Desembarque do trem fantasma

Desembarque do trem fantasma

Quer notícia ambiental boa em 2020? Vai pra Tasmânia! A ilha australiana hoje é 100% movida a energia renovável e os tasmanianos realizaram o feito dois anos antes do previsto. Dá até uma certa inveja, depois de um ano que, para nós, brasileiros, foi como dar uma volta num trem fantasma. Na primeira curva, descaso público com o coronavírus; em seguida, Pantanal reduzido a cinzas; logo adiante, 800 famílias quilombolas ameaçadas de despejo em plena pandemia no Maranhão; daí para frente, recordes de desmatamento e de emissões de gases do efeito estufa em zigue-zague até o grand finale: a exclusão do Brasil da Cúpula da Ambição Climática da ONU. Deu para ouvir daí a gargalhada assustadora de filme de terror?

São raros os anos como este em que todos têm, pelo menos, uma história triste para contar. Os povos originários são um exemplo. Eles viram a invasão às suas terras aumentar 135% e a Covid-19 já lhes tomou quase 900 vidas. Entre elas, as de lideranças históricas como Nelson Rikbaktsa, Dionito Macuxi, Amâncio Munduruku, Zé Carlos Arara e Aritana Yawalapiti.

Porém, apesar de doído, 2020 trouxe também conquistas importantes. A vitória de maior destaque aconteceu em 5 de agosto, quando o Supremo Tribunal Federal acatou, por unanimidade, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A medida solicitava à mais alta corte do país que determinasse o cumprimento por parte do governo federal de um dever constitucional: cuidar dos indígenas durante a pandemia. Sim, foi preciso pedir – caso você não tenha acreditado.

Como num jogo de futebol em que o placar é menos relevante do que o entrosamento do time, o mais importante neste caso não foi o resultado em si, mas o reconhecimento oficial da representatividade da Apib perante o Estado. “Durante muito tempo, os povos indígenas não foram tidos como sujeitos de direitos, não podiam falar por si só, não podiam acessar o judiciário em nome próprio; sempre tinham que depender de alguém. Então, isto tem um significado muito grande na superação da tutela, na superação da colonialidade do direito e também na reafirmação desse sujeito de direito que são os povos indígenas”, explica Eloy Terena, assessor jurídico da Apib. E os feitos da entidade não pararam por aí.

Em um caso único no mundo, a articulação está contando os casos de mortes e contaminações entre indígenas pela Covid-19. Afinal, a doença não é (nem nunca foi) uma gripezinha. Tanto trabalho tem resultado em um reconhecimento cada vez maior, não só dentro – conforme mostra a decisão do STF – como fora do Brasil. Em outubro, a Apib ganhou o Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos, do Instituto de Estudos Políticos de Washington, que existe há 44 anos. O que mais pesou na escolha foi outro gol de placa: a Jornada Sangue Indígena – Nenhuma Gota a Mais, campanha que percorreu 12 países europeus em 2019, denunciando violações de direitos cometidas pelo governo ou com seu incentivo.

É um problema de 500 anos, que os indígenas denunciam cada vez mais e melhor, e que todos nós precisamos resolver. “Nossa luta, por extensão, é por todas as pessoas que vivem neste planeta durante este tempo de crise climática”, disse Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib, em agradecimento pela honraria concedida à entidade. Este ano, Sonia também levou sozinha o Prêmio Alceu Amoroso Lima de Direitos Humanos, concedido pela Universidade Cândido Mendes.

Outra que tem sido ouvida com muita atenção por esse mundão afora é Alessandra Korap Munduruku. Ela levou o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, que existe há 37 anos. Seguindo a máxima do ex-presidente americano que dá nome a homenagem, ela não se perguntou o que o Brasil podia fazer por ela, mas sim o que ela podia fazer pelo Brasil. “Como liderança, Alessandra defende os direitos indígenas, principalmente na luta pela demarcação dos territórios indígenas e contra grandes projetos que afetam terras indígenas e territórios tradicionais na região do Tapajós”, diz a justificativa da premiação. Nós, da Gota, ficamos muito felizes, já que Alessandra foi uma das inspirações para campanha “Em Nome de Quê?”, iniciativa que reuniu indígenas e demais brasileiros na luta pelo meio ambiente.

É claro que nem tudo são prêmios – ou flores, se preferir. Enquanto o resto do mundo entende perfeitamente o recado dos povos tradicionais, o atual mandatário da nação prefere ignorá-lo. É um comportamento menos parecido com o da ema, que o renegou no Alvorada, e mais similar ao de outra ave, o avestruz. Nada presidencial, esta conduta pode gerar consequências — como, aliás, já aconteceu. Este mês, a Procuradoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia deu o seu O.K. para uma investigação inicial contra Bolsonaro por denúncias de violações contra o meio ambiente e os indígenas brasileiros. Nunca um presidente brasileiro tinha chegado a este estágio. E a primeira vez, como dizem por aí, a gente nunca esquece.

Brincadeiras à parte, é certo que 2020 será menos lembrado pelas coisas boas do que pelas péssimas lembranças que deixa. Mas nem tudo que aconteceu nos últimos 12 meses precisa ir direto para a lata de lixo. Veja, por exemplo, o caso do nosso guru Ailton Krenak, escolhido em setembro “intelectual do ano” pelo prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores. Com a honraria, ele se junta a nomes como Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda e Dom Paulo Evaristo Arns. Todos pensadores com uma ideia de Brasil muito diferente das que temos hoje e que não devemos desistir de tirar do papel.

Com Krenak, a sabedoria dos povos originários está chegando a muito mais gente. São pessoas que têm entrado em contato com valores importantes, como a preservação do meio ambiente. “A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história”, diz o escritor. Por sorte, há sempre uma nova história a ser contada e cada ano novo é uma oportunidade para recomeçarmos. Que, em 2021, em vez de um filme de terror, escrevamos uma trama repleta de heróis, transformações e com final feliz. Para nós e para o planeta.

#Retrospectiva2020 #PovosTradicionais #Quilombolas #PovosIndígenas #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

A chama que não se apaga

A chama que não se apaga

Depois da tempestade vem a bonança. Infelizmente, na vida real, as coisas nem sempre saem como no ditado. O exemplo mais recente é o caso dos quilombolas do Amapá: após um incêndio na principal subestação de energia do estado, no último dia 3, eles viram o já precário fornecimento de luz se tornar ainda pior. Catorze dias depois, um novo blecaute agravou a situação. Tudo isso no mês da consciência negra, que celebra a importância de pretos e pardos para o país e propõe uma reflexão em relação ao racismo que resiste em nossa sociedade.

Se antes os quilombos do Amapá chegavam a sofrer no mesmo mês até quatro blecautes que duravam alguns dias, a escuridão desta vez se prolongou por uma semana em lugares como Conceição do Macacoari. As 40 famílias que vivem na comunidade foram forçadas a fazer uma viagem no tempo. Trocaram lâmpada por lamparina e água encanada por água de poço. Diante deste cenário, a Anistia Internacional lançou uma mobilização exigindo que autoridades dos governos tomem providências em relação a esta situação.

Um ingrediente pode tornar especialmente devastador o efeito do apagão nestas comunidades: a pandemia. O Amapá só perde para Rio de Janeiro e Pará em número de quilombolas mortos por Covid-19. Quando a comparação é feita entre municípios, Macapá (com 15 casos) só fica atrás da capital fluminense, que tem 30. Os números são da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que mantém por conta própria um monitoramento. Entretanto, a organização admite que a quantidade de infectados é bem maior. “Quando adoece uma pessoa, não tem serviço de testagem ampla para a gente saber, naquele raio, quem mais se contaminou”, explica a educadora Givânia da Silva em vídeo compartilhado pela entidade no Instagram.

Um estudo da Universidade Federal do Amazonas apontou que a taxa de mortalidade do novo coronavírus entre os quilombolas de 5 estados da região é de 11,5%. É quase quatro vezes a média de 3% verificada pelo Ministério da Saúde em todo o território nacional. Um olhar menos atento poderia entender que se trata de um vírus racista. Porém, não precisa ser um expert para saber que microrganismos infecciosos desconhecem tons de pele.

De acordo com a pesquisa, na prática, é a desigualdade gerada por racismo que favorece a maior propagação do Sars-Cov-2. Esta desigualdade se reflete na dificuldade de acesso à água tratada, na falta de uma rede de esgoto e ou de coleta de lixo, na deficiência de políticas de prevenção e atenção, e mesmo na distância dos centros urbanos que, no passado, protegeu esses territórios e hoje pode atrapalhar. A distorção afeta até a distribuição da ajuda, quando ela existe. Sem energia e internet, muitos quilombolas não conseguiram pedir auxílio emergencial, por exemplo.

Os problemas não se limitam ao Amapá. Em todo o Brasil, 4.635 casos de Covid-19 foram contabilizados pela Conaq em 19 estados até o último dia 11. São histórias com nome e sobrenome, como Cirilo Araújo Brito, patriarca da comunidade do Grotão, em Goiás, que morreu no último dia 23.

Numa entrevista concedida em 2017, Cirilo contou que, na sua infância, as crianças tinham obrigação de acompanhar a conversa dos mais velhos para que pudessem passá-las adiante. Este hábito deixou de ser comum e revela um dos impactos da perda de anciãos nestas comunidades. Quando um deles morre, um pouco da trajetória de cada povo some junto. “A história quilombola e a indígena, ela é muito oral, é muito da memória. Então, a gente perdeu a pessoa, perdeu a história e perdeu parte da memória daquela comunidade”, lembra Givânia.

Entre os especialistas, o clima é de preocupação. A negligência em relação aos territórios durante a pandemia “pode vir a representar o maior genocídio da população quilombola no Brasil desde o período escravocrata”, escreveu Eduardo Rodrigues Santos, sociólogo da Universidade Nacional de Brasília, no artigo “Necropolítica, coronavírus e o caso das comunidades quilombolas brasileiras”.

Com quase 500 anos de luta, os quilombolas já não esmorecem mais diante de ameaças como a redução no reconhecimento de territórios por parte do governo federal. Em 2018, foram 144 áreas reconhecidas. Já no ano passado, só 70. O que as comunidades têm feito é buscar novas estratégias, como a eleição de um prefeito, um vice-prefeito e 54 vereadores em 2020. Para quem se define a partir de um espaço que é fruto da busca pela liberdade, a coragem nunca foi uma qualidade – mas sempre um pré-requisito.

#Amapá #Coronavírus #Covid19 #Apagão #Energia #Quilombos #PovosTradicionais #Racismo

Saiba mais:

Anistia Internacional – Amapá pede socorro! Pressione as autoridades

G1 – Laudo inicial descarta que raio tenha causado incêndio que provocou apagão no Amapá

Folha – Macapá pode ficar até 15 dias sem luz após incêndio em subestação

G1 – Amapá tem novo apagão total

Portal Cultura – Dia da Consciência Negra: entenda o significado da data

Portal Geledés – O que é Consciência Negra?

Folha – Com apagão no Amapá, quilombolas perdem carne, peixe e polpa de fruta

Conaq e ISA – Quilombo sem Covid-19

Conaq (instagram) – Covid-19 nos quilombos

Ufam – Amazônia concentra recorde de mortes de quilombolas por covid-19

Ministério da Saúde – Painel Coronavírus

Conaq (instagram) – Cirilo Araújo Brito

Universidade Federal do Tocantins – A formação socioterritorial da comunidade remanescente de quilombo Grotão

Revista do CEAM – Necropolítica, coronavírus e o caso das comunidades quilombolas brasileiras

Nexo – A covid-19 nos quilombos. E a cobrança por ações do governo

O Globo – Quilombolas elegeram 56 representantes na eleição de ontem em dez estados — um recorde

O sol e a peneira

O sol e a peneira

O ministro do Meio Ambiente usou uma foto do bicho símbolo da Mata Atlântica para mostrar que não havia desmatamento na Amazônia e pagou um mico-leão-dourado. Já o vice-presidente Hamilton Mourão, que ora também preside o Conselho Nacional da Amazônia – uma espécie de segundo ministério para a área ambiental –, disse que o Brasil devia parar de “tapar o sol com a peneira” quando o assunto é a abertura das terras indígenas à mineração. Ele argumenta que a regulamentação da atividade ajudaria a coibir ilegalidades e crimes ambientais. A política de legalizar terras públicas invadidas, sobretudo na Amazônia, vem sendo insistentemente defendida pelo governo; essa insistência vem estimulando mais invasões. Ainda não há dados consolidados deste ano, mas segundo o último o relatório “Violência contra os povos indígenas do Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nos nove primeiros meses de 2019, 153 territórios foram invadidos em 19 estados, contra 76 em 13 estados em todo ano anterior.

Um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), com base em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), aponta que o desmatamento disparou em terras indígenas na Amazônia – na Trincheira-Bacajá, no sudoeste do Pará, aumentou 870% entre março e julho deste ano. Hoje há tantos garimpeiros quanto indígenas na Terra Yanomami, mais de 40 mil de cada lado. Enquanto isso, repousam nas gavetas da Agência Nacional de Mineração (ANM) quase 3,5 mil pedidos de pesquisa mineral nessas áreas. Mourão também admitiu que o governo perdeu o controle da narrativa sobre a floresta. Segundo ele, para adversários políticos do presidente, empresas estrangeiras e ambientalistas. O vice-presidente vice-presidente Hamilton Mourão, que ora também preside o Conselho Nacional da Amazônia, acusou o golpe, dado pela campanha internacional #DefundBolsonaro (“não financie Bolsonaro”), acusando o governo brasileiro de espalhar desinformação e não combater o desmatamento. Narrativas sólidas se constroem com verdades.

Como presidente do Conselho Nacional da Amazônia, Mourão podia dar mais atenção à divulgação de um robusto relatório da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). A pesquisa apontou um crescimento 129% no número de barragens em condições críticas em 2019 – 156 contra 68 do ano anterior. A maior parte (63%) pertence à iniciativa privada. A ANA credita o crescimento de registros ao aumento de 135% das ações de inspeção entre 2018 e 2019. Os dados indicam duas coisas: que a ameaça é considerável e que vale a pena investir em fiscalização. Então, em nome de que correr esse risco? Ou de quem? A Bacia Amazônica é um tesouro do povo brasileiro, mas sofre há décadas com o garimpo ilegal, em benefício de uns poucos.

Em fevereiro completou-se dois anos que a mineradora norueguesa Hydro Alunorte deixou vazar metais pesados, como chumbo, arsênio e mercúrio, no Rio Murucupi, no Pará. A Agência Pública denunciou em reportagem que a ANM contratou uma empresa que presta serviços a mineradoras para fiscalizar barragens. Como explicar isso? A americana Aecom, contratada sem licitação pela ANM, uma autarquia do Ministério de Minas e Energia, tem negócios com as multinacionais BHP Billiton, Kinross, Rio Tinto e Anglo American. Como não enxergar esse evidente conflito de interesses?

O vice-presidente também disse que o Exército só entrou na Amazônia porque os órgãos ambientais não tinham “pernas” para agir. Foi uma entrada triunfal: a Operação Verde Brasil chegou à região com 3.815 militares, 110 veículos terrestres, 20 embarcações e 12 aeronaves. Isso custou R$ 60 milhões aos cofres públicos em maio, pouco menos que o orçamento de R$ 76 milhões do Ibama para este ano. Nada disso impediu que a Amazônia tivesse o segundo pior agosto dos últimos dez anos em relação ao número de queimadas, com 29.307 focos. Mas num ponto o vice-presidente tem razão: faltam pernas aos órgãos ambientais. Em dez anos, o Ibama perdeu mais de metade de seus fiscais. Hoje são 591 agentes, contra 1.311 em 2010 – o menor número desde a fundação do instituto, em 1989. Só em 2019, a redução foi de 24% em relação a 2018. O órgão também vem perdendo dinheiro: o orçamento de 2020 foi 25% menor que o de 2019 e em 2021, sofrerá um corte de 33,6%. A Operação Lava Jato criou um fundo de R$1 bilhão para combater o desmatamento na Amazônia; o Ministério da Defesa vai abocanhar R$ 520 milhões, enquanto o Ibama vai receber R$50 milhões, quase dez vezes menos. É impossível não pensar em desastres como os causados pela Samarco, em Mariana, e pela Vale, em Brumadinho, repetindo-se num grande rio amazônico. Enquanto Mourão só se preocupa com narrativas, o passado recente, esse inconveniente, nos joga a realidade na cara.

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#Amazônia #Pantanal #MeioAmbiente #Queimadas #Desmatamento #Indígenas #Barragens #Bolsonaro #CadaGotaConta

Gestão incompetente

Gestão incompetente

Uma única empresa de tecnologia americana, a Apple, vale US$ 2 trilhões (cerca de R$ 11 trilhões), um valor maior do que o PIB do Brasil – que não chega a US$ 1,9 trilhão. Mesmo que fosse possível desmatar toda a Amazônia para plantar soja, criar gado e extrair ouro, dificilmente deixaríamos de ser um país pobre. Isso na melhor das hipóteses, pois a ambição máxima do exportador de commodities é conseguir vender o almoço para pagar a janta. Por outro lado, a floresta nos oferece a oportunidade de produzir tecnologia de ponta para o novo modelo econômico que se desenha. Agora, imaginem se a direção da Apple tivesse percebido em 2019 um problema que poderia levar a empresa à beira da falência no ano seguinte e não tivesse feito nada? O governo brasileiro agiu assim em relação aos alertas de que a Amazônia deverá enfrentar em 2020 uma temporada de incêndios ainda mais dantesca do que a do ano passado. Na iniciativa privada, seria caso de demissão.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) avalia que o poder destrutivo das chamas aliado à penetração do novo coronavírus mata adentro pode resultar numa “catástrofe”. A instituição está realizando um estudo para avaliar os efeitos que o encontro da Covid-19 com as queimadas poderá causar na saúde da população local. Em 2019, cidades de Amapá, Pará, Maranhão e Mato Grosso tiveram o maior número de casos já registrados de doenças respiratórias. Segundo dados preliminares, morar em cidades próximas a incêndios florestais aumenta em 36% a possibilidade de a pessoa ser internada. “A exposição à fumaça fragiliza o sistema imunológico, a pessoa fica mais vulnerável às infecções em geral, como a pneumonia. O sistema imunológico fragilizado e com a Covid pode ser uma catástrofe”, disse o pesquisador Christovam Barcellos, um dos coordenadores da pesquisa. Não se trata apenas (sic) do meio ambiente, são mais vidas que serão perdidas.

O inevitável fogaréu é resultado direto das sucessivas quebras de recordes de desmatamento que o país vem batendo desde o início de 2019, causadas não só pelo descaso e por uma política ambiental primitiva, como também pelo mau uso do dinheiro público. Por exemplo: enquanto gastou-se migalhas com prevenção, o Ministério da Defesa acaba de pagar mais de R$ 145 milhões, aparentemente sem licitação, num satélite para monitorar o desmatamento na Amazônia. Este trabalho já é feito, com tecnologia e know-how superiores, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O órgão, criado em 1961, tem sido fonte constante de dor de cabeça para o governo, simplesmente por fazer o seu trabalho – assim como Ibama e ICMBio. Talvez por isso, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações tenha reduzido a zero o seu orçamento para pesquisa em 2021. Depois se o povo chamar o novo satélite de Caô I, não venham reclamar.

A salvação da Amazônia não virá do espaço, tampouco de operações pontuais com nomes escolhidos pelo pessoal do marketing. É preciso tratá-la de forma diferente. Em 2017, um incêndio monstruoso destruiu a região do Pedrógão Grande, em Portugal. Um pequeno sítio foi poupado das chamas, formando uma ilha verde cercada de cinzas e a Intervenção Divina não teve nada a ver com o ocorrido. O fogo parou nas castanheiras, nos carvalhos e nas oliveiras, árvores nativas de Portugal, que cercavam a propriedade. Elas formaram uma barreira natural, pois armazenam água no solo e têm copa volumosa, o que ajuda a baixar a temperatura substancialmente. Incêndios florestais têm sido cada vez mais comuns na Europa e pesquisadores da Universidade do Porto fizeram um estudo que defende o uso das chamadas “paisagens inteligentes” para controlar incêndios. No Brasil, temos os maiores especialistas do mundo nessa área: os povos originários.

Em 1975, quando o Inpe começou a fazer o monitoramento da ocupação da Amazônia, só 0,5% da floresta tinha sido desmatado. Em 1988, essa porcentagem subiu para 5,5% e hoje está em 20%. A história da ocupação humana na região data de 8 mil anos. Neste longo período, só uma parte ínfima da floresta foi abaixo, enquanto em pouco mais de 40 anos nós a reduzimos a 80% do seu tamanho original. A Amazônia desmatada é altamente inflamável, mas de pé é úmida, só queima se alguém tacar fogo. Incêndio na mata é crime. Os indígenas não vivem na floresta, fazem parte dela. Eles conhecem as propriedades de todas as árvores, sabem usar o manejo florestal para combater fogo. É um conhecimento milenar. No momento, a pandemia os obrigou a se recolherem, então pouco podem fazer. Mas depois que isso tudo passar, devemos ter juízo e lhes devolver a direção da Amazônia.

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Frágil equilíbrio

Frágil equilíbrio

A Amazônia está na corda bamba, equilibrando uma bandeja cheia cristais em cada mão, sem rede de proteção. Cada um desses frágeis utensílios representa um serviço vital prestado pela floresta ao mundo. Se ela cair, caímos juntos. Há anos os cientistas Carlos Nobre e Thomas Lovejoy vêm alertando a população sobre a arriscada caminhada da região rumo ao ponto de inflexão – quando a mata foi devastada a tal ponto que perde seu poder de regeneração e tem início um processo de desertificação irreversível. Este ponto será atingido quando de 20% a 25% da Amazônia tiver ido abaixo. Hoje este número, segundo dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), está em 17%. Cerca de 700 mil km² (o equivalente a 23 Bélgicas) já foram devastados – sendo que desse total, 300 mil km² só nos últimos 20 anos – e a taxa de desmatamento de 2020 deverá ser 186% maior que a de 2012. Basta um sopro para o tombo.

Afora sua influência benéfica no clima do planeta e da quantidade de água que produz (via chuva) e armazena (em rios, lagos e aquíferos), o coronavírus nos deu mais uma razão para preservar a Amazônia. E isso tem a ver com outra riqueza sua, a biodiversidade. Uma pesquisa internacional, liderada University College London (UCL), compilou informações de 184 estudos e chegou à conclusão de que a maior fonte de novas pandemias está no entorno de florestas destruídas. Publicada no início deste mês na revista “Nature”, ela aponta que o desmatamento e a consequente redução da biodiversidade fazem com que cresçam as populações de certas espécies de roedores, aves e morcegos que são os melhores hospedeiros para os microrganismos que podem nos infectar.

Isso tem acontecido com cada vez mais frequência em países africanos e asiáticos e pode tomar efeitos catastróficos se começar a acontecer com igual intensidade aqui também. “Na Amazônia, tem uma quantidade de vírus imensa. A próxima epidemia, com o nível de agressão que nós estamos fazendo ao meio ambiente, já está a caminho”, alertou o médico sanitarista e ex-presidente da Anvisa Gonçalo Vecina. Alguns desses vírus, como “sabiá”, que causa a febre hemorrágica brasileira, uma doença rara e de alta mortalidade, já são conhecidos. Numa área equivalente a um campo de futebol (1,08 hectare) cabem 310 árvores, 96 trepadeiras, 160 pássaros, 33 anfíbios, 10 primatas e 1 bilhão de invertebrados. Eles formam uma barreira viva contra doenças – que, como vem mostrando a Covid-19, podem rapidamente se espalhar pelo globo.

O mito da Amazônia como fruto intocado da natureza começou a ir ao chão mais ou menos na época em que Carlos Nobre e Thomas Lovejoy lançaram seus primeiros estudos sobre o seu ponto de inflexão. Hoje já se conhece o papel fundamental dos povos originários em sua exuberância. O solo original da região é pobre; os indígenas o tornaram fértil ao misturá-lo com restos de cerâmica, carvão e resíduos orgânicos. Eles cobriram 10% da Amazônia com essa mistura chamada “terra preta”. Criaram uma civilização milenar que chegou a ter uma população de milhões de pessoas, mas que desapareceu, repentinamente, no século XVI. O motivo mais provável é o mesmo que assombra seus ancestrais hoje. “Os europeus encontraram povos com rara suscetibilidade a doenças, que se espalharam como fogo em palha seca”, explicou o biólogo Charles Clement, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). A Amazônia é obra deles; sem os povos indígenas não conseguiremos salvá-la – e nos salvar.

#Amazônia #Desmatamento #MeioAmbiente #MudançasClimáticas #Pandemia #Covid19 #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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