Pedra cantada

Pedra cantada

No Brasil, profeta não arruma emprego; tudo é previsível. O que aconteceu em Brumadinho há três anos era pedra cantada. Pouco depois do desastre, já se sabia que dois relatórios do corpo técnico da Vale, um de 2017 e outro de 2018, alertavam a direção da empresa sobre os riscos de rompimento da barragem 1 da Mina do Córrego do Feijão. Mesmo assim, nada foi feito para evitar a morte de 272 pessoas e o desaparecimento de seis. Pior: menos ainda fizeram depois para evitar novas calamidades. Minas Gerais está aí como prova. Continuam empurrando com a barriga pessoas para a morte.

Segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), ainda há no país 65 barragens como a de Brumadinho, que deveriam estar desativadas. Destas, 46 ficam em Minas. Jeferson Lucas de Godoy, operário de 29 anos, vive à sombra desta aflição. Da janela da sala, no município de Ouro Preto, vê uma dessas estruturas, classificada pela ANM como em situação de emergência declarada. “Vivo embaixo de uma bomba relógio. E se estourar, tenho dois bebês e uma criança para pegar e correr”, diz ele. Como não sentir o medo quase palpável de Jefferson?

Minas chegou a ter 374 municípios – 43,8% do total – em situação de emergência por causa das chuvas. Cerca de 13,2 milhões de pessoas vivem em áreas que foram atingidas por chuvas e inundações, ou 61,6% da população. Barragens – de mineradoras e hidrelétricas – das regiões mais afetadas correram o risco de romper e algumas, como a do Carioca, no Rio São João, no centro-oeste do estado, e a da Mina de Pau Branco, em Nova Lima, região metropolitana de Belo Horizonte, transbordaram. E só há 14 fiscais para vistoriar todas as 350 em funcionamento.

A empatia que sentimos pelos mineiros pode virar dor à flor da própria pele. Minas hoje é uma espécie de maquete do futuro do meio ambiente no Brasil. O país pode virar um campo minado, caso absurdos, como a lei que afrouxa o licenciamento ambiental seja aprovada, e a verba para a área continue a cair como árvores. Uma monocultura de Brumadinhos.

E olha que a situação atual já inspira muitos cuidados: mais de 8 milhões de brasileiros vivem em áreas de risco – quatro a cada 100, sendo que no Sudeste a proporção chega a 10%. Não à toa, a região detém o trágico título de maior desastre climático do Brasil, quando 918 pessoas morreram e 99 desapareceram, levadas pela chuva que castigou a Serra Fluminense (RJ), em 11 de janeiro de 2011.

Esta data, o 5 de novembro de 2015 (Mariana) e o 25 de janeiro de 2019, nunca deveriam ser esquecidos, para que jamais dias tão tristes se repetissem. Nossos problemas não começaram no atual governo, mas ele teve que encarar Brumadinho menos de um mês depois da posse. Era de se esperar que tivesse mais sensibilidade em relação a isso e honrasse a memória dos mortos pela lama tóxica da Vale. Nesse bingo azarado não é questão de sorte não acontecer algo, mas questão de tempo, caso nada seja feito. Cabe a nós juntar as vozes para que não nos tornemos as pedras cantadas da vez.

 

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A corrida do ouro

A corrida do ouro

Disseram “a Amazonia vale ouro” e alguns entenderam o recado de um jeito completamente errado. Pelo menos, é o que indica o relatório “legalidade da produção de ouro no Brasil”, produzido pela UFMG em parceria com o Ministério Público Federal (MPF). O documento aponta que 90% do mineral explorado ilegalmente no país entre 2019 e 2020 saiu da floresta, gerando um prejuízo socioambiental de US$ 1,7 bilhão. A Amazônia vale muito sim, mas de pé. Já o ouro que sai dela, em vez de lucro, só gera dor de cabeça. O problema é tão grande que o MPF tomou uma medida radical: pediu à Justiça a suspensão de todas as permissões para extração, comércio e exportação de ouro no Sudoeste do Pará. Há uma corrida em curso no coração da maior floresta tropical do planeta. De um lado, garimpeiros tentando enriquecer a qualquer custo. De outro, indígenas dispostos a preservar a natureza no local que lhes serve de casa.

Responda rápido: qual é o estado que mais produz ouro no país? Minas Gerais, é claro. Em segundo lugar, vem o Mato Grosso e, em terceiro, o Pará. Acontece que, de acordo com o levantamento, enquanto Minas e Mato Grosso mantiveram produção estável no período analisado, a mineração disparou nos últimos 2 anos no Pará. Lá, o volume produzido saltou de 9,7 toneladas em 2019 para 17,2 em 2020. Esta corrida do ouro não aconteceu sem alguns atropelos. No caso em questão, sem que riquezas tenham deixado a floresta passando longe controles do Estado. Só na Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, cerca de 9 toneladas de ouro foram extraídas de forma irregular entre 2019 e 2020. É o dobro do volume verificado na APA Reentrâncias Maranhenses, segunda colocada neste ranking. Porém, o principal aqui é o seguinte: a APA do Tapajós não fica numa região qualquer.

Noventa e nove por cento da área de 2 milhões de hectares da APA do Tapajós estão localizados nos municípios paraenses de Itaituba e Jacaracanga. Colada à APA, está a Terra Indígena (TI) Munduruku, com sua população de mais 6000 pessoas, sua pequena área de 2382 hectares e crescentes taxas de desmatamento desde 2013. Naquele ano, foram 77 hectares de floresta derrubada. Em 2019, 1824. Há mais de 4 milênios na região, os indígenas ultimamente andam assustados com as retroescavadeiras que destroem rios e igarapés à procura de ouro e vomitam toneladas de mercúrio e outros resíduos nos cursos d’água nos quais se banharam seus antepassados. A situação tem sido denunciada por meio de porta-vozes que veem este presente apagar o futuro – como Bheka Munduruku, de 17 anos. “Queremos convencer todo o mundo — inclusive os cabeças-duras — da importância de preservar a floresta e os seus rios”, afirmou ela em um artigo para Folha de São Paulo. Não se trata de arrogância adolescente, mas de um grito de alerta maduro e consciente. Esta caça ao tesouro não vai nos levar a nada. Ou melhor, até vai – mas a um lugar que não queremos chegar.

Como nada nunca é tão ruim que não possa piorar, o Governo Federal parece ter entrado nesta briga – só que do lado errado. Em fevereiro do ano passado, Bolsonaro enviou ao Congresso o Projeto de Lei 191, que pode facilitar a mineração em terras indígenas. O texto ainda não foi analisado por deputados e senadores, mas o estudo da UFMG e do MPF estima em US$ 5 bilhões o prejuízo caso a ideia do presidente se torne de lei. O valor leva em conta o impacto da medida nos chamados serviços ecossistêmicos, que consistem em chuvas, temperaturas amenas e outros favores que a natureza hoje nos presta de graça.

Em 05 de agosto de 2020, o então ministro do meio ambiente esteve em Jacareacanga. Em vez de criticar a destruição da floresta, se reuniu com garimpeiros que queriam a suspensão das operações do Ibama na região. Não satisfeito, Ricardo Salles ainda usou um avião da FAB para levar sete deles a uma nova reunião em Brasília no dia seguinte. Para os indígenas, a situação é um deus-nos-acuda. Em 25 de maio, a Polícia Federal realizou em Itaituba a Operação Mundurukânia 1, que teve como alvo os garimpeiros. Eles reagiram e puseram fogo na casa de Maria Leusa Munduruku. “Chegaram com combustível naquelas garrafas de dois litros de refrigerante, armados, atirando, no meio de criança”, lembrou depois a liderança indígena. Um mês após o episódio, a Câmara aprovou outro PL, o 490, que também pode facilitar o garimpo em TIs e depende agora da aprovação do Senado para entrar em vigor.

Pelas contas do MPF, cada grama de ouro que sai da Amazônia de forma ilegal gera um prejuízo de até R$ 3 mil. O cálculo considera o valor necessário para recuperar as áreas afetadas. Para o período entre 2019 e 2020, o custo com este tipo de atividade chegou a R$ 20 bilhões – contra R$ 8,7 bilhões gerados pela mineração legal. É uma conta que não fecha, mas que tem solução. O aumento da fiscalização, a atribuição de responsabilidade a quem compra e o cancelamento de autorizações para mineração em TIs são alguns dos caminhos apontados pelo estudo do MPF e da UFMG para isso. Resta saber quem cruzará a primeiro a reta de chegada: o bom senso ou a ganância. Fique à vontade para escolher em que torcida você prefere estar.

Foto: Marcos Amend / Greenpeace

 

#Amazônia #Mineração #Munduruku #Garimpo #Ouro #MeioAmbiente

 

Saiba mais:

Amazônia Real – “Estão enganando nosso povo”, diz a liderança Maria Leusa Munduruku

Câmara dos Deputados – PL 191/2020

Cimi – PL 490: veja como votaram deputados e partidos na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara

Cimi – Povos indígenas ocupam cúpula do Congresso Nacional em manifestação contra o PL 490

Folha – Garimpeiros ilegais fecham aeroporto durante visita de Salles a cidade do Pará

Folha – Ser Munduruku e Ser Amazônia (Bheka Munduruku)

ISA – Área de Proteção Ambiental do Tapajós

ISA – Terra Indígena Munduruku

G1 – MPF questiona FAB sobre voo que levou garimpeiros do PA para reunião com ministro Salles em Brasília

O Globo – Em dois anos, garimpo aumenta em 363% a degradação da Terra Indígena Munduruku

O Liberal – PF apura ataques de garimpeiros contra indígenas e agentes de segurança no Pará

Polícia Federal – Polícia Federal realiza operação para combater a prática de garimpos ilegais em terras indígenas no interior do Pará

Polícia Federal – Polícia Federal deflagra Operação Mundurukânia 2 para aprofundar investigações sobre ataques a agentes de segurança pública e lideranças indígenas

 

Quanto vale esta floresta?

Quanto vale esta floresta?

Amazônia e mineração ilegal são como álcool e direção: não combinam. O último exemplo vem de Uiramutã, a 290 quilômetros de Boa Vista, em Roraima. Pontos turísticos conhecidos pela água cor de esmeralda, as cachoeiras Sete Quedas e Urucá apareceram cheias de um líquido marrom em fotos divulgadas pela Folha de São Paulo esta semana. Motivo: a exploração irregular de minérios na região, que fica dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Indiferente a isso, o governador sancionou na segunda-feira uma lei que libera o garimpo nas terras do estado. Por trás da confusão, há uma pergunta que o Brasil ainda não respondeu: vale a pena pôr a floresta em risco em troca de dinheiro?

O incentivo à mineração na Amazônia é uma das obsessões de Bolsonaro mais difíceis de entender. O tema voltou à pauta no último dia 3, quando o presidente da república apresentou a liberação da atividade em terras indígenas como uma de suas prioridades ao deputado federal Arthur Lira, novo presidente do congresso. Para começo de conversa, 86% dos brasileiros são contra a exploração de minérios nestas áreas, segundo o Datafolha. Elaborado pelo Governo Federal para regulamentar a atividade, o projeto de lei 191/20 prevê a permissão para lavra garimpeira em terras indígenas – algo vetado pela Constituição.

Além disso, os próprios indígenas não estão muito interessados no assunto. “A nossa relação com a terra é totalmente diferente, é de preservação da terra e dos recursos naturais”, disse Luiz Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Por sua vez, as mineradoras também não querem explorar estes locais. “Se é complexo e moroso trabalhar numa área sem esse tipo de conflito, imagina dentro de uma área dessas”, explicou o empresário Luiz Maurício Azevedo, empresário e presidente da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM).

Sem o interesse dos indígenas e com as companhias fora do páreo, aventureiros que atuam na mineração sem compromisso com a natureza são os únicos beneficiados pela medida defendida por Bolsonaro.

Mas por que o filme da mineração anda tão queimado? É fácil entender. Você sabia que, para cada quilo de ouro produzido, 1,3 quilo de mercúrio é liberado no meio ambiente? A lista de problemas não para por aí. O cientista americano Philip Fearnside identificou um padrão nas regiões amazônicas que abrigam a atividade. Quando o minério acaba, os trabalhadores viram posseiros e o desmatamento dispara. Só entre 2005 e 2015, mais de 11 mil quilômetros quadrados de floresta foram abaixo por conta disso, segundo estudo publicado na Nature.

As complicações continuam. Lugar com gente precisa de estradas. Elas valorizam as terras às suas margens e são outro motor de destruição da mata. Uma análise do WWF apontou que 75% do desmatamento da Amazônia se deu perto de rodovias e, de acordo com estimativas publicadas na revista PNAS, 2,4 milhões de hectares de floresta poderiam vir abaixo se 12 mil quilômetros de vias previstos para região saíssem do papel.

Toda esta destruição ambiental gera consequências. As árvores mortas e cortadas viram combustível para incêndios. Só no ano passado, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais contou 103.161 casos na Amazônia – um aumento de 16% em relação a 2019. Com as mudanças climáticas, as secas estão mais frequentes, o que potencializa o fogo. A estação seca hoje já é quatro semanas maior do que era no sul e sudeste da Amazônia na década de 1980, segundo o cientista Carlos Nobre.

Este calor todo vai matando a vegetação e, aos poucos, transformando a floresta tropical em savana. Se isso acontecer, não teremos uma mera mudança na paisagem. Doenças hoje restritas à mata podem se tornar mais comuns. Aliás, cerca de 70% dos últimos surtos epidêmicos vividos pela humanidade começaram assim, de acordo com María Neira, diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial da Saúde. Para ela, preservar a floresta não é uma questão de ecologia, mas de saúde pública. “O planeta, nós o estamos destruindo, mas ele vai encontrar uma maneira de sobreviver; os humanos, não”, adverte.

Este processo pode ser freado? A boa notícia é que sim. E nós até sabemos o que fazer. Em um passado recente, medidas como o bloqueio de empréstimos de bancos públicos a empresas com multas pendentes em órgãos ambientais já surtiram efeito e ajudaram na preservação da floresta. Além disso, ideias como a bioeconomia podem ajudar o garimpeiro a trocar o papel de inimigo do meio ambiente por conta da falta de oportunidades pelo de amigo da natureza. Um hectare de soja rende, em média, R$ 604 por ano – contra R$ 12,4 mil de uma área do mesmo tamanho dedicada ao cultivo de espécies nativas, como o açaí e a castanha do pará. Detalhe: é dinheiro que vem sem que nenhuma árvore se vá.

Divulgada nesta semana, uma pesquisa do Ibope indicou que 77% dos brasileiros consideram preservar a meio ambiente é o mais importante, ainda que isso signifique menor crescimento econômico e geração de empregos. Nós estamos com a faca e o queijo na mão. Salvar a floresta é o interesse de maioria, o melhor para nosso futuro e, de quebra, o que rende mais dinheiro.

Em nome de que fazer o contrário?

#Amazônia #Mineração #Garimpo #MeioAmbiente #Economia #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

Saiba mais:

Folha – Incentivado pelo senador da cueca, garimpo ilegal emporcalha cachoeiras em terra indígena

Jornal Nacional – Governador de Roraima libera garimpo no estado e com uso de mercúrio

O eco – Mineração em Terras Indígenas, regularização fundiária e mais, entenda as prioridades de Bolsonaro para 2021

Folha – Maioria dos brasileiros rejeita abrir mineração em terras indígenas

Valor – Mineradoras descartam explorar áreas indígenas

National Geographic – Imagens aéreas mostram o impacto da mineração na Amazônia

Amazonia Real – O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 8 – Lavagem de dinheiro, exploração madeireira e mineração

O eco – Em 10 anos, mineração causou 9% de desmatamento na Amazônia

Nature – Mining drives extensive deforestation in the Brazilian Amazon

WWF – Maior parte do desmatamento da região está concentrado nas rodovias

Mongabay – Projetos de estradas na Amazônia podem desmatar 2,4 milhões de hectares nos próximos 20 anos

Inpe – Queimadas

Valor – “Savanização da Amazônia já está ocorrendo”, diz Nobre

El País – Diretora de Meio Ambiente da OMS: “70% dos últimos surtos epidêmicos começaram com o desmatamento”

Amazônia Real – O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 6 – Commodities e governança

Revista Globo Rural – Açaí, cacau e castanha são mais rentáveis que pecuária e soja na Amazônia, diz Carlos Nobre

Ibope/ITS – Percepção climática

Riqueza que não se extrai

Riqueza que não se extrai

Uma foto do ministro do Meio Ambiente sobrevoando uma área devastada por garimpeiros na Amazônia virou meme e viralizou: “Quando eu cheguei aqui era tudo mato”, diz a legenda bolada por algum gênio anônimo da internet. É apenas uma piada, evidentemente, porém baseada em histórias reais e uma síntese perfeita da política do governo para a área. Condenado pela Justiça de São Paulo por ter falsificado mapas para favorecer mineradoras quando era secretário de Meio Ambiente daquele estado, Ricardo Salles tem demonstrado compreensão quase maternal em relação ao garimpo ilegal. Esta condescendência tem sido vista como sinal verde para o crime – e a disparada do preço do ouro no mercado internacional, um incentivo a mais. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 72% do garimpo ilegal praticado na Amazônia, entre janeiro e abril de 2020, aconteceu em terras indígenas e unidades de conservação – ou seja, áreas teoricamente protegidas por lei pelo Estado. Hoje, estima-se que há quase o mesmo número de moradores e invasores na Terra Indígena Yanomâmi, cerca de 27 mil contra 25 mil.

A atividade está matando a floresta. Para extrair ouro da região, os garimpeiros usam mercúrio, que envenena solo e água. O metal é o terceiro poluente ambiental mais perigoso para a saúde humana – a ponto de ter sido banido dos termômetros caseiros. Ele pode levar à morte e deixar danos irreversíveis; ataca diretamente o sistema nervoso central, causando problemas cognitivos e motores, cegueira e doenças cardíacas. Um estudo recente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apresentou um resultado alarmante: das amostras de cabelo de 134 mulheres adultas e 144 crianças Yanomâmi analisadas, 56% apresentaram concentrações de mercúrio acima do limite aceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Foi encontrada uma concentração de 13,87 microgramas por grama (ppm) numa amostra de cabelo de uma criança de apenas 3 anos. É quase sete vezes mais do que admite a OMS (2,0 ppm) e mais do que o dobro do nível em que começam a se manifestar efeitos adversos à saúde (6,0 ppm). Curumins podem ser contaminados pelo leite materno ou mesmo quando ainda estão no útero.

Outra pesquisa recente, realizada em parceria por WWF-Brasil, Fiocruz, Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa) e Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé) apontou que 1/3 dos peixes de rios do Amapá estão contaminados por mercúrio. Entre os que apresentaram os índices mais altos estão os quatro mais consumidos pela população do estado: tucunaré, pirapucu, trairão e mandubé. No pirapucu, foram encontradas concentrações quatro vezes maiores do que admite a OMS. Os Munduruku já não podem mais pescar no Rio Tapajós, um dos maiores afluentes do Amazonas. Nos quatro primeiros meses deste ano, a área desmatada para o garimpo aumentou 13,44% dentro das terras indígenas em relação ao mesmo período de 2019. Em relação às unidades de conservação, a devastação foi 80,62% maior. Segundo o Artigo 231 da Constituição, é proibido garimpar em território indígena. Mesmo assim, Agência Nacional de Mineração (AMN) recebeu 3.481 requerimentos para a atividade. O governo enviou ao Congresso um projeto que regulamenta a mineração nessas áreas, o que fez o olho de muita gente crescer. Enquanto isso, o Ibama, órgão responsável por fiscalizar áreas de preservação, teve seu efetivo reduzido em 55% em 10 anos – 24% só no ano passado.

No ano passado, foram extraídas legalmente 70 toneladas de ouro no Brasil, enquanto outras 20 toneladas saíram pelo ladrão, segundo a Agência Nacional da Mineração (ANM). Isso dá mais ou menos R$ 3 bilhões. Mesmo as terras indígenas são bens da União; ou seja, além de prejudicarem a saúde dos povos originários e ajudarem a destruir a maior barreira natural contra o avanço das mudanças climáticas, esses criminosos estão roubando o seu dinheiro. Agravada pela pandemia, a crise econômica tende a ser boa para os amigos do alheio. Com a alta no preço do dólar, visto hoje como um investimento mais seguro, os negócios prosperaram a olhos vistos no município de Itaituba, no Pará, o principal polo de compra e venda ilegal do metal no país. Somente nos primeiros sete meses de 2020, a arrecadação já é quase metade da alcançada no ano passado. E exemplos como Serra Pelada mostram que esse dinheiro todo não vai parar no bolso do garimpeiro, que muitas vezes é tão vítima desse esquema criminoso quanto nós, mas de quem nunca botou os pés no mato.

Essa história não começou com este governo, é claro. O garimpo ilegal foi se chegando na região nos anos 1950, ganhou um belo empurrãozinho durante a ditadura nas décadas seguintes e continuou crescendo no período pós-redemocratização. Mas talvez nunca estivesse tão claro como hoje que se a Amazônia é um Eldorado não é por causa do ouro que supostamente se esconde sobre o seu subsolo e, sim, por preservar a maior reserva de água doce e a maior biodiversidade do planeta e o conhecimento milenar dos povos tradicionais. Essas riquezas são fundamentais para que a Humanidade marque mais um século de presença no planeta Terra.

#Amazônia #Mineração #MeioAmbiente #PovosIndígenas #Yanomamis #Garimpo #Mercúrio #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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Antes de chegada de Cabral, calcula-se que até 4 milhões de indígenas viviam no Brasil. Em 2010, quando se realizou o último o censo do IBGE, eram pouco mais de 800 mil. Essa população não foi drasticamente reduzida somente pela espada e pela violência da escravidão, mas também por doenças que chegaram aqui a bordo das caravelas dos invasores. Os povos originários não tinham defesa contra a gripe, o sarampo, a coqueluche e a tuberculose. São José de Anchieta conta que 30 mil tupis morreram na região do Recôncavo Baiano em poucos meses, vitimados pela epidemia de varíola que durou de 1562 a 1565. Diferentemente dos europeus, eles ainda não tinham desenvolvido anticorpos de qualquer espécie contra o Orthopoxvírus variolae. E ainda existem povos indígenas que, por escolha própria, nunca tiveram contato com o invasor.

Hoje, a Humanidade enfrenta o maior desafio do novo século, a pandemia de Covid-19, causada por uma nova espécie de coronavírus. Fomos apresentados a essa família viral entre 2002 e 2003, quando um de seus irmãos mais velhos infectou mais de 8 mil pessoas em uma dúzia de países das Américas do Norte e do Sul, da Europa e da Ásia, deixando aproximadamente 800 mortos. A doença ficou conhecida por Sars, sigla inglesa de “Severe Acute Respiratory Syndrome”. O caçulinha é bem mais letal. Só na Itália, o Covid-19 já matou mais de 6 mil e, mal chegou ao Brasil, já tinha causado 34 mortes e infectado 1.891 pessoas até o último dia 24. O ministro Luiz Henrique Mandetta prevê um colapso de nosso sistema de saúde já para abril.

Se para quem vive nos centros urbanos a situação é crítica, ela é dramática para os povos da floresta. O sucateamento da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde e responsável pelo atendimento de mais de 765 mil indígenas no país, vem sendo denunciado desde o ano passado por entidades indigenistas. No caso dos grupos isolados, é especialmente dramática. Em discurso que fez na ONU no início de março, Davi Kopenawa denunciava: “Os garimpeiros, sem dúvida, vão matar os índios isolados na área Yanomani. Estou muito preocupado. Talvez em breve estarão exterminados”.

Segundo um balanço do Instituto Socioambiental (ISA), existem 86 territórios com presença de grupos sem contato – este relatório aponta que o desmatamento nessas áreas cresceu 113%, sendo que no total de todas as terras indígenas o aumento foi de 80%. Os invasores podem levar o Covid-19 a eles. Mas outro perigo os ronda.

Nas últimas décadas a Funai vinha adotando uma política de proteção dessas áreas, dificultando qualquer aproximação com essas comunidades. Até outros povos indígenas evitam o contato. Mas em fevereiro, o governo indicou para a chefia da Coordenação-geral de Índios Isolados o ex-missionário evangélico Ricardo Lopes Dias. A nomeação foi contestada pelo Ministério Público Federal e desagradou organizações indigenistas, que temiam uma mudança na política adotada pelo Governo desde o fim da ditadura: o contato com isolados só deve acontecer quando a iniciativa parte deles. Mesmo assim, Ricardo segue no cargo.

Já no início do ano a Ethnos360, uma organização evangélica, planejava excursões à Amazônia para converter indígenas isolados. Da última vez que isso havia acontecido, quando a entidade se chamava Missão Novas Tribos, estima-se que 45 índios Zo’é tenham morrido entre 1987 e 1991 de malária e influenza. A população, que caiu para 133 em 1991, está se recuperando e hoje é estimada em 250. Porém, eles continuam vulneráveis a doenças e à invasão de suas terras por pecuaristas e produtores de soja.

Para piorar, uma portaria da Funai, publicada em 19 de março, o admitia “caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado”. O texto ainda conferia às 39 coordenações regionais da entidade decidir sobre este contato, quando anteriormente esta decisão cabia à Coordenação-geral de Índios Isolados. Diante dos protestos, o governo recuou e emitiu uma nova portaria no dia 23, alterando a anterior. O Artigo 4 diz: “Ficam suspensas todas as atividades que impliquem o contato com comunidades indígenas isoladas. O comando do caput pode ser excepcionado caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado, conforme análise feita pela Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai”.

Entretanto, a alteração também causou desconfiança. “Nós comparamos essa alteração às que foram feitas à PEC 215 (que transfere do Executivo para o Legislativo a atribuição de demarcar terras indígenas), que mudavam uma ou outra palavra, mas a tornaram até pior. A mudança na portaria deixa brechas para que haja contato com povos isolados”, diz Angela Kaxuyana, coordenadora tesoureira da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Além disso o termo ‘comunidades isoladas’ não está de acordo com a compreensão que temos do conceito de povos indígenas de isolamento voluntário e de recente contato ou de contato inicial. Isso é um retrocesso que nos preocupa muito, pois sabemos que a Funai está tomada por evangélicos fundamentalistas que querem fazer contato forçado e hoje vivemos sob a ameaça do coronavírus”, continua.

Vale lembrar que a Funai, que é vinculada ao Ministério da Justiça, foi criada em 5 de dezembro de 1967, pela Lei 5.371, para ser a coordenadora e executora da política indigenista do governo federal. Sua missão institucional é proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil. “O Estado deveria estar preocupado com a proteção desses territórios, expulsando garimpeiros e madeireiros que estão agindo dentro deles. Nós não precisamos fazer contato para proteger esses povos. Se o governo quer protegê-los, e este é o seu dever, precisa garantir que invasores mantenham distância deles”, finaliza Angela.

#PovosTradicionais #PovosIndígenas #Funai #Amazônia #Mireração #Garimpo #Coronavírus #COVID19

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