Vozes da terra livres

Vozes da terra livres

Esta semana, a Justiça teve de conter o ímpeto antidemocrático da Funai (Fundação Nacional do Índio) em relação a Sonia Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e Almir Suruí, coordenador geral da Associação Metareila do Povo Indígena Paiter Suruí. Ambos foram intimados a depor pela Polícia Federal após a fundação denunciar atividades legítimas desenvolvidas pelas lideranças como crimes. Para isso, a Funai se baseou na empoeirada Lei de Segurança Nacional (LSN) – uma herança maldita da ditadura. No fim, a própria PF concluiu que as acusações não faziam sentido e encerrou os inquéritos. Melhor assim.

Tanto Sonia como Almir foram chamados às falas por críticas feitas pelas entidades que representam à conduta do Executivo no combate à pandemia. A Funai achou por bem acusá-los de difamação. Considerando que a principal função do órgão é defender os direitos indígenas, é como se o seu advogado estivesse trabalhando por sua condenação – com o agravante de saber que você é inocente. Pouco justo, não é? Para piorar, convém lembrar também que, em agosto do ano passado, a Apib ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o governo federal, justamente por conta da negligência em relação à saúde dos povos indígenas durante a pandemia. E o que aconteceu? A ADPF foi acatada de pronto pelo ministro Luís Roberto Barroso, que ordenou que o Executivo apresentasse um plano emergencial. Este já está em sua quarta versão. Quer dizer, tudo indica que o governo… merecia mesmo ser criticado.

O Brasil anda um caos, mas é bom ver certas coisas encontrarem, aos poucos, o seu devido lugar. Este caso está repleto de exemplos neste sentido. No último dia 4, a Câmara aprovou um projeto que revoga a LSN. No dia seguinte, o inquérito contra Sonia e a Apib foi trancado pela Justiça Federal. E no dia 6, foi a vez do mesmo acontecer com a investigação que tinha Suruí como alvo. Passado o susto, o episódio ao menos serviu para revelar nas entrelinhas algo muito importante: a inegável relevância conquistada pelo movimento indígena. O adversário acusou o golpe.

Dissociar desenvolvimento de preservação ambiental cheira à naftalina e ninguém sabe melhor disso do que os indígenas. Guardiões de um conhecimento milenar sobre a natureza, eles não ficaram no passado – como muitos de seus detratores – e encontraram rapidamente seu lugar em um mundo globalizado, com fronteiras cada vez mais raras e oportunidades de diálogo cada vez maiores. Em 2020, Sonia recebeu pela Apib o Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos, concedido pelo Instituto de Estudos Políticos de Washington. Já Suruí foi premiado em 2008 pela Sociedade Internacional de Direitos Humanos, o que lhe rendeu notoriedade suficiente para desenvolver ações de monitoramento da floresta em parceria com o Google.

Hoje, as lideranças indígenas do Brasil têm cadeira cativa em conferências de organizações como a ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E quando elas falam, quem está ouvindo não costuma sair da sala, como acontece com presidentes de países com filme queimado em outros encontros internacionais.

Nossos povos tradicionais levaram seu recado aos 4 cantos do mundo e, diante de um governo saudoso do autoritarismo e outras práticas antiquadas, o contraste não poderia ser maior. Presa ao clientelismo que serve de base para toda corrupção e atraso, a chamada Nova Política tem se revelado uma piada de mau gosto. Já os indígenas, com sua articulação, conhecimento e respeito ao meio ambiente, representam claramente o amanhã com que sonhamos. Todos sabemos que, por mais que tente, o passado não é capaz de impedir o futuro. As vozes da terra estão livres e cabe a nós engrossar este coro. Não só porque é justo, mas também porque o que está em jogo é o bem comum.

#Justiça #Funai #Pandemia #DireitosIndígenas #Apib #PovosIndígenas #PovosTradicionais #Autoritarismo #Política #MeioAmbiente

 

Saiba mais:

Justiça Federal manda PF arquivar inquérito que investiga líder indígena por críticas ao governo

Comissão Arns diz que Funai faz ‘constrangedor papel’ ao ir à PF contra lideranças indígenas

Frente Parlamentar Indígena manifesta apoio à Sônia Guajajara

Deputada Joenia em audiência pública no Senado pede que CPI da Covid-19 investigue tratamento dado aos povos indígenas durante a pandemia

Câmara aprova projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional; texto segue para o Senado

Todo brasileiro hoje sente o que é ser tratado como indígena

Guardiões do futuro

Guardiões do futuro

Os brasileiros costumam reverenciar com entusiasmo os japoneses, apesar de todos os contrastes culturais – ou por causa deles. Admiramos– quando não adotamos –suas tradições seculares e a forma como elas convivem harmoniosamente com a mais moderna tecnologia. Suas seriedade, disciplina e capacidade de inovação: se o Japão diz que vai fazer Olimpíada este ano, ninguém duvida; e basta o produto ser made in Japan para merecer confiança. Essa consideração é mútua, não à toa o Brasil tem a maior comunidade japonesa fora do Japão. Mas nem sempre foi assim: o brasileiro já achou que comer peixe cru era inconcebível e caçoou do jeito encabulado deles. Felizmente, a informação tem o poder de transformar preconceito em admiração. O mesmo está acontecendo em relação aos povos indígenas, por motivos parecidos. E eles ainda reservam muitas revelações. 

O Dia do Índio é uma ótima ocasião para relembrar essa construção de décadas. O movimento indígena brasileiro começa a se organizar em meados dos anos 1970, pressionado pela política expansionista agressiva da ditadura. Foi um ataque em massa na única região ainda praticamente intocada do território brasileiro e do mundo, a Amazônia. Essa mobilização ganha maturidade durante a Constituinte de 1988. Eles se fizeram ouvir sem intermediários, por meio de uma emenda popular assinada pela União das Nações Indígenas. O discurso de Ailton Krenak no Congresso entrou para a História, assim como nomes como Mário Juruna (cacique Xavante e o primeiro deputado federal indígena), Álvaro Tucano, Ângelo Kretã, Marçal de Souza, Raoni Mentuktire, Paulinho Paiakan e Domingos Veríssimo Terena. Os povos indígenas não só asseguraram o direito às suas terras, como à cidadania plena. 

Não é novidade para ninguém que esses direitos conquistados precisem ser defendidos até hoje. Isso só fortaleceu o movimento, que hoje mistura a experiência dos pioneiros com o conhecimento adquirido pelos mais jovens nas universidades. Hoje, os indígenas têm voz em importantes fóruns mundiais, como a ONU e a OEA, e a primeira mulher a representá-los na Câmara Federal, a deputada Joênia Wapichana (Rede). Estas três décadas também foram o período de criação, crescimento e amadurecimento da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), fundada no dia 19 de abril de 1989. Seu nascimento é resultado do processo de luta política dos povos indígenas pelo reconhecimento e exercício de seus direitos, em um cenário de transformações sociais e políticas ocorridas no Brasil após a assinatura da Constituição Cidadã de 1988. 

A Coiab é a maior organização indígena regional do Brasil. Ela é formada pela união de associações locais, federações regionais, organizações de mulheres, professores e estudantes indígenas. São 64 regiões de base espalhadas pelos nove estados da Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). Mas, espera! Ela é a maior, sim, mas é só uma das sete organizações regionais que compõem a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ainda tem a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), o Conselho do Povo Terena, a Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste), a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul), a Grande Assembléia do povo Guarani (AtyGuasu), e a Comissão Guarani Yvyrupa. Ufa! Tanta gente organizada e coordenada, que cobre aldeias de todos os estados do país e tem desempenhado um papel fundamental durante a pandemia da Covid-19 – alimentando milhares de famílias, reforçando barreiras sanitárias e distribuindo equipamentos de segurança para profissionais de saúde. 

A Apib foi criada em 2005, no segundo Acampamento Terra Livre (ATL). No ano passado, ganhou o Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos, concedido pelo Instituto de Estudos Políticos de Washington, e teve sua representatividade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Até 2020, o ATL costumava ser literalmente um grande acampamento nos gramados de Brasília, onde milhares de lideranças de todo o país – e até do exterior se reuniam uma vez ao ano. A pandemia fez o evento migrar para plataformas virtuais, mas os povos permanecem unidos, agora através das telas. E a programação desse ano está intensa, viu? Está durando mês inteiro! 

Os indígenas não precisaram que um teórico lhes dissesse que culturas são dinâmicas. Eles assimilam conhecimento sem nenhum preconceito e têm usado a tecnologia moderna a seu favor. A gente só teria a ganhar se pensasse assim também. O Dia do Índio também é um bom momento para frisar que a sabedoria deles sempre foi de vanguarda – e, hoje, mais necessária do que nunca.“Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”, canta Caetano Veloso em “Um índio”. Hoje, a ciência, a medicina e até o design buscam inspiração na natureza. Não existe tecnologia mais avançada. O segredo dos povos indígenas é se reconhecerem parte desse grande mecanismo.  

Em 2018, arqueólogos do Brasil e do Reino Unido descobriram vestígios de uma civilização amazônica. Em suas cidadelas, construídas séculos antes da chegada dos europeus, viviam até 1 milhão de pessoas. Restaram poucos resquícios, justamente porque era uma cultura biodegradável. Somente 3% dos ecossistemas do mundo permanecem intactos, segundo um estudo recém-divulgado da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Entre as áreas que conservam a biodiversidade há 500 anos, boa parte está em terras indígenas. Num mundo à beira do colapso, ninguém tem mais know-how em sobrevivência do que eles. Os povos indígenas não só mantiveram praticamente intacta a maior floresta tropical do mundo por milhares de anos, como ajudaram a cultivá-la, e resistiram a 500 anos de perseguições. Os indígenas guardam o segredo de nossa sobrevivência. 

#povosindígenas #povosoriginários #abrilindígena #DiadaResistênciaIndígena #apib #coiab #amazônia #demarcaçãojá #EmNomeDeQuê #foragarimpo #marcotemporal

Saiba mais: 

A programação do ATL 2021

Só 2% a 3% do planeta permanece ecologicamente intacto

Apenas 3% dos ecossistemas do mundo permanecem intactos, aponta estudo

Apenas 3% das áreas terrestres do planeta estão intactas, aponta estudo

Cacique Raoni manda recado a Joe Biden e pede que ignore Bolsonaro, presidente ruim

Globo exibe “Falas da Terra” com depoimentos de povos indígenas

Um estudo de 2018 revelou detalhes, até então desconhecidos, sobre culturas complexas que foram ofuscadas na História

Pelo direito de existir

Pelo direito de existir

“Decidimos não morrer”. Esse pacto silencioso, firmado pelos povos originários do Brasil há mais de 500 anos, ecoa forte com a chegada deste Abril Indígena, no ápice da pandemia. É um desafio e tanto, já que o governo tem se revelado o principal vetor do novo coronavírus – opinião compartilhada pelos jornais “Washington Post”, num editorial contundente, e o inglês “The Guardian” – e mais uma vez o Acampamento Terra Livre (ATL), que está chegando à sua 17ª edição, será realizado via internet.

Além da Covid-19, eles têm outras batalhas pela frente. Os ataques também vêm de invasores que levam a doença e a destruição às suas terras – com indisfarçável cumplicidade do Executivo –, da bancada ruralista do Congresso, do lobby das mineradoras. Não à toa, o tema escolhido pelo ATL 2021, que acontece até o próximo dia 30, foi “Nossa luta ainda é pela vida. Não é apenas um vírus”. E, como fica cada dia mais claro, essa luta não é só deles.

Já imaginaram se o SUS começasse a transmitir doenças ao invés de vacinar as pessoas? Pois é o que está acontecendo na Fundação Nacional do Índio (Funai). Criada em 1967 com o propósito de proteger e promover os direitos dos povos indígenas, a instituição vem servindo aos interesses de seus adversários. Logo em janeiro, sua diretoria colegiada publicou uma resolução estabelecendo novos critérios para a definição de identidade indígena – algo que nem a ditadura ousou fazer. Essas normas batem de frente com a Constituição, o Estatuto do Índio (decretado em 1973) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. As três instâncias reconhecem a autodeclaração como critério único. É fogo amigo que se chama.

Em fevereiro, a fundação se juntou ao Ibama, órgão que deveria zelar pela preservação do meio ambiente, para publicar uma instrução normativa que permitiria a exploração agrícola em territórios indígenas – inclusive para não indígenas. A medida é igualmente inconstitucional e escancarou seus desvios de função. Em 24 de março, o próprio Bolsonaro participou de uma ação típica da Funai de hoje. Ele se reuniu com o presidente da fundação, Marcelo Xavier, que é delegado da Polícia Federal, e com um madeireiro de nome João Gesse para aliciar lideranças Kayapó do sul do Pará.

O encontro não constou na agenda oficial da Presidência da República. Mas o que se sabe dele, a partir de relatos dos próprios indígenas e de uma gravação que vazou, é estarrecedor. Bolsonaro incitou os Kayapó a brigarem pela abertura de suas terras à exploração mineral e agropecuária e Xavier aconselhou Gesse a processar uma associação indígena contrária à abertura de seu território ao garimpo. Em fevereiro do ano passado, Bolsonaro mandou para o Congresso um projeto de lei que abre as terras indígenas para a atividade; no início de 2021, com o país em meio à catástrofe humanitária em que vivemos, o governo definiu a pauta como prioritária. E não mediu esforços para eleger os presidentes da Câmara Federal e do Senado para que ela entre em votação o quanto antes. Mesmo proibido, o garimpo abriu novas frentes e pôs abaixo 330 hectares de floresta no território dos Kayapó em 2019, o dobro do ano anterior.

Engana-se, porém, quem acredita que os indígenas estão esperando soluções caírem do céu enquanto são obrigados a se manter em isolamento social. O ATL virtual do ano passado os deixou ainda mais conectados e ativos; tanto que a duração do evento passou de uma semana, quando presencial, para um mês, agora que é online. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) vem fortalecendo e aprimorando suas ações e estratégias. A entidade, que teve sua representatividade oficialmente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, quando este acatou e deu ganho de causa à sua Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ajuizada contra do governo federal, criou o plano Emergência Indígena. A entidade está fortalecendo barreiras sanitárias em centenas de territórios, vem alimentando mais de 10 mil famílias e distribuiu mais de 300 mil equipamentos de proteção a equipes de saúde indígena em todo o país – mais uma obrigação negligenciada pelo governo.

O coronavírus encontrou na destruição da natureza, promovida pelo homem, o ambiente ideal para proliferar. No Brasil, ainda tem o governo como aliado. A cada dia batemos recordes de mortos. Acompanhar o noticiário é para os fortes. Quando seguiremos o exemplo dos povos indígenas e decidiremos que não vamos morrer também?

#AbrilIndigena #Apib #PovosIndigenas #Kayapó #ATL #Covid #Coronavirus #Amazônia

Saiba mais:

A programação do ATL 2021

Funai muda critérios para definir quem é índio no País

Ação da Funai sobre identidade indígena retoma plano frustrado da ditadura

Funai e Ibama abrem espaço para produção agrícola entrar em terra indígena

Em reunião, Bolsonaro e Funai incentivam indígenas a pedir por agronegócio

Sentença confirma suspensão de portaria da Funai e protege terra indígena no nordeste do Pará contra grilagem

O que passou na “boiada” de Ricardo Salles durante a pandemia?

Um novo jeito de consumir

Um novo jeito de consumir

Consumir é como arrumar o armário: cada um faz de um jeito. Todo mundo tem os seus motivos para, diante das gôndolas, escolher um achocolatado e não outro. A novidade é que, se antes estes critérios estavam limitados a preço, qualidade e aspectos subjetivos, vem ganhando importância o chamado consumo consciente. Queremos saber se a empresa tem fornecedores que não poluem, não desmatam e sigam outras regrinhas que nos parecem básicas, mas que muitos ainda descumprem. Afinal, se a gente pode escolher na hora de comprar, por que não ficar com o que é melhor para nós e para o planeta?

A questão é que tem sido cada vez mais difícil distinguir o que é produzido de forma limpa de bens que deixam um rastro de destruição até chegar ao carrinho. A prática de anunciar como sustentáveis produtos que na verdade não são é tão comum que ganhou até um apelido: greenwashing. Não sei você, mas eu compraria um desinfetante com este nome. Em 2019, um levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) com mais de 500 itens, como produtos de limpeza e cosméticos, indicou que um terço deles usava deste expediente para tentar vender gato por lebre. Em outros casos, o verde sai no vermelho para que o balanço feche no azul. Uma investigação do site Repórter Brasil mostrou que frigoríficos ligados ao desmatamento na Amazônia abastecem hoje algumas das maiores redes de supermercado do país. É o que o Greenpeace chamou apropriadamente em uma de suas campanhas de carne ao molho madeira. O famoso “barato que sai caro”, como diriam os mais velhos, numa transação em que quem fica vendida é a natureza.

Mas “nada deve parecer impossível de mudar”, como escreveu o dramaturgo Bertold Brecht, na frase que hoje ilustra camisetas por aí. Uma análise da fabricante de embalagens TetraPak apontou que recipientes mais limpos, produção sustentável e redução do desperdício estão entre as principais preocupações dos brasileiros na hora de gastar. Por isso, é inevitável que as empresas comecem a prestar mais atenção a estas questões, já que – como elas mesmas sempre disseram – o cliente tem sempre razão. E, neste caso, as inquietações dos consumidores fazem especial sentido, se considerarmos o impacto que o consumo tem hoje no meio ambiente e não é mais segredo para ninguém. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública, o Brasil produz 1,5 milhão de toneladas de lixo por semana, por exemplo. É um volume equivalente a sete navios de cruzeiro e cresceu quase 20% nos últimos 10 anos. Sejamos justos: o problema é global. De acordo com a Organização das Nações Unidas, um terço dos alimentos produzidos para consumo humano são jogados fora. É 1,3 bilhão de tonelada de alimentos por ano. Em nome de quê?

Ao escutar estes dados, muitos fazem ouvido de mercador. Mas os interessados em mudar este jogo podem se inspirar nos povos tradicionais, uma vez que o respeito ao planeta inerente deste novo jeito de consumir é muito parecido com a forma pela qual indígenas e quilombolas se relacionam com os locais onde vivem. Para muitos deles, a natureza é como alguém da família e que, por isso, merece respeito. Além disso, é comum que deem mais valor a princípios como a coletividade. O resultado é um outro sistema de trocas, em que o principal não é que só alguns levem vantagem, mas que tudo e que todos saiam ganhando. É mais do que saber de onde vem e para onde vai. É pôr para trabalhar o que o filósofo Dénètem Touam Bona chama de “inteligência do sensível”, a capacidade de estabelecer conexões “com o conjunto de tudo que vibra”. Enxergar o meio ambiente não como um supermercado, mas como um organismo vivo do qual fazemos parte.

O Dia do Consumidor é comemorado em 15 de março. É mais interessante ver a data como uma oportunidade de refletir do que uma chance de trocar de celular ou renovar o guarda-roupa. Neste dia, em 1962, John Kennedy enviou ao Congresso Americano um documento com os direitos do consumidor. Ele incluía estar seguro e informado ao consumir, assim como poder escolher e ser ouvido em suas reclamações. “Consumidores, por definição, somos todos nós”, escreveu o presidente americano. “Compartilhamos a obrigação de proteger o interesse comum em todas as decisões que tomamos”, acrescentou ele no texto, numa regra que vale tanto para compra e venda quanto para a forma como escolhemos existir no planeta. Seja no caso do consumo, seja em relação ao meio ambiente, é preciso ficar de olho para que ninguém leve vantagem em função do prejuízo dos outros.

#Consumo #DiaDoConsumidor #Greenwashing #Lixo #MeioAmbiente #PovosTradicionais

Leia mais:

Idec – Dia do Consumidor: 15 direitos para dia 15

Harvard Business Review – How Competitive Forces Shape Strategy

Idec – Mentira Verde

Tetra Pak – Em meio à pandemia, 62% dos brasileiros acreditam que ser saudável é se manter seguro

Abrelpe – Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2020

Cult – As vozes das mulheres quilombolas

The American Presidency Project – Special Message to the Congress on Protecting the Consumer Interest

Uma nova luta

Uma nova luta

Sobre a pandemia de Covid-19, quilombolas e indígenas podem dizer: “de onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo”. Cravada há mais de 50 anos pelo humorista Barão de Itararé, a máxima retrata bem o papelão do Ministério da Saúde desde que declarou situação pandêmica no país, em 18 de março de 2020. O quadro de descaso obrigou a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a exemplo do que haviam feito os indígenas, a entrar no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra o governo. O objetivo é obrigá-lo a cumprir seu dever constitucional de protegê-los do coronavírus. Até hoje, o Executivo não tomou nenhuma medida ou apresentou um planejamento para evitar a propagação da doença nesses territórios ou, pelo menos, amenizar seus efeitos. E os quilombolas são especialmente vulneráveis.

A taxa de mortalidade entre eles é maior (3,6%) que a da população em geral (3%). Editada em julho do ano passado, a Lei 14.021 até estipulava medidas de apoio às comunidades quilombolas – mas não saiu do papel. Diante da negligência do poder público, a Conaq chamou para si a responsabilidade de monitorar casos de Covid-19 nas comunidades. Até o dia 17/2, a entidade registrava 4.914 casos confirmados e 204 mortes. Se estar isolado era uma vantagem no passado, hoje isso se tornou um obstáculo. Segundo o IBGE, existem hoje pelo menos 5.972 localidades quilombolas, a maior parte localizada em áreas de difícil acesso e com população idosa numerosa. Somente 5,34% desses territórios foram titulados – ou seja, a imensa maioria não tem pleno acesso a serviços públicos. Mais de 80% dos quilombos não têm rede de esgoto e de água encanada adequadas. Além disso, estão expostos aos problemas crônicos do país, como qualquer outra comunidade: entre os 1.672 municípios com presença quilombola, 1.485 (89%) não têm leitos de UTI.

Criados para enfrentar a escravidão, os quilombos têm outros desafios nesta nova luta. Negar o racismo e renegar a herança africana brasileira são especialidades de Sérgio Camargo, atual presidente da Fundação Palmares. Seria apenas mais uma vergonha em pleno século XXI se “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira” não fosse o principal objetivo do órgão que ele preside, também responsável por certificar territórios quilombolas. O Projeto de Lei Orçamentária Anual 2021 prevê uma redução de 90% na verba que seria destinada à regularização de territórios e o programa de enfrentamento e combate ao racismo foi excluído do Plano Plurianual 2020-2024. Em nome de quê?

No Brasil, os negros são a maioria tratada como minoria; já os quilombolas são tratados como a minoria da minoria. Além do racismo estrutural, eles enfrentam o racismo ambiental. O fato de ocuparem terras é visto pelo Estado brasileiro como entrave ao desenvolvimento. A ponto de, no pico da pandemia, tentarem remover 800 famílias quilombolas no Maranhão para ampliar a Base Espacial de Alcântara. Já pensou se fizessem o mesmo num condomínio de luxo de Rio ou São Paulo? A diferença na repercussão seria do tamanho do nosso preconceito. No Amazonas, estado onde a pandemia está fora de controle, só há oito comunidades certificadas pela Fundação Palmares; já o IBGE calcula que existam muitas mais. Pelas contas do instituto, o município amazonense de Barreirinha é o que abriga mais localidades quilombolas do país, 167. É uma matemática perversa, em que o resultado mais correto vem de onde há menos poder para se promover as maiores mudanças.

Os quilombolas são guardiões de uma cultura única, com raízes africanas profundas, mas que nasceu no Brasil. Em suas comunidades, preservam o meio ambiente e são grandes produtores de alimentos orgânicos. Um estudo divulgado em 2011 pela Comissão Pró-Índio de São Paulo apontou a desaceleração do desmatamento em áreas da Amazônia com comunidades do tipo, algo valioso em um tempo no qual interferências na natureza tendem a se refletir em mudanças climáticas cada vez mais radicais. Em vez de ressentimento, os quilombos sempre foram sinônimo de resistência e só nos pedem uma coisa: respeito. Será que é muito ou somos capazes de dar isso a eles?

#PovosTradicionais #Quilombolas #ADPFQuilombola #Covid19 #STF #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

Saiba mais:

O Globo – Fachin vota pela proteção de territórios quilombolas

O Globo – Covid-19: STF julga se União deve oferecer cuidados específicos a quilombolas

Yahoo Brasil – STF começa a julgar falta de assistência do governo Bolsonaro aos quilombolas na pandemia

Brasil de Fato – STF julga auxílio a quilombolas: relator vota a favor; entidades acham pouco

CONAQ

Fundação Palmares