Pedra cantada

janeiro 2022

No Brasil, profeta não arruma emprego; tudo é previsível. O que aconteceu em Brumadinho há três anos era pedra cantada. Pouco depois do desastre, já se sabia que dois relatórios do corpo técnico da Vale, um de 2017 e outro de 2018, alertavam a direção da empresa sobre os riscos de rompimento da barragem 1 da Mina do Córrego do Feijão. Mesmo assim, nada foi feito para evitar a morte de 272 pessoas e o desaparecimento de seis. Pior: menos ainda fizeram depois para evitar novas calamidades. Minas Gerais está aí como prova. Continuam empurrando com a barriga pessoas para a morte.

Segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), ainda há no país 65 barragens como a de Brumadinho, que deveriam estar desativadas. Destas, 46 ficam em Minas. Jeferson Lucas de Godoy, operário de 29 anos, vive à sombra desta aflição. Da janela da sala, no município de Ouro Preto, vê uma dessas estruturas, classificada pela ANM como em situação de emergência declarada. “Vivo embaixo de uma bomba relógio. E se estourar, tenho dois bebês e uma criança para pegar e correr”, diz ele. Como não sentir o medo quase palpável de Jefferson?

Minas chegou a ter 374 municípios – 43,8% do total – em situação de emergência por causa das chuvas. Cerca de 13,2 milhões de pessoas vivem em áreas que foram atingidas por chuvas e inundações, ou 61,6% da população. Barragens – de mineradoras e hidrelétricas – das regiões mais afetadas correram o risco de romper e algumas, como a do Carioca, no Rio São João, no centro-oeste do estado, e a da Mina de Pau Branco, em Nova Lima, região metropolitana de Belo Horizonte, transbordaram. E só há 14 fiscais para vistoriar todas as 350 em funcionamento.

A empatia que sentimos pelos mineiros pode virar dor à flor da própria pele. Minas hoje é uma espécie de maquete do futuro do meio ambiente no Brasil. O país pode virar um campo minado, caso absurdos, como a lei que afrouxa o licenciamento ambiental seja aprovada, e a verba para a área continue a cair como árvores. Uma monocultura de Brumadinhos.

E olha que a situação atual já inspira muitos cuidados: mais de 8 milhões de brasileiros vivem em áreas de risco – quatro a cada 100, sendo que no Sudeste a proporção chega a 10%. Não à toa, a região detém o trágico título de maior desastre climático do Brasil, quando 918 pessoas morreram e 99 desapareceram, levadas pela chuva que castigou a Serra Fluminense (RJ), em 11 de janeiro de 2011.

Esta data, o 5 de novembro de 2015 (Mariana) e o 25 de janeiro de 2019, nunca deveriam ser esquecidos, para que jamais dias tão tristes se repetissem. Nossos problemas não começaram no atual governo, mas ele teve que encarar Brumadinho menos de um mês depois da posse. Era de se esperar que tivesse mais sensibilidade em relação a isso e honrasse a memória dos mortos pela lama tóxica da Vale. Nesse bingo azarado não é questão de sorte não acontecer algo, mas questão de tempo, caso nada seja feito. Cabe a nós juntar as vozes para que não nos tornemos as pedras cantadas da vez.

 

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