Congresso ignora sociedade e clima com PL da Devastação

Congresso ignora sociedade e clima com PL da Devastação

No momento em que o mundo convoca pela urgência de ações climáticas e respeito aos direitos humanos, o Congresso brasileiro avança com o chamado “PL da Devastação” (PL 2.159/2021), que desmantela o licenciamento ambiental e ignora os territórios de povos indígenas e quilombolas. Isso é ainda mais grave após o parecer consultivo da Corte Interamericana de Direitos Humanos, divulgado no início de julho, que liga direitos humanos e crises climáticas.O artigo a seguir, publicado no Correio Braziliense, expõe como o Congresso desrespeita a sociedade e o clima, omitindo ciência e diálogo, ao mesmo tempo em que coloca o Brasil em xeque antes da COP‑30 em Belém.


Congresso ignora sociedade e clima com PL da Devastação

Os parlamentares não poderão dizer que estavam desavisados. A Corte IDH divulgou um parecer consultivo histórico sobre a relação entre emergências climáticas e proteção dos direitos humanos

Por Juliana de Paula Batista — advogada socioambientalista e Vercilene Francisco Dias, coordenadora do Departamento Jurídico da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq)

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) divulgou, no começo de julho, um parecer consultivo histórico sobre a relação entre emergências climáticas e proteção dos direitos humanos. O documento vincula os países que se submeteram à jurisdição da Corte IDH, caso do Brasil, a adequarem suas leis, políticas públicas e ações aos parâmetros mais eficazes para a proteção dos direitos tratados no parecer. “Os Estados têm a obrigação de agir (…) para combater as causas humanas das alterações climáticas e proteger as pessoas sob a sua jurisdição dos impactos climáticos, em particular aquelas que se encontram em situação de maior vulnerabilidade”, diz o parecer.

A boa-nova, no entanto, encontra um clima pouco amigável no Brasil com a aprovação, na madrugada de 17 de julho, do PL 2.159/2021, ou o PL da Devastação, na Câmara dos Deputados. O projeto, que agora segue para sanção ou veto do presidente da República, desmonta, de modo preocupante, as regras para o licenciamento ambiental de obras e atividades, alterando o arcabouço vigente desde a redemocratização.

Se for mantido, permitirá que empreendimentos altamente impactantes sejam licenciados a toque de caixa. Terras indígenas e quilombolas, por exemplo, só serão consideradas se já estiverem nas fases finais de um longo e complexo processo de regularização fundiária, o que pode demorar mais de 30 anos. As terras que estão nas fases iniciais do processo de demarcação ou titulação poderão ser solenemente ignoradas, e grandes empreendimentos nelas instalados. Os impactos não serão estudados, tampouco prevenidos, mitigados ou compensados. O que restará serão danos irreparáveis.

A estratégia não é ingênua e foi pensada justamente para criar fatos consumados por terceiros nessas áreas, inviabilizar a posse plena da terra e gerar ainda mais insegurança jurídica para os direitos fundamentais de indígenas e quilombolas. As terras indígenas e quilombolas estão entre as principais barreiras contra o avanço do desmatamento no Brasil. Dados do Mapbiomas mostram que, nos últimos 30 anos, terras indígenas perderam apenas 1% de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 20,6%.

Legislar contra o meio ambiente e em prejuízo das terras indígenas e quilombolas viola frontalmente uma das conclusões unânimes da Corte IDH: os estados devem adotar as medidas legislativas, administrativas e de política pública adequadas para garantir a proteção dos territórios dos povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais, além de implementar estratégias voltadas para reforçar, a curto e longo prazo, a resiliência e a capacidade de adaptação climática desses povos.

O Congresso Nacional não se preocupou com nada disso. Tampouco considerou o melhor conhecimento científico disponível para tomar suas decisões. O campo científico não foi convidado para sentar à mesa e apresentar estudos que pudessem nortear uma discussão racional sobre as consequências da nova lei para o clima. Qual será o impacto? Ninguém sabe.

Mas, os parlamentares não poderão dizer que estavam desavisados. A Corte IDH alertou que os países devem fortalecer o Estado Democrático de Direito como marco essencial para proteger os direitos humanos, a eficácia da ação pública e uma participação cidadã aberta e inclusiva. Com ouvidos moucos, eles preferiram a seletividade que lhes mantêm beneficiados por lobbies e emendas. A sociedade? Que coma brioches.

É fundamental que se coloque freio de arrumação em um Congresso que legisla de costas para a sociedade. A emergência climática já sacrifica os brasileiros, especialmente os mais pobres, como vimos nas enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul ou nos incêndios florestais que consumiram o Pantanal.

Na antevéspera da Conferência das Partes (COP-30), que acontece em Belém, em novembro, o Congresso Nacional boicota o papel do Brasil como um país que poderia estar na vanguarda das negociações climáticas. Nesse cenário, o parecer consultivo da Corte IDH é um instrumento importante para fortalecer — seja nas prováveis judicializações que devem acabar no Supremo Tribunal Federal, seja na própria Corte IDH — a defesa do meio ambiente.

Para os indígenas e quilombolas, que resistem dia a dia, o parecer da Corte IDH será uma ferramenta de luta para manter em pé seus povos e vivos os seus territórios.

 

Enredos do século passado

Enredos do século passado

Se é verdade que o ano no Brasil só começa depois do Carnaval, ainda bem que este caiu no início de fevereiro, pois temos muito a fazer. O bloco da Bancada do Fim do Mundo não está nem aí para estourar o tempo do desfile – leia-se o prazo para tomarmos medidas definitivas contra o avanço das mudanças climáticas e o ponto de não retorno da Amazônia –, como se não houvesse amanhã. Fora que o seu repertório parece inesgotável, embora seja só variações sobre os mesmos temas. E aqui estamos nós, com 30 anos de atraso – a Constituição diz que todas as terras indígenas deveriam estar demarcadas até 1993, bem como determinou a titulação dos quilombos –, falando de “marco temporal”. Um enredo do século passado.

A Unidos do Ruralismo tem em mãos uma ala quase imbatível, a maioria do Congresso mais antivida que já tivemos. Em 21 de setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, por nove votos a dois, a inconstitucionalidade da tese, que põe barreiras quase intransponíveis para que novos territórios originários sejam homologados – e ainda ameaça muitos já demarcados. A despeito de a maior Corte do país considerá-la inconstitucional, os ruralistas aprovaram, ainda em setembro, o PL 2.903/2023, que institui o marco temporal. 

O projeto foi vetado pelo presidente Lula em outubro, mas os congressistas derrubaram o veto. Seu nome agora é Lei 14.701/2023. Coube a uma deputada federal indígena liderar uma nova luta no Supremo, agora pela inconstitucionalidade da lei. Inacreditavelmente, o judiciário terá que julgar novamente um caso que já deu por resolvido. Anotem na agenda: o STF julga este ano duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) e enfrenta a pressão dos lobbies do agronegócio e da mineração. O relator será Gilmar Mendes. 

Também dormita na Câmara o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, cujo objetivo é retirar o Brasil da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na prática, ela liberaria geral a mineração, o agronegócio e a construção de obras de impacto em terras indígenas. Ou seja, mais do mesmo. A Escola de Samba Salgueiro levou à avenida o enredo Hutukara, que conta a história da luta Yanomami. Sim, luta.  O próprio Davi Kopenawa, uma de suas mais proeminentes lideranças, pediu que a escola não tratasse os Yanomami como coitadinhos e, sim, como são de fato: guerreiros.  A invasão de sua terra por garimpeiros remonta aos anos 1980, mas eles vêm resistindo bravamente. 

Só que já passou da hora de encontrar uma solução rápida e definitiva. No início do ano, o governo federal anunciou que vai investir R$ 1,2 bilhão numa operação permanente contra o garimpo ilegal. É preciso que os povos indígenas participem da coordenação dessas ações e fiscalizem para onde vai esse dinheiro. Sabe-se que membros das Forças Armadas que têm simpatia pelo garimpo sabotaram missões no território – isso sem contar os políticos da região, que têm políticas francamente anti-indígenas. É agente da “abin paralela” pra todo lado.

Os garimpeiros não trabalham para si próprios, mas para muitos dos ocupantes das cadeiras do Congresso ou empresários que os apoiam financeiramente – e este ano tem eleições municipais. É preciso escolher candidatos comprometidos com a defesa da vida e ficar nos seus pés depois de eleitos. Cada anúncio de obra do PAC na Amazônia merece atenção redobrada. Uma estrada asfaltada, hidrovias, pistas de pouso e ferrovias serviriam para facilitar a vida dos invasores e para desviar dinheiro que poderia desenvolver a bioeconomia e ações de conservação. Tapetes vermelhos para o crime por cima do verde.

Outro desafio que não pode esperar mais um Carnaval é o desmatamento no Cerrado. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), enquanto houve uma redução de 50% do desmatamento na Amazônia, no segundo maior bioma do Brasil ele cresceu 43%. Foram abaixo 7,8 mil km² de vegetação nativa em 2023. Não tem tanto segredo porque a causa é basicamente uma: o avanço sem trégua do monopólio da soja. 

A solução mais prática e óbvia nos leva ao início do artigo: o aumento de áreas protegidas. A Amazônia tem mais de 40% de seu território coberto, enquanto no Cerrado essa proporção fica entre 12% e 14%. É preciso demarcar mais terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação. E, claro, cortar os subsídios dos desmatadores. A marchinha favorita dessa turma é “Me dá um dinheiro aí”. 

Como diz o pensador acadêmico da ABL Ailton Krenak, “até quando as pessoas vão ficar olhando o povo indígena defender sozinho a floresta?”. O escritor também disse que não quer “salvar os indígenas, mas evitar a extinção da espécie humana”. Tem enredo melhor que esse? É hora de a sociedade civil puxar esse samba.

 

Saiba mais:

ACNUDH manifesta-se contra retirada do Brasil da Convenção 169 da OIT

https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/acnudh-manifesta-se-contra-retirada-do-brasil-da-convencao-169-da-oit

 

Não adianta chorar sobre o cerrado derrubado

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/01/nao-adianta-chorar-sobre-o-cerrado-derrubado.shtml

 

Congresso derruba veto de Lula ao marco temporal das terras indígenas

https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2023/12/congresso-derruba-veto-de-lula-ao-marco-temporal-das-terras-indigenas

 

Marco temporal volta ao STF com três ações diferentes e Gilmar Mendes relator; entenda

https://www.brasildefato.com.br/2024/01/04/marco-temporal-volta-ao-stf-com-tres-acoes-diferentes-e-gilmar-mendes-relator-entenda

 

PP, Republicanos e PL acionam o STF para validar o marco temporal de terras indígenas

https://www.jota.info/justica/pp-republicanos-e-pl-acionam-o-stf-para-validar-o-marco-temporal-de-terras-indigenas-28122023

Um plano de vida para a Terra

Um plano de vida para a Terra

Não é de hoje que os indígenas vêm dizendo ao mundo que o clima está mudando e só têm encontrado ouvidos de mercadores. “Há muito tempo, desde que eu era menino, há 30, 40 anos, meu povo vem notando essas mudanças no clima, o calor aumentando e a chuva rareando. Antigamente, chovia pelo menos a cada 10 dias. Agora, são 90 dias sem cair um pingo sequer”, diz o cacique Zé Bajaga Apurinã, da aldeia Idecora, na Terra Indígena Caititu, que fica no município de Lábrea (AM).

“Temos visto deslizamentos de terra e inundações nas cidades. Isso acontece porque desmataram as encostas dos morros e impermeabilizaram o solo. A água não tem para onde ir e nenhum tipo de contenção. As cidades precisam de mais áreas verdes. É preciso reflorestá-las. Sem contar que o cimento e o asfalto refletem o sol e fazem o calor aumentar”, ensina o cacique Zé Bajaga, que também é coordenador executivo da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp) e faz parte do Conselho da Coordenação das Organizações da Amazônia Brasileira (Coiab).

A guerra contra a crise no clima tem que se dar em duas frentes: a redução da emissão de gases do efeito estufa e a adaptação dos territórios – urbanos, rurais ou florestais – à nova realidade por ela imposta. A ocupação da Amazônia começou há 14 mil anos e os povos originários têm todo esse tempo de experiência acumulada para se adaptar a circunstâncias adversas, incluindo catástrofes naturais. E eles já começaram a planejar para lutar em ambos os flancos, unindo saberes ancestrais e ciência moderna ‘no papel’. O Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) é uma ferramenta da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) que norteia a forma como eles manejam seu território. É tão importante para os povos originários que eles o chamam de Plano de Vida. 

Apesar de um estudo do governo federal ter alertado que, em mais de um terço dos municípios brasileiros, há pessoas vivendo em áreas suscetíveis a desastres naturais, a Confederação Nacional dos Municípios revelou que menos da metade dos municípios brasileiros que estão no Cadastro Nacional de Risco possuem Plano Municipal de Redução de Risco e 30% deles não têm sequer Plano Diretor. Enquanto isso, os povos indígenas vêm investindo na elaboração ou reformulação do PGTA de suas terras para contemplar estratégias de enfrentamento ao aquecimento global. 

O cacique Zé Bajaga Apurinã exemplifica uma ação voltada para o combate às mudanças climáticas prevista no documento que ajudou a conceber: “Nosso plano prevê a plantio de árvores de diversos tipos, frutíferas e não frutíferas, que ajudam a reduzir a temperatura local e a chuva a voltar”. Essas árvores também servirão de abrigo e vão fornecer alimentos à fauna local, que se encarregará de espalhar sementes pela mata. Os PGTAs têm o objetivo de promover a proteção socioambiental, o desenvolvimento sustentável e a implementação de políticas públicas em seus territórios – como saúde e educação.

Pensando em compartilhar conhecimento e buscar financiamentos para implementar e executar os PGTAs na Amazônia, a Coiab lançou um site que reúne quase 100 projetos de organizações dos nove estados da Amazônia Legal. É o maior banco de dados sobre esses territórios, que cobrem 700 mil km², onde vivem 152 povos diferentes, 17% deles isolados.

“A ideia é que o site seja uma vitrine para mostrar o que cada terra indígena tem feito pela sustentabilidade e as soluções que já encontramos e praticamos em nossos territórios. Essa ferramenta pode ser uma importante contribuição dos povos indígenas para a autossustentabilidade da Amazônia e do planeta”, explica o coordenador de Projetos da Coiab, Luiz Penha, do povo Tukano, do Amazonas. “É importante lembrar que a conservação das florestas e o equilíbrio do clima passam pela garantia de direitos aos indígenas sobre suas terras, e o PGTA é um instrumento feito de forma coletiva, por cada povo indígena, com esse objetivo”, completa o coordenador-geral da Coiab, Toya Manchineri. 

As tragédias se repetem, ano após ano, nas regiões Sul e Sudeste, as mais desenvolvidas do país. Enquanto isso, os povos originários continuam compartilhando saberes e aprendizados acumulados ao longo de milênios manejando a floresta, para mostrar um caminho possível para a gestão dos vários territórios em tempos de mudanças climáticas. Ouvir os indígenas é importante, mas não basta para frear o colapso do clima e do planeta: é preciso agir como eles.

Saiba mais

Todos os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs)

https://pgtas.coiab.org.br/ 

2023 é o mais quente em 174 anos, confirma relatório da OMM

https://portal.inmet.gov.br/noticias/2023-%C3%A9-o-mais-quente-em-174-anos-confirma-relat%C3%B3rio-da-omm 

48 mil morreram por ondas de calor no Brasil entre 2000 e 2018

https://oc.eco.br/mais-de-48-mil-pessoas-morreram-por-ondas-de-calor-no-brasil-entre-2000-e-2018/?swcfpc=1 

El Niño está sendo intensificado pelas mudanças climáticas, trazendo chuvas mal distribuídas

https://jornal.usp.br/atualidades/el-nino-esta-sendo-intensificado-pelas-mudancas-climaticas-trazendo-chuvas-mal-distribuidas/ 

Desastres em 47% dos Municípios forçaram mais de 4,2 milhões a deixarem suas casas nos últimos 10 anos

https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/desastres-em-47-dos-municipios-forcaram-mais-de-4-2-milhoes-a-deixarem-suas-casas-nos-ultimos-10-anos 

Mais de um terço dos municípios brasileiros têm moradores em áreas de risco de desastres naturais, aponta estudo

https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/01/18/mais-de-um-terco-dos-municipios-brasileiros-tem-moradores-em-areas-de-risco-de-desastres-naturais-aponta-estudo.ghtml 

Raposa Serra do Sol O Legado da Demarcação

Raposa Serra do Sol O Legado da Demarcação

Os povos indígenas venceram mais uma batalha no Supremo Tribunal Federal na semana passada, que fez o óbvio e considerou a tese do “marco temporal” inconstitucional. Mas a guerra não terminou. Os ministros ainda vão ter que se debruçar sobre as condicionantes propostas por Alexandre de Moraes e Dias Toffoli – como, por exemplo, definir as indenizações dos ocupantes de suas terras e quem as ocupou por “boa fé” – e novamente enfrentar a insaciável bancada ruralista, que promete contra-atacar no Congresso. Em defesa dos povos originários contra essas propostas, um artigo assinado por Enock Taurepang, vice-coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), e Alcebias Sapará, vice-coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), conta como a Terra Indígena Raposa Serra do Sol se tornou um dos melhores exemplos de que a política de demarcação é bem-sucedida e a melhor solução para produzir preservando o meio ambiente.

*Por Enock Taurepang e Alcebias Sapará

A Raposa Serra do Sol está chegando à maioridade em grande estilo. Basta comparar o que ela é hoje ao que era há 18 anos para entender a importância da demarcação de terras indígenas. Lá não tem criança dormindo na rua ou gente na fila do osso. Os invasores chegaram à região a partir dos anos 1990, derrubando a floresta, arruinando a terra e envenenando os rios. Como não tínhamos o que comer — não havia mais peixe, caça e solo fértil —, éramos obrigados a trabalhar para arrozeiros ou garimpeiros. Nessa época, poucos se preocupavam se estávamos passando necessidade.

Não foi fácil arrumar a casa. Em 2005, quando foi homologada a demarcação, as fazendas que ocupavam a Raposa Serra do Sol tinham virado terra arrasada: a água estava poluída, puseram todas as construções abaixo e envenenaram a última safra de arroz. E os invasores foram devidamente indenizados. Hoje cinquentenário, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) nasceu da necessidade e amadureceu na luta. Cada vitória e derrota serviu de experiência.

A tese do “marco temporal”, ora em avaliação no Supremo Tribunal Federal (STF), foi cogitada como forma de garantir a demarcação de nosso território de forma contínua — mas sequer chegou a ser utilizada. O decreto que homologou a Raposa Serra do Sol em 2005 foi alvo de várias contestações judiciais, mas em 2009 parecia que o STF havia batido o martelo definitivamente: o “marco temporal” só valeria para aquele caso.

Aprová-lo agora seria não apenas uma incoerência, como uma punição para quem age corretamente. Afinal, revitalizamos nosso lar seguindo o que prevê a Constituição: usamos a terra somente para exercer nossa cultura e retirar nosso sustento. Nossos costumes ajudam a preservar o meio ambiente porque fazemos parte do ecossistema local; não vivemos na ou da floresta, mas com ela. Já o “marco temporal” é inconstitucional e antinatural.

Em 22 de agosto, durante a nossa sexta assembleia, aprovamos os nossos Protocolo de Consulta e Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA). Elaborados coletivamente, são estes dois documentos que guiarão, a partir de agora, nossas ações e decisões. Daremos atenção especial à educação, para reforçar o ensino da língua materna de cada povo e o uso da medicina tradicional. Se vivemos da mesma forma que nossos ancestrais há milênios, é porque deve ser uma boa forma de viver, não? Nossas terras se prestam naturalmente à agricultura e à criação de animais. Não precisamos desmatar ou modificar o solo para lhe impor uma monocultura invasora.

Por outro lado, como qualquer cultura, assimilamos costumes. Não estamos mais nos tempos da caravela: se Cabral chegou aqui em 44 dias, hoje um português chega à Bahia em pouco mais de oito horas e meia. Daí a decisão de, desde sempre, investirmos na educação formal dos mais jovens. Hoje, nossos departamentos de comunicação e jurídico são formados por jornalistas e advogados indígenas. Aliás, foi do último que veio Joenia Wapichana, primeira mulher indígena deputada federal e primeira mulher presidente da Funai. Estamos na linha de frente até na luta contra o machismo.

Somos cinco povos diferentes vivendo num território do tamanho de Sergipe. O mundo é cheio de exemplos de conflitos envolvendo situações semelhantes. Os povos macuxi, wapichana, taurepang, patamona e ingarikó têm seus próprios costumes, mas as diferenças nos atraem, em vez de nos repelir. A união e o respeito são a base de nossa relação; e a Raposa Serra do Sol, a prova concreta da eficiência da política de demarcações.

* Enock Taurepang é vice-coordenador geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização que representa nove povos em 35 terras indígenas do estado, incluindo a Raposa Serra do Sol, Alcebias Constantino Sapará é vice-coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira

Mulheres indígenas em defesa da vida

Mulheres indígenas em defesa da vida

Por Vinícius Leal

Se não é fácil ser mulher nesse mundo cruel, imagina ser mulher indígena? Segundo a ONU, há 238,4 milhões delas espalhadas pelos cantos do globo. Elas são fundamentais para o bem-estar de suas famílias, das comunidades onde vivem e do próprio planeta: como estão na linha de frente da preservação da natureza, formam, junto com os biomas que protegem, a principal barreira contra as mudanças climáticas. Como além de cruel o mundo é ingrato, em geral elas recebem em troca descaso e opressão. Mas jamais fogem à luta. E suas armas são muitas.

Foi num período especialmente dramático para os povos originários do Brasil que muitas mulheres indígenas encararam mais um desafio: o da reinvenção. Durante a onda da Covid-19 em Manaus, no coração do Parque das Tribos, o maior bairro indígena do país, onde vivem mais de 700 famílias de 35 etnias, surgiu um novo jeito de gerar renda e resistir à necessidade. Impossibilitadas de saírem de casa para vender suas obras artesanais ou trabalhar como empregadas domésticas – atividade que a maioria exercia –, elas começaram a costurar máscaras de proteção contra o coronavírus. Usaram de uma velha arte para combater um novo inimigo.

Vanda Witoto, coordenadora do Ateliê Derequine, faz parte desse grupo de empreendedoras. “Antigamente fazíamos nossas produções de roupa a partir das cascas de pau, como o tururi. A minha mãe costurou a vida inteira, aprendeu com minha avó, que foi ensinada pelas freiras. Mas foi na pandemia que começamos a estruturar o nosso ateliê com a produção de máscaras. Muitas mulheres receberam formação para produzir peças de roupa. Isso nos motivou”, explica ela, que também é profissional da saúde, professora e liderança política. Nas últimas eleições, recebeu mais de 25 mil votos para deputada federal, mas não se elegeu por conta do coeficiente partidário.

Foi quando faziam esse trabalho que a virada de chave para o mundo da moda se deu. A partir de então, formou-se um coletivo de criação e de empreendedorismo feminino indígena. “A primeira peça que criamos foi um poncho com a representação do topo da maloca do povo Witoto. A gente fez aplicação de todos os grafismos de triângulo da maloca na peça e isso fez um estalo na cabeça. Eu falei ‘mãe, a gente tem um potencial, essas mulheres não têm renda fixa, vamos nos organizar’. Aí articulamos parcerias para doação de máquinas de costura e oficinas, o que qualificou a gente”, conta Vanda.

Naquela época também nascia uma cena de moda cada vez mais forte em Manaus, que começou a ascender no mercado nacional. Foi aí que o Ateliê Derequine estabeleceu parcerias, ganhou impulso e vem se consolidando como marca, transformando a ancestralidade em traços únicos que traduzem a resistência dos povos e geram renda. O Ateliê é um dos 32 projetos de organizações indígenas da Amazônia financiados pelo Fundo Podáali, o primeiro fundo comunitário indígena, criado e administrado totalmente por indígenas, para indígenas.

Seguindo o mesmo propósito de fortalecimento da autonomia da mulher indígena através da arte e da economia, o projeto Kywagâ – Contrução da Casa de Artesanato, Arte e Moda das Mulheres Kurâ – Bakairi, também é apoiado pelo Podáali. Na parceria, os recursos vêm sendo utilizados para a construção da sede do projeto, o que incentiva a profissionalização. As condições de trabalho e a geração de renda também ganham melhorias a olhos vistos para 20 mulheres do Kywagâ e suas famílias, beneficiando, direta e indiretamente, 300 indígenas das comunidades Aki Ety, Paikum, Aturua, Pakuera e Kuiakware, em Mato Grosso.

Para Rosi Meire Apurinã, vice-diretora do Podáali, o fato de ser um fundo de financiamento que arrecada e aplica recursos em iniciativas geridas por mulheres indígenas, reforça a missão de transformar o presente e o futuro dos povos originários através da descolonização da economia e de ações de sobrevivência protagonizadas por eles próprios. 

“O Podáali tem como uma de suas premissas  fazer com que os recursos cheguem no território respeitando as formas próprias de organização social de cada povo, e é um processo incidir na filantropia, incidir nos doadores, que geralmente têm processos burocráticos que não conversam com as diferentes formas de organização social. ⁹⁹A nossa primeira chamada, que apoiou projetos de até R$ 50 mil, é reflexo disso”, afirmou, referindo-se às iniciativas apoiadas pela 1ª Chamada do Podáali, “Amazônia Indígena Resiste”.

O resultado dessas potências em gestão, financiamento, empreendedorismo e arte produzida por mulheres indígenas esteve representado em Brasília (DF) durante a 3ª Marcha das Mulheres Indígenas, o maior evento de mobilização indígena feminina do país. Os dois coletivos, Ateliê Derequine e o projeto Kywagâ, participaram do Desfile das Originárias da Terra, realizado durante a programação cultural do evento, e que contou com a presença de inúmeras lideranças, artistas de moda e personalidades indígenas.

O nosso desfile ancestral, que conta com mulheres de vários biomas, descoloniza a moda. Quantas vezes nos perguntaram se passamos batom? Passamos batom para não deixar a boiada passar, passamos batom e acertamos os tons para não deixar o marco temporal passar”, bradou a deputada federal Célia Xariabá (PSOL-MG) na abertura do desfile.

Sob o tema “Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade pelas Raízes Ancestrais” e organizado pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) e pelo movimento “Mulheres Biomas do Brasil”, a marcha reuniu mais de 5 mil mulheres indígenas de todas as regiões do país para debater soluções e encontrar caminhos para os desafios vividos pelos povos originários. Entre eles, o combate à violência de gênero e violência política e o empoderamento feminino nos espaços de poder e pela luta de direitos. Com criatividade, coragem, batom ou urucum, elas seguem em frente, seja nas passarelas ou no ‘front’

Foto: Nathalie Brasil / Ateliê Derequine

Saiba mais:

https://www.nationalgeographicbrasil.com/historia/2023/09/dia-internacional-da-mulher-indigena-por-que-a-data-e-celebrada-em-5-de-setembro 

https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/dia-internacional-da-mulher-indigena-2013-entenda-a-importancia-da-data 

https://amazoniareal.com.br/terceira-marcha-mulheres-indigenas/ 

https://anmiga.org/iii-marcha-das-mulheres-indigenas-2023/ 

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