Há 10 anos um grupo de artistas, comunicadores, ativistas e cientistas convidou a população a desafinar o coro dos contentes e botar a boca no trombone por causa de Belo Monte. Nascia ali o Movimento Gota D’Água, que daria origem à Uma Gota no Oceano. Nossas vozes se juntaram às dos povos do Xingu, que há décadas lutavam para impedir a construção da usina, e o resultado desse clamor foram 2,5 milhões de assinaturas, arrecadadas em menos de dois meses. Já ouviram o som da pororoca? O ruído que vem de longe, levando tudo pelo caminho, e desagua num estrondo. Foi assim.
O resto é História, e ela provou que estávamos certos. A hidrelétrica custou mais do que o dobro do orçamento previsto e produz menos da metade da eletricidade apregoada; a crise energética que ela impediria de acontecer chegou com todo gás; e o Rio Xingu, um dos mais importantes da Bacia Amazônica, respira por aparelhos. Belo Monte só não parou de gerar denúncias de corrupção e problemas para o meio ambiente e para os moradores locais – o vídeo que acompanha este texto traz informações atualizadas. É um elefante branco no meio da maior floresta tropical do mundo.
Mas o que fazer com o monstrengo? “Sou partidário da ideia de transformar Belo Monte no Parque Nacional das Ruínas de Belo Monte, porque ela não tem absolutamente nenhuma utilidade”, sugeriu Tasso Azevedo, um dos criadores do projeto MapBiomas, no encontro que marcou os 10 anos do Movimento Gota D’Água. Foi uma oportunidade para membros fundadores e novos amigos da causa cruzarem visões, olhos nos olhos.
Continuamos de olho no Xingu, porque uma década se passou e a lição ainda não foi aprendida – basta ver o que está acontecendo em Minas Gerais, que não é obra apenas da Mãe Natureza. Por isso, os pecados de Belo Monte devem ser sempre lembrados por nós. Cada gota conta; e um monte de gotas gritando juntas vira pororoca.
14 \14\America/Sao_Paulo janeiro \14\America/Sao_Paulo 2021 | Povos Tradicionais
Há mais de uma década a gente vem desperdiçando energia para resolver os problemas gerados por Belo Monte. Em 2021 eles chegaram cedo: logo no dia 5, o Ibama foi obrigado a tomar mais uma providência para tentar reduzir impactos socioambientais no Rio Xingu. A medida, um ajuste na vazão de água liberada de sua barragem, vai custar caro para todos nós: segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a usina pode deixar de gerar até 21,18 mil MW entre janeiro e julho, o bastante para abastecer as regiões Sudeste e Centro-Oeste durante 15 dias. Para suprir essa demanda, a ONS seria forçada a acionar termelétricas que, além de mais poluentes, são ainda mais dispendiosas. O preço do MW/h de eletricidade produzido no país poderia aumentar em R$ 40 em seis meses, o que se refletiria na sua conta de luz – hoje, ele é estimado em aproximadamente R$ 187. Você pode morar bem longe do Xingu, mas vai sentir o baque assim mesmo.
O episódio deixa ainda mais evidentes as falhas no projeto da hidrelétrica, apontados ainda no papel por cientistas, organizações sociais e povos tradicionais. Esses alertas nos levaram a criar, há 10 anos, o Movimento Gota D’Água, que deu origem a Uma Gota No Oceano. Belo Monte é um projeto gestado na ditadura que veio à luz de parto forçado em pleno período democrático. Queríamos ser ouvidos, mas fomos atacados por governo e oposição na época. O tempo foi senhor da razão das ponderações daqueles que eram contrários à construção. Nenhum de nós, porém, tem o dom da profecia: tudo foi baseado na ciência, na sabedoria ancestral – daqueles que, como hoje se sabe, cultivaram a Amazônia – e na experiência de vida dos que fazem da floresta e dos rios a sua casa.
A hidrelétrica foi inaugurada em novembro de 2019. Hoje, Altamira, a cidade mais próxima, é a mais violenta do país, e o seu crescimento desordenado fez do Xingu um esgoto a céu aberto nas suas redondezas; muita gente que perdeu a casa ainda não foi devidamente indenizada; o comércio ilegal de madeira e as invasões de áreas protegidas dispararam; e o modo de vida dos indígenas da região foi comprometido de forma desumana – fala-se, inclusive, em etnocídio. Recentemente, o Ministério Público Federal (MPF) chamou a atenção para “evidências científicas de que um ‘ecocídio’ fulminará um dos ecossistemas da Amazônia de maior biodiversidade”.
“Belo Monte trouxe para a juventude, os crimes e as drogas, nada de projetos sociais”, diz Antônia Melo, coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre. Os peixes, alimento essencial e fonte de renda da população local, sumiram assim que começaram as obras. “Esse barramento aí acabou, isso ficou um lago. As piracemas, um igarapé, uma grota, que é o lugar onde os peixes desovam, acabaram. As ilhas, não se veem mais”, conta o ribeirinho Dario Batista de Almeida, o Seu Pivela.
Em nome de quê? A usina nunca entregou o que prometeram. A capacidade nominal de geração de energia da hidrelétrica é de 11.233 MW por mês, o suficiente para atender a 60 milhões de pessoas; mas só 4.571 MW chegam na tomada – na casa de Seu Pivela não chegou nenhum ainda. O orçamento inicial da obra era de R$16 bilhões, mas calcula-se que R$ 40 bilhões saíram pelo ladrão.
O enguiço da vez tem a ver com um troço chamado “hidrograma de consenso”. É este dispositivo que determina a quantidade de água a ser liberada pela barragem da usina e foi a principal proposta apresentada pela concessionária Norte Energia para amenizar os efeitos provocados pela diminuição do volume de água na Volta Grande do Xingu. Acontece que “de consenso” esse hidrograma só tem o nome: foi arbitrado pela própria companhia, quando a obra foi licenciada pelo governo em 2009, mesmo debaixo de protestos do Ibama na época. O órgão agora quer que sejam adotadas novas normas, baseadas nos impactos já causados no rio. Um “hidrograma ecológico”, que privilegie o meio ambiente e o modo de vida dos moradores da região.
Ainda assim, Belo Monte continuará sendo um elefante branco. Deveria ser visto por todos como um monumento à incompetência, à arrogância, à inconsequência e ao autoritarismo, para que erro igual não se repita jamais. O governo atual aposta no mesmo modelo desenvolvimentista anacrônico, que inevitavelmente vira um manancial de corrupção. Só que com uma diferença importante: o presidente não faz a menor questão de esconder seu pouco apreço pela democracia. Isso pode ser uma vantagem na hora de juntar forças nos próximos 10 anos de luta que dificilmente deixaremos de ter pela frente.
9 \09\America/Sao_Paulo março \09\America/Sao_Paulo 2020 | Mudanças Climáticas
Já parou para pensar que quem se manifesta contra a democracia está se manifestando contra o direito de se manifestar?
Que quem admite a tortura admite ser torturado?
Que ninguém é imune à injustiça ou à prova de bala perdida?
A democracia existe para defender as minorias, não para fazer prevalecer a vontade da maioria – até porque, se a gente parar para pensar, vai chegar à conclusão de que todo mundo pertence a uma minoria. Hoje cassam o direito de alguém que você discorda; amanhã podem cassar o seu. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi criada, principalmente, para defender o cidadão dos desmandos do Estado. Um dos direitos assegurados por ela é o direito à segurança. Você está disposto a abrir mão deste direito também?
Democracia também pressupõe diversidade de opiniões e de fontes de informação. Regimes totalitários sempre impuseram sua própria versão dos fatos: os nazistas tinham o “Völkischer Beobachter” e os mandachuvas da União Soviética, o “Pravda”. Vamos nos tornar reféns voluntários das redes sociais oficiais das autoridades e de seus aplicativos de mensagens?
Sem democracia também não há defesa do meio ambiente e dos direitos humanos. Que mundo deixaremos para nossos filhos e netos? Em nome de que abrir mão do direito de lutar pelo que acreditamos ser o certo? Somos todos gotas no oceano. Não só fazemos parte do mundo em que vivemos, como também ajudamos a construí-lo. Quando decidimos nos empenhar na luta contra a construção da Usina de Belo Monte, pensamos não só no impacto que traria às populações locais, mas à floresta como um todo, ao nosso país e mesmo ao planeta. Quando defendemos o direito dos povos da floresta a preservá-la, estamos ajudando a preservar nossas próprias vidas. Defender a democracia é defender a nossa sobrevivência.
Voltamos às nossas raízes: a bacia dorio Xingu. O evento “Amazônia: Centro do Mundo” aconteceu em Altamira (PA), nos dias 17, 18 e 19 de novembro. Esse encontro histórico que reuniu líderes indígenas, quilombolas e ribeirinhos, ativistas climáticos internacionais, cientistas do clima e da Terra e alguns dos melhores pensadores do Brasil. Ali, Uma Gota no Oceano participou deconversas sobre a crise climática, as grandes obras de infraestrutura, as queimadas ilegais e o avanço do desmatamento. Demos continuidade, assim, à missão de levar informação consistente, independente e atraente para que cada pessoa possa exercer sua cidadania.
Ouvimos atentamente as palavras de sabedoria do líder caiapó RaoniMetuktire e da fundadora do movimento Xingu Vivo, Antônia Melo. Os relatos confirmam o que já avisávamos em 2001: a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte impactou a vida humana e a natureza da região. Segundo a própria Norte Energia, “3.850 famílias foram reassentadas para a implementação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte”. Os ribeirinhos foram tirados de suas casas e transferidos para reassentamentos, novos bairros periféricos em Altamira, onde há altos índices de violência e pobreza.
Apesar dos desafios, nos animamos em conhecer novos amigos da causa. Jovens ativistas dos movimentos europeus Fridays for Future e ExtinctionRebelion estavam lá para contar sobre como mobilizam a juventude do outro lado do oceano. Mas o principal foco da viagem deles não era falar, e sim ouvir: eles foram até a Amazônia para conhecer a realidade dos povos da floresta e se encantaram ao conversar com Raoni. Foi a união perfeita entre a força da juventude e a sabedoria ancestral, uma combinação que com certeza nos leva em direção a um mundo melhor.
Chegamos a Altamira em ótima companhia, juntinho com a Fafá de Belém. E fomos recebidas pela Antônia Melo, fundadora do movimento Xingu Vivo. (Da esquerda para a direita: A Fundadora de Uma Gota no Oceano, Maria Paula Fernandes; a cantora Fafá de Belém; a fundadora do movimento Xingu Vivo, Antônia Melo; e a repórter de Uma Gota no Oceano, Helena Borges)
À beira do igarapé, ouvimos as palavras de sabedoria das lideranças caiapó.
(Da esquerda para a direita: Raoni Metuktire, liderança caiapó; Maria Paula Fernandes, fundadora de Uma Gota no Oceano; Helena Borges, repórter de Uma Gota no Oceano; e cacique Megaron Txucarramãe, liderança caiapó)
Liderança Bira, do povo Gavião, dá entrevista contando sobre a importância do encontro.
Elena Araújo, do movimento Xingu Vivo e representante do movimento negro, se reúne com líderes religiosas à beira do Xingu após ato inter-religioso.
Raoni Metuktire e Megaron Txucarramãe, lideranças caiapó, se reúnem com jovens do movimento Fridays For Future da Bélgica e do Reino Unido.
Bordado feito por mulheres ribeirinhas reúne as denúncias dos impactos de Belo Monte na vida de quem mora perto do rio: “merecemos uma moradia digna”.
Líder caiapó Raoni Metuktire fala no palco da noite de abertura do evento “Amazônia: Centro do Mundo”, em Altamira (PA).
Participamos da gravação de entrevista do líder caiapó Raoni Metuktire.
Líderes caiapó Raoni Metuktire e Megaron Txucarramãe durante reunião em Altamira (PA)
Fundadora de Uma Gota no Oceano, Maria Paula Fernandes acompanha as gravações com as lideranças caiapó Raoni Metuktire e Megaron Txucarramãe.
Líder caiapó Raoni Metuktire participa da mesa de abertura do evento “Amazônia: Centro do Mundo”.
A fundadora de Uma Gota No Oceano, Maria Paula Fernandes, Juma Xipaia e Bira, do povo Gavião