Deu praia de novo na Sibéria; ou seja, o tempo fechou de vez. Já chegou a fazer 68 abaixo de zero em Verkhoyansk, onde os termômetros marcaram 38°C no último sábado (20/6). Um recorde medonho. Tipo neve no sertão. A cidade russa, que fica dentro do Círculo Polar Ártico, vem registrando temperaturas médias de 10°C a 14°C acima do normal para esta época do ano. O ano de 2020 caminha para ser o segundo mais quente da história, ficando atrás somente de 2016 – mas naquele ano teve El Niño para botar lenha na fogueira e este ano ele não deu as caras. América do Sul, a Ásia e a Europa tiveram o período de janeiro a maio mais quente de suas histórias. A Itália tenta salvar a geleira Presena, onde funciona uma movimentada estação de esqui, cobrindo-a com um lençol térmico de 100 mil m². Ela já perdeu mais de 1/3 de seu volume desde 1993. A medida desesperada revela que, em vez de tomarmos medidas realmente eficazes contra as mudanças climáticas, temos enxugando gelo. Daqui a pouco chegamos ao ponto de escolher entre a frigideira e o fogo.
Enquanto penam no Hemisfério Norte, aqui no Sul temos vivido tempos brandos, de temperaturas amenas. Não fosse o coronavírus, uma praga global, nem nos lembraríamos que dividimos o mesmo planeta. Mas esta situação, relativamente confortável, tende a esquentar em breve. Mesmo que o Brasil não sofresse as consequências diretas do desequilíbrio climático e ainda que este não trouxesse o risco da explosão de novas pandemias, o seu bolso doeria, e muito. Ninguém quer pagar sozinho o preço da luta contra as mudanças climáticas.
O país já havia levado uma prensa federal quando o desmatamento disparou no início dos anos 2000. O movimento resultou na criação, em 2006, da chamada moratória da soja. Graças ao pacto, firmado entre governos, agronegócio e organizações ambientais, deixou-se de comercializar soja produzida em regiões desmatadas. Este ano já ganhamos nosso primeiro cartão vermelho: em maio, o Banco Central da Noruega excluiu a mineradora Vale e a estatal de energia Eletrobras do maior fundo soberano do mundo, por violações de direitos humanos e danos ambientais.
Nesta segunda-feira (22/6), os últimos e alarmantes dados sobre desmatamento na floresta amazônica levou um grupo de investidores internacionais, que administra US$ 3,75 trilhões, a enviar uma carta aberta a embaixadas brasileiras em oito países. O documento, assinado por 29 investidores institucionais de Noruega, Suécia, Dinamarca, Reino Unido, França, Holanda, Japão, EUA e Brasil fala, sem papas na língua, em “desmantelamento de políticas ambientais e de direitos humanos” e vai além: “É com grande preocupação que observamos a tendência de crescimento do desmatamento no Brasil. (…) Estamos preocupados com o impacto financeiro que o desmatamento e a violação dos direitos de povos indígenas podem ter sobre nossos clientes e companhias investidas, por potencialmente elevarem os riscos de reputação, operacional e regulatório”.
Ninguém quer ficar com nota vermelha no boletim do tempo. O economês vai ganhar novos termos e palavras e a política ambiental do governo não se enquadra nesse novo vocabulário. Se a boiada passar, como quer o ministro do Meio Ambiente, a gente corre o risco de não vender nem mais um boi sequer.
“Galinha que tem nome não vai pra panela”. Regina Casé recorreu ao dito popular para lembrar a importância da educação para a preservação da natureza. “Eu era míope, enxergava a mata como uma mancha verde. Aos poucos fui ajustando o grau de meus óculos e comecei a identificar as árvores por seus nomes e me apaixonar por elas. Acho que isso devia ser ensinado às crianças nas escolas. Se a criança sabe o nome de uma árvore, se apaixona por ela, não vai querer que a cortem”, completou a atriz, que ao lado do marido e cineasta Estêvão Ciavatta, criou há 19 anos o programa de TV “Um pé de quê?”. A dupla participou da live sobre biodiversidade com o arquiteto, urbanista Miguel Pinto Guimarães, presidente do conselho de Uma Gota no Oceano. A conversa encerrou a programação oficial da Semana do Meio Ambiente no Brasil, organizada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que nos convidou para participar.
A conversa foi mais uma oportunidade de refletir o momento atual em busca de reflexões que ajudem a conscientizar a população, a gerar solidariedade e a mudar a relação do ser humano com o meio ambiente. Mas do que nunca, trocar ideias é preciso. “As florestas têm 400 milhões de anos. Se não fossem elas, a gente não estaria aqui”, refletiu Estêvão. No ar desde 2001, “Um Pé de Quê?” roda o Brasil e o mundo – teve episódio gravado também em Moçambique, Japão e França – identificando e contando a história das mais diferentes espécies de árvores. Até agora foram 180 episódios. Regina aproxima o espectador às árvores da cultura, da História, da tecnologia e da sua relação com o homem. Em 2007 ele se tornou o primeiro programa de TV carbono zero.
O papo começou pela árvore símbolo do país, o ipê-amarelo, e suas versões roxo, branco e verde. É uma árvore que ocorre no Brasil inteiro, tem do Rio Grande do Sul à Amazônia”, lembrou Estêvão. O ipê também é símbolo de uma das maiores ameaças às nossas florestas, a exploração ilegal de madeira. “O ipê hoje é a árvore mais valiosa da Floresta Amazônica. É muito usada em construção. Um caminhão com toras de ipê vale R$ 200 mil. E isso que abre o caminho para a devastação, pois só os exploradores de ipê têm dinheiro entrar mata adentro. Seria o momento de a gente parar de usar essa madeira em nossas obras, de fazer campanha para os gringos pararem de comprar ipê brasileiro, porque isso está levando nossas florestas ao fim”, explicou Estêvão, que também é diretor do documentário “Amazônia Sociedade Anônima”.
Os sucessivos recordes de desmatamento que vêm se sucedendo desde o início do ano passado e a sua importância para o planeta põe a maior floresta tropical do mundo em evidência, mas ela não é o único bioma brasileiro em risco. “Só restaram 10% ou 12% de Mata Atlântica. É uma barbaridade imaginar que depois de se estabilizar o seu desmatamento isso a duras penas, ele volte a crescer agora”, lembrou Miguel. Para Regina, ela está também intimamente ligada à nossa cultura: “Cada som que vem dela sugere uma música, uma dança, um batuque. E cada gosto, uma comida diferente”.
Para a atriz, a as florestas também têm muito a nos ensinar. “Na Mata Atlântica tem espécies completamente convivendo harmonicamente. Isto deveria servir de lição para a gente. Nada melhor também do que uma árvore para dar noção de processo. Você planta uma e as pessoas dizem, ‘mas você nem vai vê-la na sua plenitude’. E eu digo ‘mas eu já peguei várias prontinhas, que não fui eu quem plantou’. Então temos a noção de que você não precisa fazer as coisas só para si. Alguém fez para você e você pode fazer para alguém”.
Num bioma aparentemente bem menos exuberante, Regina aprendeu outra lição. A atriz rodou o filme “Eu Tu Eles”, de Andrucha Waddington, nos anos 1990, quando passou uma boa temporada no sertão nordestino. E descobriu que a vida transbordava, nos mínimos detalhes, naquele cenário com aparência estéril. “Todo mundo acha que tem a gente e as árvores. Que o meio ambiente é um lugar longe pra caramba, que fica depois da Amazônia, enquanto ele está o tempo todo debaixo de nosso nariz, no ar que você respira, na água que a gente bebe. Na Caatinga a gente percebe mais isso”.
“Pero Vaz de Caminha escreveu em sua carta que aqui se plantando tudo dá. E é o que temos feito passado o trator e plantando o mesmo que se planta na Península Ibérica, destruindo nossa biodiversidade”, alertou Miguel. Só na Amazônia são 450 mil km de pasto inutilizado e apenas 45 mil km de plantação de grãos. “Ou seja, dá para quadruplicar a produção brasileira sem ter que desmatar mais nada. E o Cerrado é o manancial de águas não só de rios do Sudeste, como também da Amazônia. E A Floresta Amazônica produz 20 bilhões de toneladas de água por dia. Sem água não há agronegócio”.
“O Brasil não perde uma oportunidade de perder uma oportunidade”, dizia o economista Roberto Campos. Nossas reservas de água e nossa biodiversidade nos dariam uma imensa vantagem na retomada da economia no pós-pandemia, mas não estamos sabendo aproveitá-la. “Há um potencial de biodiversidade inexplorado que só o Brasil tem. Essa biodiversidade pode nos livrar dos coronavírus que vêm por aí. E estamos jogando tudo isso fora. Por isso temos que parar de dizer só ‘não desmata’ e mostrar ‘olha só a riqueza que a gente tem aqui’, para ver se todos entendem”, disse Regina. Ela lembrou também que tão importante quando essa diversidade biológica é nossa diversidade cultural, manifestada desde a ciência que sai das Universidades das grandes cidades à sabedoria ancestral dos povos tradicionais: “As diferenças são combustível de riqueza”.
“O futuro do mundo vai passar pela bioeconomia. Os países que vão sair na frente depois da pandemia são os que abraçarem essa economia verde. O escritor austríaco Stefan Zweig dizia que o Brasil é o país do futuro. E o futuro está batendo à nossa porta”, lembrou Miguel. A primeira medição de desmatamento da Amazônia feita pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) é de 1975. Naquela época, só 0,5% da Amazônia tinha sido desmatada; hoje, essa porcentagem é de 19%. Como a ilegalidade toma conta de boa parte dos processos produtivos da região, a população local sequer desfruta da riqueza que é extraída de lá. “O resultado são as cidades com os piores IDHs do Brasil, que contribuem com pouquíssimo para o PIB nacional”, disse Estêvão. O diretor lembrou uma história que deveria nos guiar em nossa relação com o meio ambiente: “O cacique Juarez Munduruku me disse certa vez que na sua língua não existe a palavra árvore. Cada ser vivo tem o seu nome”. Árvore que tem nome não vira cabo de panela.
Para a ex-ministra do Meio Ambiente e ex-senadora Marina Silva, sustentabilidade não deve ser encarada apenas uma maneira da produzir, mas como “uma visão de mundo, um ideal de vida”. Em conversa via internet com o arquiteto, urbanista e conselheiro de Uma Gota no OceanoMiguel Pinto Guimarães, ela propôs que um modelo de desenvolvimento que considera os pontos de vista econômico, social, ambiental, cultural, político, ético e até mesmo estético. “É preciso pensar o mundo não a partir do ideal do ter, mas do ideal do ser. Há limites para ter, mas não há para ser. O planeta nos limita, os recursos são finitos. Por outro lado, não há limites para pintar o melhor quadro, fazer a melhor poesia, compor a melhor música. No ideal do ser, a gente não está disputando coisas, está agregando mais valores simbólicos, estéticos, afetivos”. Este foi um dos temas da primeira live, realizada na última quinta-feira (dia 15), coproduzida por Uma Gota no Oceano.
“Nós já tivemos debates entre o capitalismo, o socialismo, o liberalismo. Todo mundo gosta de um ismo. Talvez a gente tenha que trabalhar na dimensão do sustentabilismo”, provocou Marina. Verdade seja dita: a expressão sustentabilidade foi banalizada a ponto de virar peça de propaganda, como lembrou Miguel, ou “vaidade pessoal”, como costuma dizer o pensador Ailton Krenak. Mas evidentemente não se trata apenas de uma questão de sufixo, mas de fazer mudanças radicais que garantam um futuro melhor para todos. O mundo pós-pandemia de coronavírus não será o mesmo e a própria Covid-19 é uma prova de que não vínhamos fazendo as melhores escolhas. “Em vez de querer a herança, temos que trabalhar pelo legado”, afirmou.
Marina sabe, por experiência própria, que a mudança está ao alcance de nossas mãos. Quando esteve no Ministério do Meio Ambiente ela coordenou a criação do Plano de Prevenção e Controle de Desmatamento da Amazônia. A situação estava fora de controle: 27 mil km² de floresta tinham ido abaixo em 2004. O plano reduziu a devastação em mais de 83% em 10 anos, evitando que fossem lançados na atmosfera mais de 4 bilhões de toneladas de CO₂. Marina adotou uma política transversal, na qual a agenda ambiental não era exclusividade do Ministério do Meio Ambiente: “Para o desmatamento cair naquela época foi preciso um conjunto de ações que envolveu 13 ministérios com a participação de diferentes setores da sociedade, da academia a movimentos sociais”, lembrou. Em tempos de Medida Provisória 910 – que legaliza terras invadidas na Amazônia – é oportuno lembrar que durante a sua passagem pela pasta foram inibidas 60 mil tentativas de grilagem. “Hoje existe, de forma induzida, uma indústria de invasão”, disse ela.
Desde sua saída do ministério essas políticas vêm sendo enfraquecidas, mas a partir deste governo isso vem sendo feito de modo avassalador – por ação ou omissão. “O ministro do Meio Ambiente vem operando sistematicamente para destruir a governança ambiental brasileira. Ele acha que está favorecendo as empresas e o agronegócio, mas está criando graves prejuízos”, afirmou Marina. O último foi a decisão do Banco Central da Noruega, anunciada na última quarta-feira (13/5), de excluir a mineradora Vale e a estatal de energia Eletrobras do maior fundo soberano do mundo, que administra uma reserva de mais de US$ 1 trilhão a partir de lucros gerados pelo petróleo. Os motivos? Danos ambientais e violações de direitos humanos. “Economia não precisa ser separada de ecologia. O mundo inteiro está discutindo durante a crise como migrar para o desenvolvimento sustentável com os investimentos que serão necessários para reerguer a economia no pós-pandemia. No Brasil estamos fazendo o oposto”. O país não tem se esforçado para cumprir suas metas do Acordo de Paris, por isso, e não deverá ser tratado com condescendência: “Os países que estão se sacrificando para cumprir suas partes no tratado não vão permitir que o Brasil lucre em prejuízo do clima, do meio ambiente e dos direitos dos povos originários”.
Marina lembrou como opção o Programa Amazônia 4.0, lançado pelo cientista Carlos Nobre, cuja ideia é unir o conhecimento ancestral dos povos tradicionais às novas tecnologias para criar produtos e materiais a partir da biodiversidade de floresta, como forma de atingir essas metas. A palavra mágica se chama bioeconomia “Nós temos uma commoditie que já é mais rentável do que o café, que é o açaí. Só não há escala de produção para atender à demanda, que ainda pode ser estimulada. Então é preciso associar biodiversidade, agroindústria, bioindústria, sistemas agroflorestais e comunidades locais. para que possamos vender produtos acabados e não matéria-prima”. A ex-ministra disse ainda que a Covid-19 nos deixou uma importante lição: “Com essa visão de terceirizar processos de produção com visão exclusiva do lucro, o mundo ficou refém da China em relação quando precisou de produtos como respiradores e máscaras”.
Marina lembrou, porém, que a maior riqueza que a Amazônia nos dá são os serviços ambientais que ela presta não só ao Brasil, como ao planeta. “Nós só somos uma potência agrícola porque somos uma potência florestal e hídrica. E só somos uma potência hídrica por causa da Amazônia. Ela produz 20 bilhões de toneladas de água por dia, que são lançados na atmosfera na forma de vapor d’água e viram chuva nas regiões mais economicamente importantes do país”. Para gerar a energia que bombear essa água, que é levada naturalmente do norte para o sul, o sudeste e o centro-oeste do país, nós precisaríamos de 50 mil Usinas de Itaipu. Marina lembrou ainda que a importância da Amazônia para o mundo é tão grande que ela ainda ajuda a regular a salinidade das águas do oceano, já que em torno de 17% da água doce que chega ao oceano vem das chuvas e da água produzidas na região.
Miguel lembrou que em sua última campanha para a Presidência, Marina usou como slogan uma frase de Raul Seixas: “Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade”. Hoje ela tem um sonho que gostaria de dividir com todos: “Sonhar juntos não significa eliminar as diferenças, criar um processo de homogenização, só existe troca na diferença. Mas que é possível construir um país que seja ao mesmo tempo economicamente próspero, socialmente justo, politicamente democrático, ambientalmente sustentável e culturalmente diverso. Este é um sonho bom para quem crê e para quem não crê”.
Assista ao bate-papo do arquiteto e conselheiro de Uma Gota No Oceano, Miguel Pinto Guimarães, com a ambientalista Marina Silva. Ela fala sobre o tema “Economia verde para sair do vermelho”, as cadeias de produção e de pesquisa em biotecnologia da Amazônia, o respeito aos direitos dos povos tradicionais e o New Deal.
Antes de chegada de Cabral, calcula-se que até 4 milhões de indígenas viviam no Brasil. Em 2010, quando se realizou o último o censo do IBGE, eram pouco mais de 800 mil. Essa população não foi drasticamente reduzida somente pela espada e pela violência da escravidão, mas também por doenças que chegaram aqui a bordo das caravelas dos invasores. Os povos originários não tinham defesa contra a gripe, o sarampo, a coqueluche e a tuberculose. São José de Anchieta conta que 30 mil tupis morreram na região do Recôncavo Baiano em poucos meses, vitimados pela epidemia de varíola que durou de 1562 a 1565. Diferentemente dos europeus, eles ainda não tinham desenvolvido anticorpos de qualquer espécie contra o Orthopoxvírus variolae. E ainda existem povos indígenas que, por escolha própria, nunca tiveram contato com o invasor.
Hoje, a Humanidade enfrenta o maior desafio do novo século, a pandemia de Covid-19, causada por uma nova espécie de coronavírus. Fomos apresentados a essa família viral entre 2002 e 2003, quando um de seus irmãos mais velhos infectou mais de 8 mil pessoas em uma dúzia de países das Américas do Norte e do Sul, da Europa e da Ásia, deixando aproximadamente 800 mortos. A doença ficou conhecida por Sars, sigla inglesa de “Severe Acute Respiratory Syndrome”. O caçulinha é bem mais letal. Só na Itália, o Covid-19 já matou mais de 6 mil e, mal chegou ao Brasil, já tinha causado 34 mortes e infectado 1.891 pessoas até o último dia 24. O ministro Luiz Henrique Mandetta prevê um colapso de nosso sistema de saúde já para abril.
Se para quem vive nos centros urbanos a situação é crítica, ela é dramática para os povos da floresta. O sucateamento da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde e responsável pelo atendimento de mais de 765 mil indígenas no país, vem sendo denunciado desde o ano passado por entidades indigenistas. No caso dos grupos isolados, é especialmente dramática. Em discurso que fez na ONU no início de março, Davi Kopenawa denunciava: “Os garimpeiros, sem dúvida, vão matar os índios isolados na área Yanomani. Estou muito preocupado. Talvez em breve estarão exterminados”.
Segundo um balanço do Instituto Socioambiental (ISA), existem 86 territórios com presença de grupos sem contato – este relatório aponta que o desmatamento nessas áreas cresceu 113%, sendo que no total de todas as terras indígenas o aumento foi de 80%. Os invasores podem levar o Covid-19 a eles. Mas outro perigo os ronda.
Nas últimas décadas a Funai vinha adotando uma política de proteção dessas áreas, dificultando qualquer aproximação com essas comunidades. Até outros povos indígenas evitam o contato. Mas em fevereiro, o governo indicou para a chefia da Coordenação-geral de Índios Isolados o ex-missionário evangélico Ricardo Lopes Dias. A nomeação foi contestada pelo Ministério Público Federal e desagradou organizações indigenistas, que temiam uma mudança na política adotada pelo Governo desde o fim da ditadura: o contato com isolados só deve acontecer quando a iniciativa parte deles. Mesmo assim, Ricardo segue no cargo.
Já no início do ano a Ethnos360, uma organização evangélica, planejava excursões à Amazônia para converter indígenas isolados. Da última vez que isso havia acontecido, quando a entidade se chamava Missão Novas Tribos, estima-se que 45 índios Zo’é tenham morrido entre 1987 e 1991 de malária e influenza. A população, que caiu para 133 em 1991, está se recuperando e hoje é estimada em 250. Porém, eles continuam vulneráveis a doenças e à invasão de suas terras por pecuaristas e produtores de soja.
Para piorar, uma portaria da Funai, publicada em 19 de março, o admitia “caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado”. O texto ainda conferia às 39 coordenações regionais da entidade decidir sobre este contato, quando anteriormente esta decisão cabia à Coordenação-geral de Índios Isolados. Diante dos protestos, o governo recuou e emitiu uma nova portaria no dia 23, alterando a anterior. O Artigo 4 diz: “Ficam suspensas todas as atividades que impliquem o contato com comunidades indígenas isoladas. O comando do caput pode ser excepcionado caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado, conforme análise feita pela Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai”.
Entretanto, a alteração também causou desconfiança. “Nós comparamos essa alteração às que foram feitas à PEC 215 (que transfere do Executivo para o Legislativo a atribuição de demarcar terras indígenas), que mudavam uma ou outra palavra, mas a tornaram até pior. A mudança na portaria deixa brechas para que haja contato com povos isolados”, diz Angela Kaxuyana, coordenadora tesoureira da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Além disso o termo ‘comunidades isoladas’ não está de acordo com a compreensão que temos do conceito de povos indígenas de isolamento voluntário e de recente contato ou de contato inicial. Isso é um retrocesso que nos preocupa muito, pois sabemos que a Funai está tomada por evangélicos fundamentalistas que querem fazer contato forçado e hoje vivemos sob a ameaça do coronavírus”, continua.
Vale lembrar que a Funai, que é vinculada ao Ministério da Justiça, foi criada em 5 de dezembro de 1967, pela Lei 5.371, para ser a coordenadora e executora da política indigenista do governo federal. Sua missão institucional é proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil. “O Estado deveria estar preocupado com a proteção desses territórios, expulsando garimpeiros e madeireiros que estão agindo dentro deles. Nós não precisamos fazer contato para proteger esses povos. Se o governo quer protegê-los, e este é o seu dever, precisa garantir que invasores mantenham distância deles”, finaliza Angela.