agosto 2024 | Cultura, Cultura Popular, Mulheres, Quilombola, Quilombolas
Por Waleska Barbosa
Quem tem direito à memória? Quem pode figurar em um museu? Que histórias um país conta em seus panteões? Decisões políticas apontam quem será lembrado e quem será apagado. Decidem que cara e cor de pele terão heroínas, heróis, algozes, e qual lado da força terá sua versão perpetuada, cultuada, conhecida e reconhecida.
Por sorte, decisões políticas também são tomadas fora dos palácios. Em chão batido. Em território quilombola. E uma delas fez surgir o Museu Rústico Mãe Bernadete, a ser inaugurado em Pitanga dos Palmares, na Bahia, como parte da programação do 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola, entre os dias 16 e 18 de agosto.
Por mais de 50 anos vivenciado como Lavagem de São Gonçalo, o evento que celebra tradições ancestrais foi interrompido e voltou com nome de festival por ideia dela. A matriarca. A Ialorixá. Dos Palmares. Tal qual Zumbi, ela lutou. Lutou contra gananciosos, contra poderosos, contra injustiças. Lutou pelo bem-viver. Segurança alimentar. Saúde. Educação. E, o mais importante para seu povo, lutou pelo direito à terra.
Com acervo composto por objetos pessoais, roupas, premiações e comendas recebidas por Bernadete Pacífico, o museu será lugar de permanência da cultura afro-quilombola e do legado de todos que contribuíram, até mesmo com a vida, para a manutenção dos saberes e fazeres ancestrais em Pitanga dos Palmares. É o que me conta o filho dela, Jurandy Wellington Pacífico.
Mãe Bernadete foi uma dessas que contribuíram com a vida. Até o dia 17 de agosto de 2023, quando foi assassinada. Enquanto descansava com os netos. À noite. Foram vinte e dois tiros. Doze deles atingiram seu rosto. O que corrobora com o alerta que a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) vem fazendo: há um aumento assustador no número de lideranças mulheres assassinadas Brasil afora. E a Bahia, terra de Bernadete, lidera as estatísticas. Elas morrem torturadas. Morrem com laivos de humilhação e desdém. Morrem odiadas.
Morrem por exercer papel de destaque. Por serem mulheres. Ou os dois. Vulnerabilizadas pela ausência de políticas públicas que as protejam. Ou pela morosidade da implementação de políticas públicas que lhes garantam a regularização de seus territórios.
Mãe Bernadete. Viva em lembrança. Presente em cada palavra dita. Em cada gesto. Em cada conquista. Sua existência gigante salvaguardada no Museu Rústico de 25 metros quadrados. Uma construção de taipa. Erguida em mutirão.
Recebo fotos e vídeos da obra. Ninguém parece cansado. Há sol quente no céu de Simões Filho. Mas há mais calor, o humano, entre os que se unem em torno da estrutura. Entre 12 e 20 pessoas – trabalhando juntas dia após dia, até que o último naco de barro fosse posto nas entranhas das toras de madeira unidas e arranjadas em trama que lembra o xadrez do tecido. “É tudo feito à mão. Do jeito que eram nossas casas há 50 anos. É saber ancestral que estamos resgatando”, conta Jurandy.
Anos antes, em 2017, Mãe Bernadete perdeu um dos filhos, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, Binho do Quilombo. Ele também terá suas memórias abarcadas pelo Museu Rústico, entre outras lideranças do território, como Mestre Nilo e Matias dos Santos.
Binho foi assassinado a tiros como a mãe, tombada antes de ver o caso desvendado. Em julho, a Polícia Federal anunciou a prisão de dois suspeitos do crime. Mas para Jurandy ainda resta a pergunta: quem mandou matar Binho do Quilombo?
Não há respostas. E enquanto se espera por elas, no luto do verbo lutar, é urgente dar continuidade ao que vinha sendo feito. Com festival, arte e cultura. Com celebrações – a alegria é tecnologia ancestral. A religiosidade também. Jurandy se desdobra para organizar o evento que a mãe idealizou, ainda que lhe doa a saudade. É o primeiro sem tê-la como força de trabalho. O primeiro em que será homenageada, emprestando seu nome e o simbolismo nele contido a museu, prêmio e ao próprio evento.
Para que se conheça, respeite e beba da sua fonte, um legado precisa ser preservado. É o que o Museu Rústico vai assegurar daqui para a frente. Pitanga dos Palmares forja, com a mão na massa, ou melhor, no barro, o direito à memória, soprando aos quatro ventos do território negro: Mãe Bernadete – o legado continua.
*Waleska Barbosa é escritora, jornalista e correspondente da Uma Gota no Oceano em Brasília. Apresentadora do programa Quilombo de Wal, na TV Comunitária do DF, integra também a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF).
julho 2024 | Cerrado, Quilombola, Quilombolas
Titulação já para os quilombos do Cerrado |
Uma perspectiva quilombola |
*Por Sandra Braga e Antonio Oviedo
A luta ancestral pelo direito à terra e ao espaço para viver de acordo com preceitos seculares envolve resistir à volúpia capitalista da monocultura agrícola, que engole trechos cada vez maiores dos rincões brasileiros. A batalha se dá em boa parte do país – da Amazônia ao Pampa, do Pantanal à Caatinga – e é particularmente intensa no Cerrado.
Pesadas ameaças ambientais espreitam as populações quilombolas em Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Piauí. Nada menos que 19 territórios (um quarto de todos naquele pedaço do Brasil) estão sob alta vulnerabilidade, um quadro alarmante que até hoje não recebeu a devida atenção das autoridades.
O Instituto Socioambiental dimensiona o tamanho do problema em estudo sobre a vulnerabilidade socioambiental dos territórios quilombolas no Cerrado. Pioneiro ao adaptar o modelo criado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para investigar os perigos que cercam os quilombos, o levantamento aponta que todos os territórios em Mato Grosso, uma das mais cobiçadas fronteiras do agronegócio, estão em alta vulnerabilidade. Outros estados com muitos territórios em situação dramática são Tocantins (75%), Minas Gerais (62,5%) e Goiás (55,6%).
A não titulação dos territórios quilombolas potencializa os riscos de maneira contundente. Os territórios sem titulação concluída apresentam níveis (ou graus) de vulnerabilidade maiores, com o consequente risco para os ecossistemas locais e, sobretudo, as populações que os preservam.
Os indicadores das pressões nos territórios são aferidos por mudanças na cobertura vegetal e atividades econômicas venenosas, tais como mineração, cadastro ambiental de imóveis rurais (CAR) ou obras de infraestrutura planejadas. De outro lado, o indicador de capacidade adaptativa inclui o status do reconhecimento do território e a cobertura remanescente de vegetação nativa, além da população residente no território.
Em meio a mudanças climáticas cada vez mais dramáticas, ameaças reais à continuação da vida humana no planeta, as comunidades quilombolas dão aulas cotidianas de sustentabilidade. Manejam seus territórios por meio de conhecimentos tradicionais, sedimentados no respeito à terra, às águas, aos animais e aos encantados, a partir de saberes africanos e em diálogo com o conhecimento indígena. Conjugam cuidado e simplicidade, para apresentar resultados incontestáveis.
Exemplo educativo para entender o valor do jeito afrobrasileiro de fazer está no Quilombo Kalunga, um dos 63 do Cerrado e o maior do país em extensão (262 mil hectares). Por lá, a vegetação está preservada em 83% do território – no resto de Goiás, o bioma sobrevive em irrisórios 30% da cobertura original. Vizinho ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, o santuário quilombola há 200 anos toca a vida em sintonia precisa com o meio ambiente. Apenas 10% do território teve a titulação concluída até o momento.
As comunidades quilombolas no Cerrado e seus territórios são essenciais na luta pela sustentabilidade. O empoderamento das suas populações beneficiará a gestão territorial; assim, o combate e controle de atividades ilegais dentro e ao redor daquelas comunidades precisam se tornar política permanente e incansável do Estado.
O cancelamento de requerimentos minerários e cadastros de imóveis rurais sobrepostos aos territórios, a adequada consulta pública para o licenciamento de obras de infraestrutura e o fortalecimento das políticas de gestão territorial devem ser inegociáveis, em nome de reduzir a vulnerabilidade socioambiental dos territórios – e da defesa do meio ambiente.
É para os quilombolas – e para todos nós.
*Sandra Braga é coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)
Antonio Oviedo é Pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA)
fevereiro 2024 | Direitos indígenas, Marco Temporal, Povos indígenas, Povos Tradicionais, Quilombola
Se é verdade que o ano no Brasil só começa depois do Carnaval, ainda bem que este caiu no início de fevereiro, pois temos muito a fazer. O bloco da Bancada do Fim do Mundo não está nem aí para estourar o tempo do desfile – leia-se o prazo para tomarmos medidas definitivas contra o avanço das mudanças climáticas e o ponto de não retorno da Amazônia –, como se não houvesse amanhã. Fora que o seu repertório parece inesgotável, embora seja só variações sobre os mesmos temas. E aqui estamos nós, com 30 anos de atraso – a Constituição diz que todas as terras indígenas deveriam estar demarcadas até 1993, bem como determinou a titulação dos quilombos –, falando de “marco temporal”. Um enredo do século passado.
A Unidos do Ruralismo tem em mãos uma ala quase imbatível, a maioria do Congresso mais antivida que já tivemos. Em 21 de setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, por nove votos a dois, a inconstitucionalidade da tese, que põe barreiras quase intransponíveis para que novos territórios originários sejam homologados – e ainda ameaça muitos já demarcados. A despeito de a maior Corte do país considerá-la inconstitucional, os ruralistas aprovaram, ainda em setembro, o PL 2.903/2023, que institui o marco temporal.
O projeto foi vetado pelo presidente Lula em outubro, mas os congressistas derrubaram o veto. Seu nome agora é Lei 14.701/2023. Coube a uma deputada federal indígena liderar uma nova luta no Supremo, agora pela inconstitucionalidade da lei. Inacreditavelmente, o judiciário terá que julgar novamente um caso que já deu por resolvido. Anotem na agenda: o STF julga este ano duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) e enfrenta a pressão dos lobbies do agronegócio e da mineração. O relator será Gilmar Mendes.
Também dormita na Câmara o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, cujo objetivo é retirar o Brasil da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na prática, ela liberaria geral a mineração, o agronegócio e a construção de obras de impacto em terras indígenas. Ou seja, mais do mesmo. A Escola de Samba Salgueiro levou à avenida o enredo Hutukara, que conta a história da luta Yanomami. Sim, luta. O próprio Davi Kopenawa, uma de suas mais proeminentes lideranças, pediu que a escola não tratasse os Yanomami como coitadinhos e, sim, como são de fato: guerreiros. A invasão de sua terra por garimpeiros remonta aos anos 1980, mas eles vêm resistindo bravamente.
Só que já passou da hora de encontrar uma solução rápida e definitiva. No início do ano, o governo federal anunciou que vai investir R$ 1,2 bilhão numa operação permanente contra o garimpo ilegal. É preciso que os povos indígenas participem da coordenação dessas ações e fiscalizem para onde vai esse dinheiro. Sabe-se que membros das Forças Armadas que têm simpatia pelo garimpo sabotaram missões no território – isso sem contar os políticos da região, que têm políticas francamente anti-indígenas. É agente da “abin paralela” pra todo lado.
Os garimpeiros não trabalham para si próprios, mas para muitos dos ocupantes das cadeiras do Congresso ou empresários que os apoiam financeiramente – e este ano tem eleições municipais. É preciso escolher candidatos comprometidos com a defesa da vida e ficar nos seus pés depois de eleitos. Cada anúncio de obra do PAC na Amazônia merece atenção redobrada. Uma estrada asfaltada, hidrovias, pistas de pouso e ferrovias serviriam para facilitar a vida dos invasores e para desviar dinheiro que poderia desenvolver a bioeconomia e ações de conservação. Tapetes vermelhos para o crime por cima do verde.
Outro desafio que não pode esperar mais um Carnaval é o desmatamento no Cerrado. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), enquanto houve uma redução de 50% do desmatamento na Amazônia, no segundo maior bioma do Brasil ele cresceu 43%. Foram abaixo 7,8 mil km² de vegetação nativa em 2023. Não tem tanto segredo porque a causa é basicamente uma: o avanço sem trégua do monopólio da soja.
A solução mais prática e óbvia nos leva ao início do artigo: o aumento de áreas protegidas. A Amazônia tem mais de 40% de seu território coberto, enquanto no Cerrado essa proporção fica entre 12% e 14%. É preciso demarcar mais terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação. E, claro, cortar os subsídios dos desmatadores. A marchinha favorita dessa turma é “Me dá um dinheiro aí”.
Como diz o pensador acadêmico da ABL Ailton Krenak, “até quando as pessoas vão ficar olhando o povo indígena defender sozinho a floresta?”. O escritor também disse que não quer “salvar os indígenas, mas evitar a extinção da espécie humana”. Tem enredo melhor que esse? É hora de a sociedade civil puxar esse samba.
Saiba mais:
ACNUDH manifesta-se contra retirada do Brasil da Convenção 169 da OIT
https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/acnudh-manifesta-se-contra-retirada-do-brasil-da-convencao-169-da-oit
Não adianta chorar sobre o cerrado derrubado
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/01/nao-adianta-chorar-sobre-o-cerrado-derrubado.shtml
Congresso derruba veto de Lula ao marco temporal das terras indígenas
https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2023/12/congresso-derruba-veto-de-lula-ao-marco-temporal-das-terras-indigenas
Marco temporal volta ao STF com três ações diferentes e Gilmar Mendes relator; entenda
https://www.brasildefato.com.br/2024/01/04/marco-temporal-volta-ao-stf-com-tres-acoes-diferentes-e-gilmar-mendes-relator-entenda
PP, Republicanos e PL acionam o STF para validar o marco temporal de terras indígenas
https://www.jota.info/justica/pp-republicanos-e-pl-acionam-o-stf-para-validar-o-marco-temporal-de-terras-indigenas-28122023
agosto 2023 | Uncategorized
Pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas nos últimos dez anos, segundo a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ). Uma delas foi Flávio Gabriel dos Santos, o Binho do Quilombo, filho de Mãe Bernadete, morto em 2017. A matriarca do quilombo Pitanga dos Palmares foi assassinada na semana passada por lutar por justiça e pela proteção do território tradicional. Mãe Bernadete sabia que a regularização fundiária, com a titulação dos quilombos, é o primeiro passo para combater a violência contra a população quilombola. Quilombo é questão de segurança alimentar, climática e pública – a última, um dever do Estado. O coração quilombola precisa bater cada vez mais forte.
Depois de ser adiado duas vezes seguidas, o novo Censo do IBGE finalmente revelou o tamanho de nosso coração quilombola: são 1,32 milhão de pessoas que pulsam em 1.696 municípios, em todas as regiões do Brasil – e em todos os estados, exceto Acre e Roraima. O instituto identificou 494 territórios oficialmente delimitados, que abrigam 203.518 moradores. Ou seja, a imensa maioria deles (87,4%) ainda reside no limbo da burocracia e da ganância de alguns. A Constituição de 1988 reconheceu sua existência e seus direitos, mas só agora eles começam a entrar na sala das decisões. Eles devem entrar.
É verdade que hoje há representantes quilombolas no Executivo e o Censo os localizou no mapa. Essa população e o Estado nunca tiveram tais ferramentas nas mãos: informação e a possibilidade de realizar. Chegou a hora de os quilombos se inserirem definitivamente no centro das decisões. Um exemplo prático: com esses dados detalhados sobre a localização das comunidades e o tamanho exato dessa a população – antes apontados como a razão de que para que as políticas públicas voltadas para eles estivessem absurdamente defasadas no orçamento federal – os recursos teriam mais chance de chegar aonde são mais necessários. A começar pelas ações de reconhecimento, demarcação e titulação dos territórios quilombolas.
Para que isso aconteça, é preciso incluir políticas públicas exclusivamente voltadas à população quilombola no Plano Plurianual. Conhecido como PPA, ele define critérios e objetivos de longo prazo do governo. Uma prioridade é óbvia: a legalização da posse da terra, primeiro passo para garantir o acesso dos quilombolas a outros direitos constitucionais. De outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição, até agora, menos de 200 das cerca de 6 mil comunidades foram tituladas – o ponto final de um longo processo de regularização fundiária que passa por dois órgãos: Fundação Palmares e Incra. Nesse ritmo, só daqui a dois mil anos as 1.896 ações de ações em andamento serão concluídas.
A segunda maior concentração de quilombolas do país, cerca de 430 mil pessoas (32,1% do total), está na Amazônia Legal, que tem 148 quilombos titulados e outros 583 em processo de titulação. Nas terras que ocupam, o desmatamento é próximo do zero há 13 anos; sua importância no combate à crise climática é sabido. Mas as comunidades precisam ser legalizadas para que possam ser melhor protegidas pelo Estado. O tráfico e seus pistoleiros de aluguel são apenas mais uma ameaça. A maior é aquela desde sempre: a invasão de terras. Não se trata apenas de proteger a natureza, mas também de se salvar vidas humanas, como a de Mãe Bernadete Pacífico.
Mãe Bernadete era mulher no quinto país que mais pratica o feminicídio no mundo, um número que cresceu 6,1% em 2022, chegando a 1.437 mortas. É negra, e pessoas com a mesma cor de pele que ela têm três vezes mais chances de serem assassinadas, além de serem as que mais morrem pelas mãos do Estado: em média, cinco pessoas negras foram mortas, por dia, em ações policiais, em 2021. Em números totais: os negros representam 65% dos 2.154 óbitos registrados na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo estados monitorados pela Rede de Observatórios em Segurança Pública. Ela também era ialorixá, em tempos em que a intolerância contra religiões de matriz africana dispara: em 2020, foram registrados 86 casos de violência, enquanto, em 2021, eles chegaram a 244, um aumento de 183%. Mas foi covardemente assassinada aos 72 anos por questões fundiárias, dentro da associação do Quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia.
Os assassinatos no campo tiveram um aumento de 30% entre 2021 (35 mortos) e 2022 (47, com nove adolescentes e uma criança entre eles), aponta a Comissão Pastoral da Terra. E as lideranças comunitárias são os alvos mais frequentes dessa violência. Mãe Bernadete exercia uma liderança natural, tanto religiosa como política, na sua comunidade, localizada na região metropolitana de Salvador (BA). Cerca de 290 famílias vivem no local de 8,54 km². A associação de moradores local reúne 120 agricultores que produzem farinha, frutas e verduras. Foi certificado em 2004, mas ainda não foi titulado. Por isso, é mais cobiçado.
De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas nos últimos dez anos. A própria Bernardete pedia Justiça por seu filho, Flávio Gabriel dos Santos, o Binho do Quilombo, morto por um grupo de homens armados em 2017. Ao legalizar territórios, a violência diminuirá. Quilombo é questão de segurança alimentar, climática e pública – a última, um dever do Estado. O coração quilombola precisa bater cada vez mais forte.
Marco temporal é racismo fundiário (artigo de Biko Rodrigues)
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/07/marco-temporal-e-racismo-fundiario.shtml
Ao menos 30 líderes quilombolas foram assassinados nos últimos dez anos, diz entidade
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/ao-menos-30-lideres-quilombolas-foram-assassinados-nos-ultimos-dez-anos-diz-entidade.shtml
Morta a tiros na Bahia, Bernadete Pacífico falou sobre violência contra quilombolas em encontro com presidente do STF em julho
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/08/18/morta-a-tiros-na-bahia-bernadete-pacifico-falou-sobre-violencia-contra-quilombolas-em-encontro-com-presidente-do-stf-em-julho.ghtml
Censo do IBGE: quase um terço dos quilombolas do Brasil mora na Amazônia Legal
https://g1.globo.com/economia/censo/noticia/2023/07/27/censo-do-ibge-quase-um-terco-dos-quilombolas-do-brasil-mora-na-amazonia-legal.ghtml
Comunidade quilombola liderada por Mãe Bernadete enfrenta luto e medo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/comunidade-quilombola-liderada-por-mae-bernadete-enfrenta-luto-e-medo.shtml
Vítimas de violência em conflito por terra, quilombolas ainda são “apagados” em decisões políticas
https://oeco.org.br/reportagens/vitimas-de-violencia-em-conflito-por-terra-quilombolas-ainda-sao-apagados-em-decisoes-politicas/
Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas em 1.696 municípios
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37464-brasil-tem-1-3-milhao-de-quilombolas-em-1-696-municipios#:~:text=O%20Censo%202022%20mostrou%20que,total%20de%20quilombolas%20do%20pa%C3%ADs.
A importância do Censo na formulação de políticas públicas para quilombolas
https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2023/08/19/a-importancia-do-censo-na-formulacao-de-politicas-publicas-para-quilombolas.htm
No atual ritmo, Brasil levará 2.188 anos para titular todos os territórios quilombolas com processos no Incra
https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/no-atual-ritmo-brasil-levara-2188-anos-para-titular-todos-os-territorios-quilombolas-com-processos-no-incra/23871
1.437 mulheres foram mortas no Brasil simplesmente por serem mulheres
https://observatorio3setor.org.br/noticias/1-437-mulheres-foram-mortas-no-brasil-simplesmente-por-serem-mulheres/
Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio no mundo
https://www.camara.leg.br/tv/553531-brasil-tem-a-quinta-maior-taxa-de-feminicidio-no-mundo/
Negros são maioria dos mortos em ações policiais
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-11/negros-sao-maioria-dos-mortos-em-acoes-policiais
Risco de assassinato é 3 vezes maior para negros do que para não negros no Brasil
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/11/risco-de-assassinato-e-3-vezes-maior-para-negros-do-que-para-nao-negros.shtml
Casos de ataques às religiões de matriz africana crescem 270%
https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-01/casos-de-ataques-religioes-de-matriz-africana-crescem-acima-de-270#:~:text=Em%202021%2C%20as%20notifica%C3%A7%C3%B5es%20contra,mu%C3%A7ulmana%2C%20judaica%20e%20a%20ind%C3%ADgena.
julho 2023 | Direitos humanos, Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Povos Tradicionais, Protected areas, Quilombola, Quilombolas
O Senado Federal retoma as atividades no dia 1º de agosto com a ameaça de votar o PL 2903, que propõe transformar a tese do “marco temporal” em lei. Um precedente para outras armadilhas, como o PL 1942/2022, considerado uma bomba-relógio plantada no Congresso contra os quilombolas.
Por Biko Rodrigues*
No mês passado, a chamada Abolição da Escravatura completou 135 anos, mas ainda há os que não se conformam com nossa autonomia.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) votou contra a adoção de um “marco temporal” em relação aos territórios quilombolas. “As comunidades quilombolas chegaram ao Brasil em um processo da escravidão. Remeter essa luta histórica a 1988 é deslegitimar todo o processo histórico do país”, declarou, na época, o ministro Luís Roberto Barroso. Além de considerar a tese inconstitucional, a decisão ainda foi ratificada dois anos depois pelo mesmo STF.
Acreditávamos ter exorcizado essa assombração naquela ocasião, mas o Congresso está tentando trazê-la de volta do Além. A bancada ruralista tenta passar um trator chamado projeto de lei (PL) 490/2007 por cima dos direitos de nossos irmãos indígenas —e sabemos que depois tentarão nos atingir.
Se os povos originários, os primeiros habitantes do Brasil, poderão ser obrigados a provar que estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988, imaginem nós, cujos ancestrais só chegaram depois de 1500? Os africanos escravizados vieram para cá contra sua vontade, mas também criaram raízes neste solo, os quilombos.
Há uma bomba-relógio plantada no Congresso contra nós. O PL 1942/2022 determina que só terá a posse definitiva da terra as comunidades quilombolas que a estavam ocupando na data da promulgação da atual Constituição. Detalhe: o autor do projeto tem como prenome Coronel, é do Partido Liberal, do ex-presidente que nos pesa em arrobas, e deputado por Santa Catarina, que só tem menos quilombos reconhecidos (19) que os estados de Rondônia, Roraima, Distrito Federal e Acre —onde o colonizador não se estabeleceu. Em nome de quem ele legisla?
Dizem que o tempo é o senhor da razão, mas “senhor” é uma palavra que causava arrepios em nossos ancestrais, e o tempo corre contra nós.
Existe um precedente perigoso. Da mesma forma que votaram o PL 490 em regime de urgência, podem fazer o mesmo com o 1942. Enquanto isso, os processos de titulação patinam no Incra: desde que conquistamos nossos direitos, há 34 anos, menos de 200 das 6.000 comunidades foram tituladas. Nesse ritmo, só daqui a cerca de 2.000 anos as 1.896 ações em andamento serão concluídas; e ainda há mais 4.000 que sequer iniciaram esse processo.
O que está acontecendo conosco tem nome e sobrenome: racismo fundiário. O marco temporal inverte a lógica judicial; exige de quem é acusado de não ser dono de sua terra comprovar que estava ali, quando o ônus da prova cabe ao acusador. Nos anos 1970/80, a grilagem prosperou como nunca no país, com indígenas e quilombolas sendo expulsos de suas terras sob a mira de armas. Nossas terras também foram comidas pelas beiradas, encolhendo aos poucos. Um exemplo disso é Brasília: a capital federal foi erguida em áreas que pertenciam ao Quilombo de Mesquita.
O PL 1942 ainda prevê a titulação individual dos territórios, não coletiva, como é hoje. Os quilombos são coletivos justamente para resguardar os direitos da coletividade. São inalienáveis, não podem ser vendidos, passam de geração para geração; quando a posse é individual, passa a seguir uma lógica mercadológica da terra. O Brasil precisa se aquilombar.
O país tem compromissos ambientais com o resto do mundo. Hoje, temos 148 quilombos titulados na Amazônia Legal; nos últimos 13 anos, o desmatamento neles foi zero. Quilombos são barreiras de proteção ao verde e ajudam a validar nossa carteira de potência ambiental.
*Biko Rodrigues é coordenador-executivo da Conaq – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas