Riqueza que não se extrai

Riqueza que não se extrai

Uma foto do ministro do Meio Ambiente sobrevoando uma área devastada por garimpeiros na Amazônia virou meme e viralizou: “Quando eu cheguei aqui era tudo mato”, diz a legenda bolada por algum gênio anônimo da internet. É apenas uma piada, evidentemente, porém baseada em histórias reais e uma síntese perfeita da política do governo para a área. Condenado pela Justiça de São Paulo por ter falsificado mapas para favorecer mineradoras quando era secretário de Meio Ambiente daquele estado, Ricardo Salles tem demonstrado compreensão quase maternal em relação ao garimpo ilegal. Esta condescendência tem sido vista como sinal verde para o crime – e a disparada do preço do ouro no mercado internacional, um incentivo a mais. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 72% do garimpo ilegal praticado na Amazônia, entre janeiro e abril de 2020, aconteceu em terras indígenas e unidades de conservação – ou seja, áreas teoricamente protegidas por lei pelo Estado. Hoje, estima-se que há quase o mesmo número de moradores e invasores na Terra Indígena Yanomâmi, cerca de 27 mil contra 25 mil.

A atividade está matando a floresta. Para extrair ouro da região, os garimpeiros usam mercúrio, que envenena solo e água. O metal é o terceiro poluente ambiental mais perigoso para a saúde humana – a ponto de ter sido banido dos termômetros caseiros. Ele pode levar à morte e deixar danos irreversíveis; ataca diretamente o sistema nervoso central, causando problemas cognitivos e motores, cegueira e doenças cardíacas. Um estudo recente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apresentou um resultado alarmante: das amostras de cabelo de 134 mulheres adultas e 144 crianças Yanomâmi analisadas, 56% apresentaram concentrações de mercúrio acima do limite aceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Foi encontrada uma concentração de 13,87 microgramas por grama (ppm) numa amostra de cabelo de uma criança de apenas 3 anos. É quase sete vezes mais do que admite a OMS (2,0 ppm) e mais do que o dobro do nível em que começam a se manifestar efeitos adversos à saúde (6,0 ppm). Curumins podem ser contaminados pelo leite materno ou mesmo quando ainda estão no útero.

Outra pesquisa recente, realizada em parceria por WWF-Brasil, Fiocruz, Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa) e Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé) apontou que 1/3 dos peixes de rios do Amapá estão contaminados por mercúrio. Entre os que apresentaram os índices mais altos estão os quatro mais consumidos pela população do estado: tucunaré, pirapucu, trairão e mandubé. No pirapucu, foram encontradas concentrações quatro vezes maiores do que admite a OMS. Os Munduruku já não podem mais pescar no Rio Tapajós, um dos maiores afluentes do Amazonas. Nos quatro primeiros meses deste ano, a área desmatada para o garimpo aumentou 13,44% dentro das terras indígenas em relação ao mesmo período de 2019. Em relação às unidades de conservação, a devastação foi 80,62% maior. Segundo o Artigo 231 da Constituição, é proibido garimpar em território indígena. Mesmo assim, Agência Nacional de Mineração (AMN) recebeu 3.481 requerimentos para a atividade. O governo enviou ao Congresso um projeto que regulamenta a mineração nessas áreas, o que fez o olho de muita gente crescer. Enquanto isso, o Ibama, órgão responsável por fiscalizar áreas de preservação, teve seu efetivo reduzido em 55% em 10 anos – 24% só no ano passado.

No ano passado, foram extraídas legalmente 70 toneladas de ouro no Brasil, enquanto outras 20 toneladas saíram pelo ladrão, segundo a Agência Nacional da Mineração (ANM). Isso dá mais ou menos R$ 3 bilhões. Mesmo as terras indígenas são bens da União; ou seja, além de prejudicarem a saúde dos povos originários e ajudarem a destruir a maior barreira natural contra o avanço das mudanças climáticas, esses criminosos estão roubando o seu dinheiro. Agravada pela pandemia, a crise econômica tende a ser boa para os amigos do alheio. Com a alta no preço do dólar, visto hoje como um investimento mais seguro, os negócios prosperaram a olhos vistos no município de Itaituba, no Pará, o principal polo de compra e venda ilegal do metal no país. Somente nos primeiros sete meses de 2020, a arrecadação já é quase metade da alcançada no ano passado. E exemplos como Serra Pelada mostram que esse dinheiro todo não vai parar no bolso do garimpeiro, que muitas vezes é tão vítima desse esquema criminoso quanto nós, mas de quem nunca botou os pés no mato.

Essa história não começou com este governo, é claro. O garimpo ilegal foi se chegando na região nos anos 1950, ganhou um belo empurrãozinho durante a ditadura nas décadas seguintes e continuou crescendo no período pós-redemocratização. Mas talvez nunca estivesse tão claro como hoje que se a Amazônia é um Eldorado não é por causa do ouro que supostamente se esconde sobre o seu subsolo e, sim, por preservar a maior reserva de água doce e a maior biodiversidade do planeta e o conhecimento milenar dos povos tradicionais. Essas riquezas são fundamentais para que a Humanidade marque mais um século de presença no planeta Terra.

#Amazônia #Mineração #MeioAmbiente #PovosIndígenas #Yanomamis #Garimpo #Mercúrio #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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#TamuAtéAki

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Liberdade é ter autonomia para dizer sim ou não. Os Munduruku deram o exemplo máximo dessa autonomia em 2016, quando o governo federal anunciou a intenção de construir a hidrelétrica São Luiz, no rio Tapajós. A represa faria o rio engolir a Terra Indígena Sawré Muybu, no Pará, mas os Munduruku exerceram a liberdade de dizer “não”. Para isso, criaram um protocolo de consulta, de forma que todos pudessem se informar devidamente sobre o projeto e dar a palavra final em sua própria língua. Como resultado, o Ibama e o Ministério Público Federal derrubaram a licença da obra e a construção foi cancelada. Foi uma vitória histórica para os povos indígenas, motivando muitos a exigirem que suas vozes também fossem respeitadas. Hoje o Ministério Público lista 16 protocolos do tipo, e há outras dezenas em construção. 

Este ano os Munduruku se somaram a outros 44 povos indígenas, em janeiro, para assinar o Manifesto do Piaraçu, onde juntos voltaram a defender sua autonomia: “exigimos que seja respeitado nosso direito à consulta livre, prévia e informada toda vez que sejam previstos projetos e decisões que possam nos impactar e ameaçar nossos territórios e modos de vida”. 

No entanto, vinte dias depois da assinatura do Manifesto do Piaraçu, no dia 6 de fevereiro, o governo federal apresentou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 191. O texto prevê que a construção de hidrelétricas, a exploração de minério, a extração de petróleo e gás e o garimpo em terras indígenas podem seguir para aprovação mesmo “com manifestação contrária das comunidades indígenas afetadas”. 

Em outras palavras, se esse texto estivesse em vigor em 2016 a Terra Indígena Sawré Muybu estaria submersa. 

Em nome de que se tira a autonomia de um povo? 

O PL 191 tira a palavra final dos indígenas e passa para o Congresso Nacional. O Congresso é composto por 81 senadores e 513 deputados federais. São 594 pessoas. Apenas uma é indígena. A bancada ruralista tem 257 membros. Mais discreta, a bancada da lama – composta por deputados eleitos com apoio financeiro de mineradoras – tem 13 representantes. 

“As leis existem para serem cumpridas, e não modificadas para atender aos interesses de alguns”, é o que afirmávamos em nosso vídeo-manifesto de 2014 e continuamos a dizer hoje. Esse é o tom da nota divulgada pela câmara temática de populações indígenas e comunidades tradicionais do Ministério Público Federal: “Interesses econômicos sobre as terras públicas e seus recursos que constituem patrimônio da União, no caso das Terras Indígenas com usufruto exclusivo dos povos indígenas, devem observar o estrito limite da lei. 

Em nome de que se abre mão da floresta? Quanto custa a vida de cada animal que nela habita, de cada árvore que ali filtra o ar que respiramos? Qual o preço da liberdade? A resposta está no Manifesto Piaraçu: “o dinheiro não paga por elas”. Durante o Encontro Mebengokrê, o cacique Raoni foi enfático: “Se vierem com dinheiro para minerar minha terra, eu não vou aceitar. Se vierem com dinheiro para explorar madeira, eu não vou aceitar”Eis os valores de indenização que o governo pretende pagar pela devastação, segundo o PL 191: 0,7% da energia produzida por hidrelétricas a serem construídas em Terras Indígenas e de 0,5% a 1% da futura produção de petróleo ou gás natural. 

Em nome de que se troca autonomia por indenização? 

A Consulta Prévia é um compromisso firmado pelo Estado brasileiro por decreto, assinado em 2004, um texto que vai direto ao ponto: “Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento”. Da mesma forma, a Constituição é clara: O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”Se acharmos natural atropelar direitos garantidos na Constituição, abrimos um precedente que vai na contramão do nosso espírito democrático. 

Nossas escolhas definem nosso futuro. 

#EmNomeDeQuê #UmaGotaNoOceano #NãoÉNão #Tamuatéaki 

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Suíços em Davos querem proteção de terras indígenas

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Não existe futuro saudável para ninguém se não cuidarmos da Amazônia. Aproveitando a visita do presidente Jair Bolsonaro ao país para participar do Fórum Econômico Mundial de Davos, os suíços resolveram pedir que ele respeite as florestas e aqueles que cuidam delas. É que uma das primeiras ações de Bolsonaro como presidente foi parar todas as novas demarcações de terras indígenas.

O término deste processo estimula os grileiros, madeireiros e garimpeiros, sempre de olho nas terras protegidas pelos índios, a invadi-las.
Assine a petição e apoie o pedido do presidente suíço Ueli Maurer pela proteção da Amazônia e dos povos indígenas do Brasil.

Foto: Dominik Schraudolf

Indígenas temem uma grande invasão

Indígenas temem uma grande invasão

Miriam Leitão esteve, em 2013, com o fotógrafo Sebastião Salgado em território Awá Guajá, no Maranhão, e testemunhou o drama vivido pelos povos indígenas locais. Não é de hoje que eles são vítimas do descaso do Estado; há tempos eles têm que defender suas terras praticamente sozinhos. Mas a situação pode ficar muito mais grave: lideranças indígenas maranhenses informaram à jornalista que grileiros estão planejando uma grande invasão. Eles se sentem encorajados, uma vez que a Funai saiu da alçada do Ministério da Justiça, que costumava mediar esse tipo de conflito. A instituição foi para a pasta da Agricultura, dominado pelos ruralistas.

O mundo está mudando. Os povos indígenas ganharam mais voz na Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU. Jair Bolsonaro discursará em Davos e conforme escreveu a jornalista, os líderes mundiais “Querem ouvir Paulo Guedes contar como tornará as contas públicas sustentáveis. Querem ouvir a história do juiz ícone do combate à corrupção no Brasil, agora em nova função. Mas querem também saber o que o governo pretende fazer para proteger florestas e seus povos originais”. Se o novo presidente quer realmente mudar o país, deve olhar com mais carinho para os indígenas. Eles são os guardiões de nossas florestas, nossa maior riqueza. Cuidam delas para todos nós.

Via Bom Dia Brasil

Foto: Sebastião Salgado

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Funai perde atribuições fundamentais

Funai perde atribuições fundamentais

A notícia parece preocupante e é mesmo. O novo governo baixou uma Medida Provisória que destitui a Fundação Nacional do Índio (Funai) de identificar, delimitar e demarcar Terras Indígenas (TIs). As atribuições, fundamentais à questão indígena, caberão ao Ministério da Agricultura, cuja titular da pasta, Teresa Cristina, é deputada licenciada da bancada ruralista.

A identificação e demarcação de territórios quilombolas, até então a cargo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), também ficarão sob a tutela da Agricultura. Tão importantes na formação do Brasil, os povos indígenas e quilombolas precisam cada vez mais de respeito e reconhecimento do país que ajudaram a construir.

Via Folha de S.Paulo

Foto: Mauricio Hashizume

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