, vejam só. Todo mundo gosta do Brasil, mas, sabem como é, nunca se sabe o dia de amanhã. Vai que a empresa é arrematada por uma estatal de outro país e a gente acabe se estranhando? Ficaremos totalmente à sua mercê: basta tirar a tomada. Em nome de que correr um risco desses?

Tem outro caso emblemático, que envolve diretamente a guerra em curso, nos aproxima dos europeus e que pode afetar gravemente a menina dos olhos do governo, o agronegócio. O país importa 85% dos fertilizantes que consome, sendo que em janeiro a Rússia respondeu por 30,1% deste total. Mal foram iniciadas as hostilidades, o preço de suas principais matérias-primas, a ureia e o fósforo, aumentaram 42% e 16%, respectivamente. E o Brasil pensa em abrir mão do controle de uma de suas jóias da coroa, uma companhia do ramo que, assim como a Embraer – cuja venda melou, por sinal – é referência no exterior e que também deveria ser considerada estratégica a essa altura do campeonato, a Embrapa. E se ela for parar nas mãos da concorrência?

Justo agora que o mundo precisa mais do que nunca investir em produção de alimentos de forma sustentável? Quando teríamos a chance de nos tornar os bambambãs do pedaço na área, a gente vai entregar o ouro? No meio de tanta incerteza? O patrão ficou maluco?

 

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Veneno a jato

Veneno a jato

O agro é supersônico: piscou, tem agrotóxico novo no prato. No ano passado, o Ministério da Agricultura liberou 474 novos produtos, o maior número dos últimos 14 anos. E este ano começou pisando fundo no acelerador: logo no segundo dia de março, foram mais 16. Só esperaram acabar o Carnaval. Vem novo recorde por aí? Tudo indica que sim, pois a ministra Tereza Cristina não ganhou o título de “musa do veneno” à toa. Sua atuação na presidência da comissão especial que examinou o Projeto de Lei 6299/02, que flexibiliza as regras de utilização de agrotóxicos no país, foi fundamental para a sua aprovação. Conhecido como PL do Veneno, ele ainda aguarda aprovação em plenário. Mas a verdade é que já se tornou obsoleto. No atual governo, essa flexibilização acontece por outras rotas. E sua velocidade não é de cruzeiro.

No dia 27 de fevereiro, o ministério publicou uma portaria que determina a aprovação automática de agrotóxicos pela Secretaria de Defesa Agropecuária, caso a avaliação do produto não seja feita em até 60 dias. Ou seja, criou-se mais um atalho para a liberação. Mesmo que a substância também precise passar por análises dos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde, há quem veja uma tabelinha entre as três pastas: “Está dentro desse padrão em que há uma clara sinalização da ascendência do Ministério da Agricultura sobre a Saúde e o Meio Ambiente. São vários movimentos para acelerar essa liberação. Um ministério que não ampliou sua capacidade de análise, o número de analistas, os laboratórios, como poderia reduzir o prazo das análises? Que análises seriam essas que podem admitir dispensa?”, questiona o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, da Associação Brasileira de Agroecologia para a Região Sul.

Essa aprovação a toque de caixa se torna ainda mais preocupante depois que a Anvisa alterou a tabela de classificação de toxidade dessas substâncias em julho do ano passado. Este novo marco legal passou a considerar, entre outras alterações, somente o risco de morte para a classificação. Com isso, produtos que eram considerados “extremamente tóxicos” hoje podem hoje ser avaliados como moderadamente ou pouco tóxicos. Entre estes, há produtos que causam alterações genéticas e que podem causar câncer. O Brasil permite o uso de dezenas de produtos proibidos na União Europeia, Estados Unidos, Índia, Austrália, Canadá e até na vizinha Argentina.

A alegação para tanta pressa e tolerância é que o excesso de burocracia estava atrapalhando os negócios. Já demos esta sugestão, mas não custa repetir: proibir automaticamente produtos já proibidos em outros países – principalmente os que importam nossos produtos agrícolas – já nos pouparia tempo e dinheiro. Também cabe aqui um exercício de imaginação: será que o Ministério da Agricultura agiria com a mesma agilidade caso a demarcação de terras indígenas ficasse sob a sua responsabilidade, como queria o presidente?

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Chega de agrotóxicos

Chega de agrotóxicos

O glifosato conseguiu unir social-democratas, liberais e extrema-direita na Áustria: o parlamento local aprovou em 2 de julho uma lei que proíbe qualquer tipo de uso do herbicida. É o primeiro país da Europa a bani-lo totalmente. Em 2015 a Organização Mundial da Saúde alertava que o agrotóxico poderia causar câncer. A fabricante Monsanto foi condenada em maio pela Justiça da Califórnia a pagar uma indenização de US$ 2 bilhões a um casal de idosos.

Mas o prejuízo é geral: além de causar mal à nossa saúde, o glifosato também está matando as abelhas. O produto enfraquece o sistema imunológico desses insetos polinizadores, dos quais dependem 73% das espécies vegetais do planeta. Só que enquanto os austríacos tomam suas providências, nós tomamos mais veneno. Além de o glifosato ser o agrotóxico mais usado no Brasil, nunca se liberou tantos produtos novos no país em tão pouco tempo. De janeiro para cá, foram 239. Só no dia 24 de junho foram 42. A gente ainda paga por isso: os incentivos fiscais para agrotóxicos podem passar de R$ 14 bilhões por ano.

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Entre dezembro de 2018 e março de 2019 mais de meio bilhão de abelhas foram encontradas mortas em diversas regiões do país. Mesmo que não nos mate de câncer todo esse veneno pode nos matar de fome: mais da metade as 141 espécies de plantas cultivadas no Brasil precisa de insetos polinizadores para se reproduzir. Pode matar o agronegócio também: Mercosul e União Europeia estão firmando um acordo comercial, que depende de condicionantes sanitários e ambientais para ser implantado definitivamente; e só entre os produtos liberados este ano, 43% são altamente ou extremamente tóxicos e 31% deles, proibidos na UE. O europeu não está disposto a importar nosso veneno.

Há 538 novos pedidos de registro em andamento. Governo e ruralistas argumentam que o excesso de zelo e de burocracia estava emperrando a liberação de novos agrotóxicos. Então a gente vai dar uma sugestão para agilizar esse andamento e evitar imbróglios com nossos parceiros comerciais: que tal riscar logo da lista os produtos proibidos na Europa? Depois a gente parte para a aprovação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA).

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Bombardeio de agrotóxicos

Bombardeio de agrotóxicos

É preciso respirar fundo e ouvir a música “Paciência”, do Lenine, para ler esta notícia: em nome de que o Ministério da Agricultura autorizou 28 agrotóxicos extremamente perigosos, como o Sulfoxaflor, que extermina insetos danosos à lavoura, mas também abelhas, fundamentais à polinização? Em 2018, já haviam sido registrados 450 agrotóxicos, sendo somente 52 de baixa toxicidade.

O pacote de agora embala produtos químicos com Imazetapir e o Sulfentrazona proibidos na União Europeia. O perigo ronda o meio ambiente e a nossa mesa! O que se gostaria de escrever agora seria um palavrão. Fique à vontade para gritar o seu.

Via O Globo

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