Ecossistema Brasil

Ecossistema Brasil

Eduardo Souza Lima
Jornalista e articulista
Maria Paula Fernandes
Jornalista e diretora da Uma Gota No Oceano

Bastou a Terra voltar a ser redonda para o mundo dar voltas. Lula e Raoni, que subiram a rampa do Planalto de braços dados, estavam em lados opostos em 2011, quando a gente começou a testemunhar essa história: o primeiro, como fiador da construção de Belo Monte, enquanto o segundo era uma das vozes mais ativas contra aquela monstruosidade. Coincidência ou não, as duas palavras que caracterizaram o movimento contra a usina, união e reconstrução, viraram mote do governo; e um conceito nascido na floresta, o socioambientalismo, foi adotado como inspiração.

União e reconstrução: milhares de cidadãos brasileiros que viviam às margens do Rio Xingu, um dos mais importantes afluentes do Amazonas, tiveram que refazer suas vidas por causa de Belo Monte, no Pará. A hidrelétrica não só tornou mais miserável as vidas dos povos indígenas que moram na região da Grande Volta, como as de ribeirinhos, extrativistas, quilombolas e até mesmo da população urbana da maior cidade local, Altamira. Unidos, os movimentos sociais se fortaleceram e acabaram se tornando determinantes na oposição mais eficaz contra o último governo, que já foi tarde e deixou muito estrago.

Que a usina, como ferida aberta na floresta, sirva de advertência para evitar novos erros; mas, passados mais de 10 anos, existem demandas mais urgentes. A devastação promovida na Amazônia nos últimos quatro anos é motivo mais que nobre para rever pensamentos e promover reconciliações. A paz é elemento fundamental para uma reconstrução sólida. “Eu decidi participar para mostrar para todo mundo que agora não é mais tempo de ódio”, disse Raoni sobre sua presença na cerimônia de posse. É uma causa acima de diferenças, mesmo que justificáveis. Hoje, os povos da floresta também governam.

“Ninguém conhece melhor nossas florestas nem é mais capaz de defendê-las do que os que estavam aqui desde tempos imemoriais. Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental”, reconheceu Lula em seu discurso de posse no Congresso Nacional, ao anunciar a criação do tão esperado Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Quem assume a pasta é ex-coordenadora executiva da Apib, candidata à vice-Presidência da República em 2018 e deputada federal recém-eleita Sonia Bone Guajajara. Guerreira de metro e meio que se agiganta diante do maior galalau, Sonia Guajajara foi uma voz fundamental para tornar a causa indígena brasileira conhecida em todo o mundo. Não à toa, foi eleita uma das cem pessoas mais influentes de 2022 pela revista “Time”.

A Funai agora se chama Fundação Nacional dos Povos Indígenas (e não mais “do Índio”) e foi vinculada ao MPI. Cabe à instituição demarcar territórios e Joênia Wapichana será, mais uma vez, pioneira, ao se tornar não só a primeira indígena, como também a primeira mulher a ocupar sua presidência. Ela também foi a primeira advogada indígena a exercer a profissão no Brasil e a primeira a ocupar uma cadeira na Câmara Federal. Mestre pela Universidade do Arizona (EUA), Joênia fez a defesa oral do caso da demarcação da Serra Raposa do Sol frente ao STF, um marco na luta pelos direitos dos povos originários.

Já o conceito de socioambientalismo nasceu a partir de ações de Chico Mendes (1944-1988). O Patrono Nacional do Meio Ambiente percebeu que, entre os milhões de seres vivos que compõem essa explosão de biodiversidade que é a Amazônia, está o Homo sapiens. Ele está por lá há pelo menos 14 mil anos, vivendo em harmonia como seus demais companheiros de ecossistema. Seres humanos e floresta são indissociáveis. Povos tradicionais não a prejudicam; ao contrário, cuidam dela.

Esta ideia chegou ao governo por sua conterrânea e discípula acreana Marina Silva, outra ambientalista reconhecida no mundo inteiro. Ainda na primeira gestão de Lula, como ministra do Meio Ambiente, ela se inspirou nesse pensamento para experimentar outro conceito, o da transversalidade. O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDam), que deve ser retomado, é o melhor exemplo de gestão transversal – pois atravessa ministérios, instituições diversas, governos estaduais e municipais – bem-sucedida: reduziu o desmatamento na região de 27 mil km² em 2004 para 4,5 mil km², em 2012.

A visão socioambiental de Marina a guiou também na criação do Fundo Amazônia, ainda na primeira passagem pelo Ministério do Meio Ambiente e, este ano, da novíssima Secretaria Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável, no agora rebatizado Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Seu objetivo é apoiar os povos e comunidades da floresta em seu trabalho imprescindível de preservação do verde e, por conseguinte, ao equilíbrio climático. Já os quilombolas, que desenvolveram técnicas sustentáveis de regeneração de solos, terão secretarias próprias no Ministério da Igualdade Racial, comandado por Anielle Franco, e no de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, chefiado por Paulo Teixeira – que também vai abrigar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Nos últimos quatro anos a Amazônia foi devastada como nunca e não adianta fingir que nada aconteceu. É preciso regenerar, replantar, reconstruir, unir e pacificar. Os povos da floresta estão chegando ao poder neste governo, mas vão precisar de toda ajuda possível, pois os desafios são imensos. O povo brasileiro forma um ecossistema dos mais sofisticados, porque diverso, e tem que fazer parte dessa transversalidade. Não “tá tudo dominado” enquanto tudo não estiver interligado.

 

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A colheita do futuro

A colheita do futuro

Diz a sabedoria popular que o apressado come cru. No fim do ano passado, sugerimos que 2022 fosse usado para semear esperança e votos. Nada de pressa agora: a colheita fica para depois de 2023. Primeiro precisamos cuidar bem das sementes e mudas que plantamos, regá-las todo dia com carinho, regenerar terrenos, tornar o solo novamente fértil. Só assim elas irão florescer. Há muito a ser feito na terra arrasada que o país se tornou.

A começar por reestruturar o Ministério do Meio Ambiente, que precisa voltar a contar com a participação da sociedade civil, e apoiar os indígenas na criação do Ministério dos Povos Originários, mas também garantir a proteção dos quilombolas, extrativistas e ribeirinhos, cujos direitos foram ignorados ao longo dos últimos anos. Só assim vamos garantir safras saudáveis pelas próximas décadas.

Destruir é mais rápido e fácil que construir. Calcula-se que a Amazônia, como conhecemos hoje, formou-se há pelo menos 2 milhões de anos. Seus 6,7 milhões km² de área permaneceram praticamente intocados até meados dos anos 1970. A partir daí, a motosserra pintou e bordou: segundo um estudo do Mapbiomas, em apenas 37 anos – entre 1985 e 2021 – ela perdeu 750 mil km². Dá 11% de sua área original e pouco menos que um Chile inteirinho.

O Brasil é o país que mais desmatou, com 19% da Amazônia posta abaixo, bem perto do ponto de não retorno, calculado pelos cientistas entre 20% e 25%. Em setembro passado, foi descoberta, na fronteira do Amapá com o Pará, a árvore mais alta da floresta, um angelim vermelho de 88,5 metros de altura. Ela tem pelo menos 400 anos de idade que poderiam ser abreviados em minutos por um espírito do mal.

Assim como “liberdade”, a palavra “narrativa” costuma de ser dita por gente que não entende, ou finge não entender, seu significado. Mais importante que o novo presidente que escolhemos é o que ele prometeu em campanha, a narrativa que escolheu. E ela é baseada nos anseios de qualquer pessoa que sabe da sinuca de bico em que o mundo se meteu: economia sustentável, desmatamento zero, terras indígenas demarcadas – as primeiras já foram escolhidas –, participação da sociedade civil, biotecnologia, a opção pela ciência, fontes de energia verdadeiramente sustentáveis e o fim do garimpo e do contrabando de madeira. E, claro, democracia. Poderemos e devemos cobrar – incluindo a nossa participação na tomada das decisões mais importantes. Nós votamos num projeto.

Já os compromissos assumidos pelo governo que ora já vai tarde, só quem não estava bem-informado queria ver cumpridos. E olha que os resultados foram impressionantes: a Amazônia perdeu 45.586 km² em apenas quatro anos. E quem achasse ruim era exonerado. Outro relatório do Mapbiomas aponta que as áreas de garimpo dobraram entre 2010 e 2021 no Brasil e que 91% dessa exploração está concentrada na Amazônia, especialmente em áreas protegidas. Nas terras indígenas, por exemplo, o garimpo cresceu 632% nesse período. Além do garimpo, a mineração industrial, a agropecuária e o avanço da infraestrutura urbana foram justamente as atividades mais favorecidas com a política ambiental adotada na administração que se despede, que afrouxou regras de licenciamento ambiental, não demarcou nenhuma terra indígena ou quilombola, e levou à UTI órgãos de fiscalização como o Ibama e o ICMBio.

“O Brasil voltou”, cantaram na COP27. Mas, para que tenha voltado para ficar, é preciso plantar não pensando somente na próxima safra. Vamos cuidar de nossas mudinhas e sementes com muito cuidado e carinho para garantir a colheita de um futuro social e ambientalmente mais justo. Que 2023 seja regido pelo afeto.

 

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Semeadura

Um novo sol no horizonte?

Um novo sol no horizonte?

Para muitos cidadãos africanos, o nascer e o pôr do Sol são considerados uma metáfora para o ciclo da vida – do nascimento à morte, e depois ao renascimento. Mas até os menos crentes em simbologias reconhecem que o astro-rei, além de grande símbolo do continente, é essencial para a vida na Terra – e como isso está diretamente ligado ao clima. É por isso que muitos enxergam o horizonte como a linha tênue que separa os raios solares que contribuem para que tenhamos um planeta habitável daqueles que podem exterminar a vida. Foi justamente essa analogia, e a urgência por trás dela, que o governo do Egito quis trazer com a logomarca da COP27.

O encontro anual levou mais de 200 delegações ao balneário egípcio de Sharm El-Sheik para discutir os próximos passos nesta guerra, com o objetivo de transformar promessas – principalmente aquelas relacionadas com o Acordo de Paris – em ações concretas. O evento está chegando ao fim, mas as discussões que surgiram nesta COP devem dar o tom ao processo de mudança necessária pelos próximos anos.

Um tema bastante discutido no Egito foram as NDCs, uma sigla em inglês que significa Contribuições Nacionalmente Determinadas – ou seja, as metas com as quais cada país se compromete para diminuir suas emissões de gases de efeito estufa. O conceito foi explorado sob a ótica brasileira na mesa “Vinculando projetos de energia locais a NDCs e transparência dos relatórios climáticos nacionais”. Ricardo Baitelo, coordenador de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), resumiu a realidade por trás dessas três letrinhas: “Sem transparência e participação, as NDCs não ajudarão em nada no alcance dos resultados para travarmos o aquecimento global”.

Para o Brasil, a expectativa é reforçada com a promessa da retomada do protagonismo global após a eleição de Luís Inácio Lula da Silva que, mesmo antes de assumir o cargo, foi uma das grandes “atrações” da Conferência, como se fosse o portador da lamparina que sinaliza uma luz no fim do túnel. Mas a expectativa é mundial, afinal, a Amazônia é o fiel da balança nessa crise climática – e Lula prometeu priorizar sua proteção.

Até o slogan da COP27 instigava mais ações reais, ao frisar que esta era a “COP da implementação”. Isso porque, na COP26, em Glasgow, foram finalizadas as regras do Acordo de Paris (2015), fornecendo um manual quase pronto com os principais caminhos para sua viabilização. Implementá-las, porém, requer que muito dinheiro seja destinado aos países em desenvolvimento do Sul, os mais vulneráveis às mudanças do clima. Essas negociações só evoluíram na segunda semana, quando se tornaram explicitamente inevitáveis, mas ainda há muito a ser feito para garantir esse financiamento que nos tiraria do débito climático.

Os povos tradicionais brasileiros, como indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas, não só endossaram essas reivindicações, como exigiram fazer parte da construção. Fizeram isso com toda a autoridade de quem tem preservado e explorado a natureza da forma mais eficaz. Vozes de importantes lideranças femininas ecoaram em diversos espaços do encontro e reverberaram para além das fronteiras do Egito. Num deles, “A resistência feminina na Amazônia – a luta de lideranças ameaçadas pelo garimpo ilegal e crime organizado”, nomes como Sonia Guajajara, Joênia Wapichana, Neidinha Suruí, Txai Suruí, Marciely Ayap Tupari, Célia Pinto e Illona Szabó discutiram o impacto das atividades ligadas ao crime organizado sobre a Amazônia sob a ótica feminina, já que as mulheres são as maiores vítimas de ameaças contra ativistas socioambientais.

“Imaginem as crianças que nascem na beira no rio e não podem mais nadar porque embaixo d’água tem draga. Isso não é para fazer chorar, é para fazer reagir”, disse Joênia Wapichana, deputada federal e a primeira indígena eleita para a Câmara Federal. Coordenadora executiva da Coordenação Nacional dos Quilombos (Conaq) e liderança quilombola no Maranhão, Célia Pinto acrescentou ao alerta: “Falar da violência que sofremos todos os dias nos nossos territórios parece ser repetitivo, mas é necessário. O crime organizado está dentro dos nossos territórios e financiado para tirar nossas vidas”. Se indígenas e quilombolas sumirem, a Amazônia some junto.

A COP27 também serviu de palanque para cobranças às grandes corporações e aos blocos econômicos. O Parlamento Europeu está em processo de aprovação da lei antidesmatamento e precisa garantir rastreabilidade de comodities para além das florestas. Com o déficit alimentar provocado pela guerra da Ucrânia, a Organização da ONU para a Alimentação e Agricultura (FAO) passou a defender como alternativa um aumento na produção de alimentos no mundo – o que pode implicar riscos para vários biomas. Por isso a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) frisou em nota: “Obrigar empresas produtoras de comodities a respeitarem a preservação da nossa biodiversidade e os direitos dos povos indígenas é fundamental neste momento. O Cerrado, a Caatinga, o Pampa e o Pantanal também precisam estar enquadrados no conceito de vegetação da Lei, para além das florestas como Amazônia e Mata Atlântica, independentemente da definição de florestas da FAO”, completa o documento.

Dinamam Tuxá, da coordenação executiva da Apib, conta que, desde 2019, a organização tem conhecimento da construção, por parte da União Europeia, desse instrumento de rastreabilidade dos produtos que saem do Brasil. “Com isso, começamos a fazer essa incidência e mostrar a importância dessa rastreabilidade, destacando as consequências para os povos indígenas e o conflito socioambiental ocasionado pelo agronegócio. Mas fomos surpreendidos com o conceito de floresta da FAO, que era totalmente o inverso do que os povos indígenas acreditam. Os nossos conceitos não têm valor? O nosso entendimento do que é floresta ou território não tem valor?”, questionou Tuxá em outro espaço de debate na COP27, que discutiu a grilagem de terras.

Sem o financiamento aos países mais pobres – e mais afetados – e sem a participação ativa dos povos tradicionais no debate climático, continuaremos a acelerar rumo ao tal “inferno climático”. E aí só nos restará sonhar que aquela linha tênue do horizonte não seja símbolo do desequilíbrio fatal para a Humanidade. Então, olhos bem abertos!

Precisamos falar de racismo ambiental

Precisamos falar de racismo ambiental

O racismo ambiental também é estrutural: já percebeu que quando se fala de mudanças climáticas, sempre aparece o urso polar se equilibrando num toco de iceberg? Ninguém se lembra que o primeiro mamífero extinto foi o rato de cauda em mosaico, um roedor marrom, endêmico de uma ilhota do Pacífico engolida pela subida do nível dos oceanos. Da mesma forma, o mundo inteiro acompanha sobressaltado a destruição causada por incêndios na Europa e nos Estados Unidos (país também ameaçado pelos furacões que assolam o Atlântico Norte). No entanto, o Hemisfério Sul, banda pobre do planeta, é o mais afetado e o menos responsável pelo desequilíbrio climático.

Essa relevância seletiva também afeta o reconhecimento dos povos que vivem abaixo da Linha do Equador e do Trópico de Câncer no combate a esse inimigo comum da Humanidade, como observa Ellen Acioli, indígena sateré-mawé e coordenadora programática do Vozes pela Ação Climática (VAC). Por isso, seis entidades, WWF Brasil, Hivos, Fundación Avina, SouthSouthNorth (SSN), Akina Mama wa Afrika e Shack Dwellers International (SDI) criaram o VAC, programa que apóia e divulga ações promovidas contra as mudanças climáticas em sete países: Brasil, Bolívia, Indonésia, Paraguai, Quênia, Tunísia e Zâmbia.

Se, ao menos no papel, acabaram os tempos do colonialismo – quando Ocidente fazia das nações mais pobres sua despensa — seus efeitos permanecem. É o que se chama de colonialidade; é como se a estrutura de poder colonial culturalmente ainda vigorasse (através do consumismo insano que tomou o planeta), mesmo séculos depois do fim do período colonial e da independência dos países explorados. Descolonizar é coisa do passado; agora é preciso decolonizar as relações entre países.

O VAC elegeu associações comandadas por mulheres e jovens da Amazônia Legal como suas porta-vozes, não só porque os povos de lá estão entre os mais atingidos, como porque há séculos eles vêm combatendo a destruição da região com ensinamentos passados de mãe para filha. É uma tecnologia, antes desprezada, que começa a ser reconhecida no mundo inteiro como a mais eficaz.

Um trabalho de décadas de conscientização sobre o manejo do pirarucu para a sua pesca sustentável, na comunidade de Tapará Mirim (Bacia do Tapajós, PA), está indo por água abaixo. Motivo: as secas constantes que vêm castigando a região. Na comunidade de São Luiz Gonzaga, onde a Associação Comunitária de Educação em Saúde e Agricultura (Acesa) cultiva agroflorestas no Médio Mearim (MA), não só os peixes estão sumindo, mas também pássaros antes abundantes, como beija-flores, bem-te-vis e anabus. Até as borboletas bateram asas para bem longe.

Por outro lado, a Arraia Mãe, encantado que protegia o Lago Verde de Alter do Chão, balneário do Tapajós — que havia se refugiado em outros mundos, assustada com o turismo predatório — prepara sua volta ao lar. Se não fisicamente, ao menos no imaginário popular, por meio do trabalho da Associação de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós. A colonialidade também se combate com narrativas, diz Ianny Borari, conselheira fiscal dessa entidade.

Combater a violência contra a mulher indígena e o racismo, promovendo o acolhimento e o fortalecimento da autoestima, além de contribuir para o empoderamento econômico e político e para a defesa de seus territórios, são os principais objetivos das Suraras. Estes serão alguns temas que elas, a VAC e outras organizações parceiras levarão à COP27, que acontece até 18 de novembro de 2022 em Sharm El Sheikh, no Egito. Se quisermos salvar o planeta, essas ideias precisam ser passadas adiante. Decolonizar é uma questão de sobrevivência.

Os três ‘S’ quilombolas

Os três ‘S’ quilombolas

Quem nunca provou da culinária quilombola não sabe o que está perdendo. Além de ser muito gostosa, o que costumam chamar de ‘manjar dos deuses’, ela é saudável e não agride a natureza. Junta os três “s” – sabor, saúde e sustentabilidade – porque sua agricultura semeia receitas ancestrais, como não usar agrotóxicos ou fertilizantes químicos, que envenenam a comida da maioria da população brasileira, e preserva o meio ambiente. Na verdade, faz mais que preservar: regenera. Quilombolas recuperam nascentes de rios e solos degradados, além de promoverem o reflorestamento, entre vários outros serviços ambientais importantíssimos.

Mais um ingrediente que realça o paladar dessa cozinha é a sua diversidade: como há quilombos em todas as regiões do Brasil, eles também protegem a maioria de nossos biomas e suas espécies vegetais nativas, e os pratos são variados. Come-se diferente em cada comunidade, mas sempre se come bem – quilombolas usam os frutos naturais da terra onde vivem. Segundo dados preliminares do IBGE, que no momento realiza o primeiro censo específico para esta população, há cerca de mil localidades quilombolas na Amazônia. E a maior floresta tropical do mundo é comprovadamente protegida por eles.

Em 2011, a Comissão Pró-Índio de São Paulo realizou um estudo em 35 comunidades da região de Oriximiná, no Norte do Pará. Elas ocupam 6.944 km² e, até o ano 2000, somente 64 km² dessa área havia sido desmatada; entre 2006 e 2009, apenas 6 km². Mas não só: os quilombolas amazônidas são grandes produtores de alimentos. E foi justamente na Floresta Amazônica que começou o mapeamento que está sendo feito pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) sobre essa produção, que estava fora do radar.

“Para ter acesso a crédito e políticas de governo, o próprio Estado que nega nossos direitos exige que tenhamos nossos territórios regularizados. Não à toa, essa é nossa principal preocupação. Mas há 20 anos não havia dados sobre a nossa produção. Por isso, a Conaq começou essa iniciativa. A gente precisava nos colocar no mapa da agricultura familiar, como produtores de alimentos”, explica Kátia Penha, coordenadora nacional da entidade. Este alimento não fica restrito às comunidades quilombolas: também chega à merenda escolar de diversos municípios e às mesas de milhões de brasileiros. Poderia ser muito mais, se políticas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) não tivessem sido tão enfraquecidos pelo governo atual.

Olhos e ouvidos do mundo estão voltados para a Amazônia, mas o Brasil abriga outros ecossistemas igualmente importantes, que estão sendo devastados às escondidas e silenciosamente. Daí a necessidade de a Conaq estender esse trabalho fundamental a outras regiões. Os quilombolas também estão atentos aos efeitos das mudanças climáticas e trabalhando em formas de amenizá-los. Nunca é demais lembrar que Bahia, Minas Gerais e Tocantins foram os estados mais prejudicados pelas chuvas que castigaram o país na virada de 2021 para 2022. E, nos dois primeiros, estão localizadas os maiores número de comunidades quilombolas do país, respectivamente 1.046 e 1.021.

Devido a isso, para esta nova fase do estudo foram selecionados quilombos baianos, mineiros e tocantinenses, além de comunidades de Goiás, Maranhão, Mato Grosso e Paraíba, e dois biomas: Cerrado e Caatinga. Do primeiro, nem é preciso se estender muito: na caixa d’água do país, nascem oito das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras. Mesmo assim, está sendo devastado pela monocultura da soja, em mais um tiro no pé do agronegócio irresponsável, que ricocheteia na gente como bala perdida. “Já a Caatinga é um bioma que não é reconhecido como produtor de alimento. O sudestino vê o semi-árido nordestino como uma região morta. Mas ela tem um solo riquíssimo, capaz de produzir comida não só para o Nordeste, como para todo o país”, diz Kátia Penha.

A iniciativa da Conaq de mapear a produção rural abrange mais de 60% das comunidades certificadas do país e também tem como objetivo apoiar na autonomia econômica dessas populações. “É bom lembrar que a agricultura familiar é uma atividade que gera emprego e renda”, frisa Penha.

Toda a população brasileira deveria ser eternamente grata aos quilombolas, mas parte dela retribui o bem que nos fazem com preconceito, violência e invasões, e impedindo que legalizem suas terras, como manda a Constituição de 1988 – até hoje, só 4% deles foram titulados. Aquilombar é servir à vida e à natureza: aquilombemos todos.

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Conaq e Ecam consolidam o diagnóstico da agricultura familiar quilombola em territórios da Caatinga e Cerrado

Boas práticas da agricultura familiar quilombola que apoiam na mitigação das mudanças climáticas no brasil

Diagnóstico das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar quilombola

Diagnóstico das cadeias produtivas da agricultura familiar quilombola: estrutura e diversidade da produção

Panorama Quilombola (2021)

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