dezembro 2020 | Desenvolvimento Sustentável, Povos Tradicionais
Alessandra Korap, liderança Munduruku
O governo nega o desmatamento na Amazônia, o fogo no Pantanal, a crise econômica, as mudanças climáticas, o racismo estrutural e até mesmo a gravidade da pandemia do novo coronavírus. Esse negacionismo revela uma grande verdade: o que não existe no Brasil é governo. O país se move a iniciativas da sociedade. Só sabemos que mais de 170 mil brasileiros perderam a vida para a Covid-19 graças ao consórcio de veículos de imprensa; e quantos dos nossos se foram, porque a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) faz uma contagem independente, que se tornou uma referência reconhecida. Nas periferias das grades cidades são os movimentos sociais que fazem o trabalho do poder público. Enquanto isso, o Ministério da Saúde deixa estragar num armazém qualquer quase sete milhões de testes, que poderiam ter salvado milhares de pessoas.
Até 30 de novembro, 15 Munduruku haviam morrido de Covid-19. Não foram muitos mais porque o convívio forçado de mais de 500 anos com organismos invasores nos fez criar nossos próprios protocolos. Mas estamos indefesos contra outro mal, ainda mais perigoso e duradouro: a contaminação por mercúrio, causada pelo garimpo ilegal. Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o WWF-Brasil revelou que todos nós, Munduruku que vivemos às margens do Rio Tapajós, carregamos o metal no sangue. Esta tragédia começa bem antes deste governo, é consequência de 70 anos de atividade ilegal, é verdade; mas sua negação em enfrentar o problema – ou ao menos reconhecer sua existência – serve de incentivo aos que invadem os territórios onde vivemos. Quando quebra um termômetro, o mercúrio se espalha. Funciona assim no momento em que o Executivo acena para a regulamentação da mineração em terras indígenas.
O metal está no peixe que comemos, na água que consumimos, e afeta principalmente os rins, o fígado, o aparelho digestivo e o sistema nervoso central. Ainda que nos afastássemos do Tapajós, ele continuaria se espalhando por gerações, pois também contamina o leite materno. Uma dor que passa de mãe para filha. Foram detectados em amostras de cabelo níveis até quatro vezes maiores que os permitidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive em crianças pequenas. Na Aldeia Sawré Aboy, nove em cada dez pessoas avaliadas apresentaram níveis de mercúrio acima do considerado seguro.
O Tapajós tem quase dois mil quilômetros de comprimento. Nasce no Mato Grosso, da junção de dois outros grandes rios, o Juruena e o Teles Pires, e atravessa o Pará até desembocar no Amazonas. Em sua foz fica Santarém, a segunda maior cidade paraense. Portanto, o problema não é só nosso. E também não se resume ao Tapajós: o drama dos Yanomâmi é conhecido mundialmente. Em 2015, cansamos de esperar o governo cumprisse o seu dever e nós mesmos demarcamos, usando dados da Funai, os limites da Terra Indígena Sawré Muybu, onde foi realizada a pesquisa da Fiocruz e da WWR-Brasil. Para enfrentar o garimpo ilegal, precisamos de toda ajuda possível. Se o governo se finge de morto, a sociedade civil precisa se mostrar mais viva do que nunca.
#GarimpoIlegal #Desmatamento #Amazônia #PovosIndígenas #Mercúrio #Munduruku #Yanomâmi #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta
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Estudo analisa a contaminação por mercúrio entre o povo indígena munduruku
Pesquisa indica exposição crônica de indígenas Munduruku ao mercúrio na região da bacia do Tapajós
Riqueza que não se extrai
Estudo revela contaminação por mercúrio de 100% dos Munduruku do Rio Tapajós
novembro 2020 | Desenvolvimento Sustentável, Povos Tradicionais
Quando a natureza fala, os indígenas escutam. No fim de outubro de 2015, todos os anciões das aldeias Krenak ficaram doentes ao mesmo tempo. O acontecimento veio acompanhado da mudez de grilos e sapos, percebida pelos ouvidos mais atentos. “Sabíamos que aquele silêncio significava algo”, contou tempos depois a liderança e escritora Shirley Djukurnã krenak. Eram sinais claros, como relâmpagos antes da tempestade. Por volta de 15h30 de 5 de novembro daquele ano, o rompimento da barragem da Vale, em Mariana, originou uma onda de resíduos do tamanho do Pão de Açúcar, que matou 19 pessoas e afetou a vida de 500 mil cidadãos que viviam às margens do Rio Doce. O desastre teve um significado a mais para os Krenak. Este povo acredita que o crime ambiental fez o espírito daquelas águas ir para o alto da montanha. Para os Krenak, desde então, o Watu, o rio sagrado, está morto.
Um rio espiritualmente morto é uma ideia que não faz sentido para o pensamento ocidental. Em uma reunião com representantes de uma mineradora, Dejanira Krenak, liderança e matriarca do povo Krenak, perguntou: “De que forma você traz um morto à vida?”. Foi uma boa maneira de traduzir o dilema para quem não o compreendia. Por quatro dias, um tsunami de lama percorreu os 400 quilômetros entre os municípios de Mariana e Resplendor, onde vivem os Krenak. À medida que avançava, a onda diluía na água rejeitos que impediriam que a luz chegasse ao fundo do rio por 6 meses e causariam a morte de quase 30 mil peixes. Mas os impactos não pararam por ali. Para se ter uma ideia, só no primeiro ano após o rompimento, todas as 26 espécies de peixe sumiram do Rio Doce.
Assim como a pandemia impôs um novo normal a grande parte do planeta em 2020, o desastre de Mariana mudou a vida dos Krenak há cinco anos. Cerca de 140 famílias foram forçadas a se readaptar para sobreviver. Pais que aprenderam a nadar no Rio Doce, uma tradição de várias gerações, se viram forçados a ensinar seus filhos a mergulhar em caixas d’água sem nenhuma correnteza. Hoje, cada Krenak tem direito a 5 litros de água mineral por dia para beber. Prioridade entre as ações mitigatórias, o novo sistema de abastecimento ainda não está pronto. Diante de um quadro tão chocante, muitos morreram de depressão.
Até setembro de 2020, as empresas responsáveis pela barragem haviam pago mais de R$ 250 milhões em ações mitigatórias e compensatórias aos Krenak, aos Guarani e aos Tupiniquim, os 3 povos atingidos pelo desastre. O valor é pequeno diante do que foi perdido. “Não tem casa, não tem dinheiro ou qualquer coisa que pague o que fizeram com o rio”, afirmou em 2017 uma liderança Krenak sobre a situação. Dinheiro algum é capaz de devolver um espírito a um rio e os séculos de relação com o território não se contabilizam em cifras.
A história dos Krenak em Minas é antiga e bonita. Há registros do século XVIII da presença do povo na região. No passado, chegaram a ocupar uma extensão de mais de 800 quilômetros. Eles estão em Resplendor desde, pelo menos, 1910 – quando um espaço de 4 mil hectares na margem esquerda do Rio Doce foi reservado para eles. A demarcação definitiva só veio na década de 1980 e hoje a Terra Indígena conta com 7 aldeias que abrigam 540 pessoas. Antes do desastre de Mariana, os Krenak já sofriam com problemas como a desertificação do solo por conta da exploração excessiva de empresas da região. Com o rompimento da barragem, as dificuldades só aumentaram, mas não foram suficientes para enfraquecer o vínculo que existe entre o povo e a terra. Há mais de 15 anos, os Krenak pedem a incorporação de parte do Parque Estadual Sete Salões ao território. Mesmo com o crime de 2015, eles mantêm aceso o desejo de voltar às cavernas sagradas que existem neste local.
“Estamos muito tristes em ver a impunidade que reina hoje”, afirmou Geovani Krenak, liderança, em 2018 sobre o caso de Mariana. Dois anos depois, o cenário não mudou muito. Até hoje segue sem conclusão o processo no qual 4 empresas e 22 executivos foram denunciados como responsáveis pelo desastre. A denúncia foi feita pelo Ministério Público Federal em 2016.
Desde julho, tramita em Manchester, na Inglaterra, um novo processo com pedidos de indenizações a uma das mineradoras envolvidas no desastre. Em entrevista ao Estado de Minas, os advogados dos atingidos relataram que a ação é fruto direto da lentidão do sistema judiciário brasileiro em avaliar o caso de Mariana.
A demora em se fazer justiça é denunciada também em protestos realizados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Para marcar a data de 5 anos de injustiça na bacia do rio Doce, atingidos por barragens de Minas Gerais e do Espírito Santo organizaram atos que denunciaram a falta de reparação para a população afetada. O objetivo principal foi chamar a atenção da Justiça para as pessoas que perderam suas casas, os empregos, e sofrem com desabastecimento de água limpa, problemas de saúde e aumento da violência por conta do maior crime ambiental brasileiro.
O estrago foi feito em curto espaço de tempo. Foram quinze dias para a lama tóxica se mover da barragem de Fundão, em Minas Gerais, à foz do rio Doce, no Espírito Santo. Já a cura vai se dar a longo prazo: estima-se que deve levar mais de 20 anos para os rios e nascentes da região afetada pelo rompimento da barragem se recuperarem. É uma previsão desanimadora para muitos, mas que não deve assustar os Krenak, acostumados a grandes desafios ao longo de sua trajetória. Removidos de suas terras pelo Estado Brasileiro em 1957, eles voltaram a Resplendor dois anos depois, após uma caminhada que durou três meses. Pouco mais de quinze anos depois, a Funai determinou uma nova remoção em 1972, revertida por meio de uma nova caminhada, em 1980, que demorou 95 dias. Desta vez, o caminho pode ser mais longo e a caminhada, mais demorada. Mas o objetivo dos Krenak segue o mesmo: viver em harmonia com a natureza no lugar que consideram sagrado.
Leia mais:
BBC – Após dois anos, impacto ambiental do desastre em Mariana ainda não é totalmente conhecido (05/11/2020)
Lama faz índios Krenaks depender de água mineral 04/11/2020
Dom Total -‘De que forma você traz um morto à vida?’, diz indígena krenak sobre Rio Doce (30/10/2019)
Elástica – “Envenenam a Terra por não acreditar que ela é um organismo vital” (20/07/2020)
Época – ‘Lutamos contra a mineração há 200 anos’, diz indígena que vive às margens do Rio Doce’ (15/08/2019)
Bom Dia Brasil – Rio Doce, da nascente à foz (29/09/2017)
G1 – Após a lama, tribo Krenak deixou de fazer rituais e festas no Rio Doce (28/10/2016)
Istoé – Três anos após desastre de Mariana, indígenas Krenak pedem justiça (05/11/2018)
Fiocruz – Povo indígena Krenak segue lutando por reconhecimento e demarcação total de seu território tradicional (04/08/2018)
Ramboll – Relatório sobre proteção e recuperação da qualidade de vida dos povos indígenas (Setembro de 2020)
O Globo – Desastre ambiental em Mariana afeta cultura dos índios krenaks (31/10/2017)
Uma Gota no Oceano – Mariana: dois anos como um dia (07/11/2017)
outubro 2020 | Mudanças Climáticas
O ano de 2020 não cansa de se superar. Agora são tantos ciclones e furacões nascendo no Atlântico que a lista de nomes previstos no início do ano pelos cientistas acabou. Os meteorologistas passaram a identificá-los com o alfabeto grego. Por isso, o mais recente tem o nome Zeta. A tempestade que está assolando a costa da Luisiana (EUA) é a de número 27. Mas o que um furacão nos Estados Unidos teria a ver com a gente, aqui no Brasil?
Outro nome esquisito: oscilação multidecadal do Atlântico. Significa que a superfície do mar do Atlântico Norte está esquentando. E esse fenômeno é responsável tanto pela maior quantidade de furacões nos Estados Unidos quanto pela maior seca dos últimos sessenta anos no pantanal brasileiro.
É como se fosse um El Niño no Atlântico. Mas, enquanto o El Niño ocorre em períodos que variam de 2 a 7 anos no Pacífico, as oscilações do Atlântico acontecem a cada três ou quatro décadas. Cientistas da NASA (Agência Nacional da Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos) estão acompanhando de perto. O chefe do laboratório de biofísica da agência, Douglas Morton, explicou ao jornalista André Trigueiro: “Estamos no período mais quente no mar Atlântico. E pode durar mais uma década, mais duas décadas ou ir mais longe ainda, porque as temperaturas na superfície do mar estão crescendo pelo aquecimento global”. Como consequência, o Pantanal e o sul da Amazônia ficam mais secos.
“No sul da Amazônia, a floresta está transpirando menos água”, disse o cientista Carlos Nobre. “Durante os meses secos – principalmente julho, agosto e setembro – a temperatura no sul da Amazônia chega a ser três graus mais quente do que era nos anos 80. Então o ar que chega no Pantanal, vindo da Amazônia, chega mais quente.”
É dessa parte mais baixa da floresta que saem dois irmãos: o rio Xingu e o Tapajós. Eles correm lado a lado, do Mato Grosso até o coração do Pará, onde suas águas se unem ao rio Amazonas. E foi às margens desses rios que ouvimos lições tão importantes nos últimos dez anos.
À beira do Xingu, o antropólogo Eduardo Viveiro de Castro nos alertou lá atrás, em 2011:
“As obras que estão se fazendo aqui, as fazendas de gado que estão se abrindo na região de São Félix do Xingu, as fazendas de soja que estão envenenando o rio com agrotóxicos lá na cabeceira do Mato Grosso, isso é o passado. Os índios que estão aqui, os ribeirinhos que estão aqui, são o futuro. Eles são a garantia de que o país tenha um futuro. E um futuro diferente do resto do mundo. Nós, brasileiros, gostamos de nos sentir diferentes. E se a gente quer mesmo ser diferente, vamos fazer diferente. Vamos fazer diferente do que os americanos fizeram com o Mississipi, vamos fazer diferente do que os europeus fizeram com os rios e com as florestas de lá. Vamos tentar ser originais. Então a primeira coisa a fazer é tratar, de modo diferente do que eles trataram, da nossa natureza.”
E, à beira do Tapajós, o cacique Juarez Munduruku nos banhou com sua sabedoria ancestral em pleno 2020:
“Esse rio aqui se torna meu corpo. Por que eu quero dizer que o rio é meu corpo? Porque ele é o corpo de todo mundo. Por exemplo, esses igarapés, são as nossas veias. Os madeireiros estão destruindo as cabeceiras dos igarapés. Então o que está acontecendo? O rio está morrendo aos poucos, também. Os igarapés são os primeiros que secam. E eles que fortalecem o Tapajós. Daqui a uns tempos, daqui a uns cem anos, nós vamos brigar pela água.”
Como se não fosse suficiente manter um modelo de vida que agrava a crise climática, a ilicitude humana eleva ainda mais a régua. Este ano, foram mais de 194 mil focos de incêndio no Brasil, dos quais 20.926 queimaram o Pantanal. E, de acordo com o Ibama, mais de 90% dos incêndios na região foram ilegais. “Quem planta fogo colhe cinzas”, diz um brigadista à repórter Cláudia Gaigher, da Rede Globo. Escolhas individuais se desdobram em consequências vividas pelo todo. Até quando?
Aqueles que insistem em criar divisões têm dificuldade em ver que tudo está conectado. Os povos tradicionais aprenderam com a natureza que o planeta é um só, e que nós pertencemos à Mãe Terra, não o contrário. Para tratar da verdadeira riqueza da melhor forma é preciso parar e ouvir os que entenderam, lá atrás, que o cuidado dos rios é tão importante quanto o das artérias.
A mensagem está aí. Para recebê-la basta abrir os olhos, os ouvidos e o coração.
#MudançasClimáticas #MeioAmbiente #PovosTradicionais #Amazônia #Tapajós #Desmatamento
Leia mais
Eduardo Viveiros de Castro: Expedição Gota d’Água Xingu
Amazônia Sociedade Anônima (documentário)
Jornal Nacional: Pantanal, maior planície alagada do planeta, está sendo destruído como nunca se viu antes
Por falta de recursos humanos e materiais, fauna no Pantanal é destruída pelo fogo
WWF – O Bioma Pantanal
Clima Info: O que o clima seco no Pantanal e no sul da Amazônia tem a ver com a crise climática?
G1: Com 2.825 pontos de incêndio, Pantanal tem pior outubro da história
outubro 2020 | Povos Tradicionais
Bastou dar corda. O presidente nunca escondeu sua visão anacrônica em relação aos povos tradicionais e suas palavras têm servido de senha para quem cobiçava suas terras. Em setembro do ano passado, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) já previa o estouro da boiada: até aquele mês, 160 invasões a terras indígenas (TIs) tinham sido registradas – 49 a mais do que em todo o ano de 2018. Mas o relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil – Dados 2019”, que acaba de ser lançado pela instituição, surpreendeu até os mais pessimistas: foram 256 casos, 135% a mais que no ano anterior. Para se ter uma ideia, o desmatamento na Amazônia cresceu 85% no mesmo período, um número já assombroso. Além disso, houve 113 assassinatos, como o de Paulo Paulino Guajajara, que fazia parte do grupo de sentinelas voluntários Guardiões da Floresta. Ao que parece, a ideia era passar por cima, já que até uma espécie de “caveirão”, um trator blindado, chegou a ser usado contra indígenas no Mato Grosso do Sul.
Com os indígenas recolhidos em suas aldeias por causa do novo coronavírus, é de se esperar que os números de 2020 sejam ainda mais impressionantes – até porque há outros indícios. Já perdemos 26,5% do Pantanal para o fogo, os incêndios na Amazônia devem superar os do ano passado e no último sábado, o ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), disse que o governo ainda não teve tempo para cuidar do meio ambiente. “Nós sabemos exatamente o que fazer”, afirmou. Será que sabem mesmo? De concreto, até agora o governo cortou 4% do orçamento do Ibama para o ano que vem e gastou menos de 40% da verba de 2020 destinada à fiscalização e ao combate a desmatamento e aos incêndios. O órgão tinha 1.311 fiscais em 2010 e hoje são 694, praticamente a metade. Quando em campanha, o presidente prometeu que não demarcaria “nem mais um centímetro” de TIs. E vem cumprindo a promessa: desde que assumiu, nenhum processo de demarcação foi concluído. Inclusive 27 deles, que se encontravam em estágio avançado, estão sob risco.
O governo se escora no Parecer 001/2017, emitido pela Advocacia-Geral da União (AGU) durante o mandato do ex-presidente Michel Temer por pressão da bancada ruralista, para atrasar as ações. A medida trouxe novamente à baila a tese do “marco temporal”. Segundo esta, só teriam direito às suas terras os povos que as estivessem ocupando até o dia da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988), mesmo se tivessem sido arrancados delas à força. Quando foram largados à própria sorte pelo governo durante a pandemia, os indígenas recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu que sua reivindicação era justa. Agora eles novamente contam com a corte para que a Justiça seja feita novamente e que esta ameaça seja definitivamente afastada.
No fim do mês, o STF julgará uma ação envolvendo o povo Xokleng, em Santa Catarina. É um caso exemplar. Os Xokleng foram contactados em 1914. Eram cerca de 400 indivíduos, que viviam da caça e da coleta; cerca de 20 anos depois, tinham restado pouco mais de 100. Acuados pelos colonos que chegaram à região e obrigados a se tornarem agricultores, ainda viram boa parte das terras que lhes restaram serem inundadas pela construção de uma barragem, em 1992. O caso da demarcação de suas terras se arrasta desde 2003, mas agora foi reconhecido como de “repercussão geral”: sua decisão será válida para todos. O artigo 231 da Constituição assegura que o direito do indígena à terra é “originário”, ou seja, anterior à criação do Estado brasileiro. Logo, o “marco temporal”, que não é previsto em nenhuma linha da carta a qual devemos obediência, é inconstitucional.
Ela também previa que todas as TIs deveriam estar demarcadas até 25 anos depois de sua promulgação. O país está em dívida com os indígenas. O STF tem o privilégio de poder saldá-la. “Os índios reivindicam áreas que ainda têm significado para essa organização social específica. As demandas de marcação são concretas, específicas, delimitadas e bem localizadas. Ninguém está reivindicando a praia de Copabacana”, explica Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA). Até porque não sobrou nenhum Tamoio, povo que habitava originalmente a região, para reclamá-la. Além de a demarcação de TIs ser um assunto de interesse de todo brasileiro – pois são bens da União e as áreas de floresta mais preservadas da Amazônia – lembre-se: agora estão querendo mexer, de forma arbitrária, nos direitos dos indígenas. Os próximos podem ser os seus.
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#PovosIndígenas #Supremo #STF #MarcoTemporal #Amazônia #CadaGotaConta
agosto 2020 | Desenvolvimento Sustentável
Uma foto do ministro do Meio Ambiente sobrevoando uma área devastada por garimpeiros na Amazônia virou meme e viralizou: “Quando eu cheguei aqui era tudo mato”, diz a legenda bolada por algum gênio anônimo da internet. É apenas uma piada, evidentemente, porém baseada em histórias reais e uma síntese perfeita da política do governo para a área. Condenado pela Justiça de São Paulo por ter falsificado mapas para favorecer mineradoras quando era secretário de Meio Ambiente daquele estado, Ricardo Salles tem demonstrado compreensão quase maternal em relação ao garimpo ilegal. Esta condescendência tem sido vista como sinal verde para o crime – e a disparada do preço do ouro no mercado internacional, um incentivo a mais. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 72% do garimpo ilegal praticado na Amazônia, entre janeiro e abril de 2020, aconteceu em terras indígenas e unidades de conservação – ou seja, áreas teoricamente protegidas por lei pelo Estado. Hoje, estima-se que há quase o mesmo número de moradores e invasores na Terra Indígena Yanomâmi, cerca de 27 mil contra 25 mil.
A atividade está matando a floresta. Para extrair ouro da região, os garimpeiros usam mercúrio, que envenena solo e água. O metal é o terceiro poluente ambiental mais perigoso para a saúde humana – a ponto de ter sido banido dos termômetros caseiros. Ele pode levar à morte e deixar danos irreversíveis; ataca diretamente o sistema nervoso central, causando problemas cognitivos e motores, cegueira e doenças cardíacas. Um estudo recente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apresentou um resultado alarmante: das amostras de cabelo de 134 mulheres adultas e 144 crianças Yanomâmi analisadas, 56% apresentaram concentrações de mercúrio acima do limite aceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Foi encontrada uma concentração de 13,87 microgramas por grama (ppm) numa amostra de cabelo de uma criança de apenas 3 anos. É quase sete vezes mais do que admite a OMS (2,0 ppm) e mais do que o dobro do nível em que começam a se manifestar efeitos adversos à saúde (6,0 ppm). Curumins podem ser contaminados pelo leite materno ou mesmo quando ainda estão no útero.
Outra pesquisa recente, realizada em parceria por WWF-Brasil, Fiocruz, Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa) e Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé) apontou que 1/3 dos peixes de rios do Amapá estão contaminados por mercúrio. Entre os que apresentaram os índices mais altos estão os quatro mais consumidos pela população do estado: tucunaré, pirapucu, trairão e mandubé. No pirapucu, foram encontradas concentrações quatro vezes maiores do que admite a OMS. Os Munduruku já não podem mais pescar no Rio Tapajós, um dos maiores afluentes do Amazonas. Nos quatro primeiros meses deste ano, a área desmatada para o garimpo aumentou 13,44% dentro das terras indígenas em relação ao mesmo período de 2019. Em relação às unidades de conservação, a devastação foi 80,62% maior. Segundo o Artigo 231 da Constituição, é proibido garimpar em território indígena. Mesmo assim, Agência Nacional de Mineração (AMN) recebeu 3.481 requerimentos para a atividade. O governo enviou ao Congresso um projeto que regulamenta a mineração nessas áreas, o que fez o olho de muita gente crescer. Enquanto isso, o Ibama, órgão responsável por fiscalizar áreas de preservação, teve seu efetivo reduzido em 55% em 10 anos – 24% só no ano passado.
No ano passado, foram extraídas legalmente 70 toneladas de ouro no Brasil, enquanto outras 20 toneladas saíram pelo ladrão, segundo a Agência Nacional da Mineração (ANM). Isso dá mais ou menos R$ 3 bilhões. Mesmo as terras indígenas são bens da União; ou seja, além de prejudicarem a saúde dos povos originários e ajudarem a destruir a maior barreira natural contra o avanço das mudanças climáticas, esses criminosos estão roubando o seu dinheiro. Agravada pela pandemia, a crise econômica tende a ser boa para os amigos do alheio. Com a alta no preço do dólar, visto hoje como um investimento mais seguro, os negócios prosperaram a olhos vistos no município de Itaituba, no Pará, o principal polo de compra e venda ilegal do metal no país. Somente nos primeiros sete meses de 2020, a arrecadação já é quase metade da alcançada no ano passado. E exemplos como Serra Pelada mostram que esse dinheiro todo não vai parar no bolso do garimpeiro, que muitas vezes é tão vítima desse esquema criminoso quanto nós, mas de quem nunca botou os pés no mato.
Essa história não começou com este governo, é claro. O garimpo ilegal foi se chegando na região nos anos 1950, ganhou um belo empurrãozinho durante a ditadura nas décadas seguintes e continuou crescendo no período pós-redemocratização. Mas talvez nunca estivesse tão claro como hoje que se a Amazônia é um Eldorado não é por causa do ouro que supostamente se esconde sobre o seu subsolo e, sim, por preservar a maior reserva de água doce e a maior biodiversidade do planeta e o conhecimento milenar dos povos tradicionais. Essas riquezas são fundamentais para que a Humanidade marque mais um século de presença no planeta Terra.
#Amazônia #Mineração #MeioAmbiente #PovosIndígenas #Yanomamis #Garimpo #Mercúrio #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta
Saiba mais:
Alta no preço do ouro impulsiona garimpo ilegal na Amazônia
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Estudo aponta níveis elevados de mercúrio em crianças e mulheres indígenas
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