Pariwat, o nome que nós, Munduruku, usamos para chamar o homem branco, também significa inimigo. Não queríamos que fosse assim. Os livros de História registram que o primeiro contato entre nós aconteceu em 1742. O encontro não foi amistoso e, desde então, lutamos para nos defender. Como somos valentes, o invasor firmou um acordo de paz conosco ainda no fim daquele século. Mas ele nunca foi cumprido, como vários seguintes. Agora, corremos o risco de ser atropelados pela EF-170, a Ferrogrão.
O Pariwat também se sentia nosso dono. Isso só começou a mudar a partir de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. Nela, garantimos nossos direitos territoriais e o de praticarmos nossos costumes e tradições. Além disso, foi estabelecido um prazo de cinco anos para que todas as terras indígenas estivessem demarcadas. Porém, a Sawre Ba’pim, que seria diretamente impactada pela ferrovia, só foi reconhecida em fevereiro deste ano, pela primeira indígena presidente da Funai, Joênia Wapichana.
A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) nos assegura o direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado em caso de obras em nossas terras. Em 2014 criamos o Protocolo de Consulta Munduruku, porque nenhum de nós toma sozinho uma decisão que diga respeito a todos: cada morador de nossas 155 aldeias tem direito a opinar. Apesar disso, no ano seguinte inauguraram o Complexo Hidrelétrico de Teles Pires, num importante afluente do Tapajós, contra a nossa vontade.
As barragens do monstrengo fizeram submergir a corredeira das Sete Quedas, um lugar sagrado para nós. Lá viviam a Mãe dos Peixes, o músico Karupi e os espíritos de nossos antepassados. Já imaginaram se transformassem a Basílica de Nossa Senhora Aparecida num shopping center? A área inundada também servia de local para a desova de peixes como pintados, pacus, pirararas e matrinxãs. Os pajés falam com nossos ancestrais, mas quem consulta as árvores e os bichos? Nós, indígenas, fazemos parte da floresta, do seu corpo, e ela faz parte de nós. É o nosso coração.
A Ferrogrão ligaria a cidade de Sinop, em Mato Grosso, ao porto de Miritituba, no Pará. Ela serviria apenas para escoamento de soja, que depois seguiria em barcaças gigantes pelo Tapajós, numa hidrovia. Para a construção da ferrovia, seria preciso alterar os limites do Parque Nacional Jamanxim, que é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. A Lei 13.452 foi sancionada em 2017 especialmente para isso. Calcula-se que 2 mil km² de mata seriam destruídos de início. Mais duas Florestas Nacionais serão impactadas, além do território Sawre Muybu, as reservas Praia do índio e Praia do Mangue, o próprio rio e os povos Kayapó e Panará. O desmatamento impediria o Brasil de cumprir seus compromissos ambientais internacionais. E isso seria só o começo.
A estrada de ferro pode ser o fim da linha para a Amazônia. Seus 993 km de trilhos abririam caminho para toda sorte de invasor, como grileiros, traficantes, garimpeiros e madeireiros, que levariam mais insegurança e violência aos que vivem na floresta. E a Lei 13.452 pode servir de precedente para outros empreendimentos. Se construída, a Ferrogrão trará a reboque a necessidade de novos portos, hidrovias e rodovias, uma infraestrutura que exigiria mais energia. A desculpa perfeita para tirar do papel a Hidrelétrica de São Luiz, no Tapajós, o último afluente da margem direita do Amazonas sem barragens. Além da locomotiva, precisamos nos preocupar com os vagões.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes acolheu a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6553 em março de 2021 e suspendeu os efeitos da Lei 13.452. Desde então, o caso aguarda julgamento. A presidente Rosa Weber agendou a votação em plenário para 31 de maio. Falar da importância da floresta – e dos povos que vivem nela – para o planeta é chover no molhado. Este reconhecimento é internacional: fomos em abril aos EUA buscar o Prêmio Goldman de Meio Ambiente 2023, o mais importante do mundo. Não deixem o Pariwat arrancar o coração Munduruku. Sejam nossos Okipit: irmãos.
*Alessandra Korap é ativista do povo Munduruku e, em 2023, ganhou o Prêmio Goldman de Meio Ambiente;
*Juarez Saw Munduruku é cacique da aldeia Sawre Muybu, no Pará
Os primeiros estudos sobre o potencial hidrelétrico da Bacia do Tapajós datam de 1986, no governo José Sarney. Em 6 de novembro de 2009, em carta dirigida ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o povo Munduruku rechaçou completamente a ideia de construir barragens no rio: “Onde vamos morar? No fundo do rio ou em cima da árvore? Aximãyugu oceju tibibe ocedop am. Nem wasuyu, taweyugu dak taypa jeje ocedop am”. (“Não somos peixes para morar no fundo do rio, nem pássaros, nem macacos para morar nos galhos das árvores”). Os Munduruku se autodenominam Wuy jugu, “Nós, as pessoas”.
E esse espírito continua vivo: “A gente não negocia território, porque a gente não negocia a vida de nossos filhos e nem de nossos antepassados”, diz Alessandra Korap, vencedora do Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, em 2020. A liderança Munduruku lembrou que o problema não é só de seu povo: “Todos que vivem na Bacia do Tapajós podem ser prejudicados. O que aconteceu em Alter do Chão foi causado pelo garimpo no Jamanxim”, conta ela, referindo-se à lama que turvou as águas do balneário do Tapajós, vinda de um afluente a 300 km de distância, no fim do mês passado.
Mais de 15 mil Munduruku vivem em cerca de cem aldeias na região que já foi conhecida como Mundurukânia. Eles têm o direito constitucional de preservar o seu modo de vida tradicional, e este é totalmente baseado na ordem natural do rio. “Parece que somos só nós que bebemos água”, provoca Alessandra. De que adianta ter a maior reserva de água doce do planeta, o seu bem mais valioso, e tratá-la como esgoto? É ano de eleição. Por que nós, todas as pessoas, não exigimos de nossos candidatos à Presidência que se comprometam a enterrar de vez esse projeto? Tapajós livre! Cada eleitor é uma gota e cada gota conta.
A ideia de transformar a Amazônia numa central de energia vem dos tempos da ditadura. De lá para cá ela assombra a população que vive às margens de seus rios – e nenhum governo do pós-redemocratização a exorcizou definitivamente. Nem mesmo o cadáver insepulto de Belo Monte foi capaz. No fim de janeiro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) deu mais uma colher de chá de dois anos à Eletrobras, para que apresente novos estudos de viabilidade técnica e econômica para a construção de três grandes hidrelétricas na bacia do Tapajós. Só que esse prazo vem sendo sistematicamente prorrogado desde 2009, pois os anteriores sempre são reprovados. É como um pênalti que o juiz manda repetir até a bola entrar.
Em nome de quê? Ou de quem? O Rio Tapajós é o último grande afluente da margem direita do Amazonas a correr livre e o seu entorno, uma das áreas mais preservadas – e, portanto, valiosas – da Amazônia. Recentemente, outro elemento foi adicionado à trama: também no fim de janeiro, o Tribunal de Contas da União (TCU) sinalizou que deve dar sua bênção à privatização da Eletrobras. Assim não há como espantar essa pulga de trás da orelha.
De acordo com a – até segunda ordem – estatal, a Usina de Jamanxim teria uma potência de 881 mil kW; a de Cachoeira do Caí, 802 mil kW; e a de Cachoeira dos Patos, 528 mil kW. As três juntas atenderiam 5,5 milhões de famílias. A capacidade alardeada de Belo Monte é de 11.233 MW por mês, o suficiente para abastecer 60 milhões de pessoas; mas, no mundo real, a média mensal é de 4.571 MW. Quem compraria este carro usado?
13 \13\America/Sao_Paulo julho \13\America/Sao_Paulo 2021 | Amazônia, Garimpo
Disseram “a Amazonia vale ouro” e alguns entenderam o recado de um jeito completamente errado. Pelo menos, é o que indica o relatório “legalidade da produção de ouro no Brasil”, produzido pela UFMG em parceria com o Ministério Público Federal (MPF). O documento aponta que 90% do mineral explorado ilegalmente no país entre 2019 e 2020 saiu da floresta, gerando um prejuízo socioambiental de US$ 1,7 bilhão. A Amazônia vale muito sim, mas de pé. Já o ouro que sai dela, em vez de lucro, só gera dor de cabeça. O problema é tão grande que o MPF tomou uma medida radical: pediu à Justiça a suspensão de todas as permissões para extração, comércio e exportação de ouro no Sudoeste do Pará. Há uma corrida em curso no coração da maior floresta tropical do planeta. De um lado, garimpeiros tentando enriquecer a qualquer custo. De outro, indígenas dispostos a preservar a natureza no local que lhes serve de casa.
Responda rápido: qual é o estado que mais produz ouro no país? Minas Gerais, é claro. Em segundo lugar, vem o Mato Grosso e, em terceiro, o Pará. Acontece que, de acordo com o levantamento, enquanto Minas e Mato Grosso mantiveram produção estável no período analisado, a mineração disparou nos últimos 2 anos no Pará. Lá, o volume produzido saltou de 9,7 toneladas em 2019 para 17,2 em 2020. Esta corrida do ouro não aconteceu sem alguns atropelos. No caso em questão, sem que riquezas tenham deixado a floresta passando longe controles do Estado. Só na Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, cerca de 9 toneladas de ouro foram extraídas de forma irregular entre 2019 e 2020. É o dobro do volume verificado na APA Reentrâncias Maranhenses, segunda colocada neste ranking. Porém, o principal aqui é o seguinte: a APA do Tapajós não fica numa região qualquer.
Noventa e nove por cento da área de 2 milhões de hectares da APA do Tapajós estão localizados nos municípios paraenses de Itaituba e Jacaracanga. Colada à APA, está a Terra Indígena (TI) Munduruku, com sua população de mais 6000 pessoas, sua pequena área de 2382 hectares e crescentes taxas de desmatamento desde 2013. Naquele ano, foram 77 hectares de floresta derrubada. Em 2019, 1824. Há mais de 4 milênios na região, os indígenas ultimamente andam assustados com as retroescavadeiras que destroem rios e igarapés à procura de ouro e vomitam toneladas de mercúrio e outros resíduos nos cursos d’água nos quais se banharam seus antepassados. A situação tem sido denunciada por meio de porta-vozes que veem este presente apagar o futuro – como Bheka Munduruku, de 17 anos. “Queremos convencer todo o mundo — inclusive os cabeças-duras — da importância de preservar a floresta e os seus rios”, afirmou ela em um artigo para Folha de São Paulo. Não se trata de arrogância adolescente, mas de um grito de alerta maduro e consciente. Esta caça ao tesouro não vai nos levar a nada. Ou melhor, até vai – mas a um lugar que não queremos chegar.
Como nada nunca é tão ruim que não possa piorar, o Governo Federal parece ter entrado nesta briga – só que do lado errado. Em fevereiro do ano passado, Bolsonaro enviou ao Congresso o Projeto de Lei 191, que pode facilitar a mineração em terras indígenas. O texto ainda não foi analisado por deputados e senadores, mas o estudo da UFMG e do MPF estima em US$ 5 bilhões o prejuízo caso a ideia do presidente se torne de lei. O valor leva em conta o impacto da medida nos chamados serviços ecossistêmicos, que consistem em chuvas, temperaturas amenas e outros favores que a natureza hoje nos presta de graça.
Em 05 de agosto de 2020, o então ministro do meio ambiente esteve em Jacareacanga. Em vez de criticar a destruição da floresta, se reuniu com garimpeiros que queriam a suspensão das operações do Ibama na região. Não satisfeito, Ricardo Salles ainda usou um avião da FAB para levar sete deles a uma nova reunião em Brasília no dia seguinte. Para os indígenas, a situação é um deus-nos-acuda. Em 25 de maio, a Polícia Federal realizou em Itaituba a Operação Mundurukânia 1, que teve como alvo os garimpeiros. Eles reagiram e puseram fogo na casa de Maria Leusa Munduruku. “Chegaram com combustível naquelas garrafas de dois litros de refrigerante, armados, atirando, no meio de criança”, lembrou depois a liderança indígena. Um mês após o episódio, a Câmara aprovou outro PL, o 490, que também pode facilitar o garimpo em TIs e depende agora da aprovação do Senado para entrar em vigor.
Pelas contas do MPF, cada grama de ouro que sai da Amazônia de forma ilegal gera um prejuízo de até R$ 3 mil. O cálculo considera o valor necessário para recuperar as áreas afetadas. Para o período entre 2019 e 2020, o custo com este tipo de atividade chegou a R$ 20 bilhões – contra R$ 8,7 bilhões gerados pela mineração legal. É uma conta que não fecha, mas que tem solução. O aumento da fiscalização, a atribuição de responsabilidade a quem compra e o cancelamento de autorizações para mineração em TIs são alguns dos caminhos apontados pelo estudo do MPF e da UFMG para isso. Resta saber quem cruzará a primeiro a reta de chegada: o bom senso ou a ganância. Fique à vontade para escolher em que torcida você prefere estar.
O governo nega o desmatamento na Amazônia, o fogo no Pantanal, a crise econômica, as mudanças climáticas, o racismo estrutural e até mesmo a gravidade da pandemia do novo coronavírus. Esse negacionismo revela uma grande verdade: o que não existe no Brasil é governo. O país se move a iniciativas da sociedade. Só sabemos que mais de 170 mil brasileiros perderam a vida para a Covid-19 graças ao consórcio de veículos de imprensa; e quantos dos nossos se foram, porque a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) faz uma contagem independente, que se tornou uma referência reconhecida. Nas periferias das grades cidades são os movimentos sociais que fazem o trabalho do poder público. Enquanto isso, o Ministério da Saúde deixa estragar num armazém qualquer quase sete milhões de testes, que poderiam ter salvado milhares de pessoas.
Até 30 de novembro, 15 Munduruku haviam morrido de Covid-19. Não foram muitos mais porque o convívio forçado de mais de 500 anos com organismos invasores nos fez criar nossos próprios protocolos. Mas estamos indefesos contra outro mal, ainda mais perigoso e duradouro: a contaminação por mercúrio, causada pelo garimpo ilegal. Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o WWF-Brasil revelou que todos nós, Munduruku que vivemos às margens do Rio Tapajós, carregamos o metal no sangue. Esta tragédia começa bem antes deste governo, é consequência de 70 anos de atividade ilegal, é verdade; mas sua negação em enfrentar o problema – ou ao menos reconhecer sua existência – serve de incentivo aos que invadem os territórios onde vivemos. Quando quebra um termômetro, o mercúrio se espalha. Funciona assim no momento em que o Executivo acena para a regulamentação da mineração em terras indígenas.
O metal está no peixe que comemos, na água que consumimos, e afeta principalmente os rins, o fígado, o aparelho digestivo e o sistema nervoso central. Ainda que nos afastássemos do Tapajós, ele continuaria se espalhando por gerações, pois também contamina o leite materno. Uma dor que passa de mãe para filha. Foram detectados em amostras de cabelo níveis até quatro vezes maiores que os permitidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive em crianças pequenas. Na Aldeia Sawré Aboy, nove em cada dez pessoas avaliadas apresentaram níveis de mercúrio acima do considerado seguro.
O Tapajós tem quase dois mil quilômetros de comprimento. Nasce no Mato Grosso, da junção de dois outros grandes rios, o Juruena e o Teles Pires, e atravessa o Pará até desembocar no Amazonas. Em sua foz fica Santarém, a segunda maior cidade paraense. Portanto, o problema não é só nosso. E também não se resume ao Tapajós: o drama dos Yanomâmi é conhecido mundialmente. Em 2015, cansamos de esperar o governo cumprisse o seu dever e nós mesmos demarcamos, usando dados da Funai, os limites da Terra Indígena Sawré Muybu, onde foi realizada a pesquisa da Fiocruz e da WWR-Brasil. Para enfrentar o garimpo ilegal, precisamos de toda ajuda possível. Se o governo se finge de morto, a sociedade civil precisa se mostrar mais viva do que nunca.
25 \25\America/Sao_Paulo fevereiro \25\America/Sao_Paulo 2016 | Direitos indígenas
“Há direitos diferentes para os diferentes e essa é a melhor maneira de se fazer justiça”. O antropólogo Antônio Carlos Souza Lima fala da importância dos direitos assegurados aos povos indígenas pela Constituição de 1988 e a Convenção 169 da OIT.