Receita de genocídio

Receita de genocídio

Uma coisa que aprendemos desde pequenos é que não se nega água a ninguém. Porém, foi exatamente o que o presidente fez, em seus vetos à lei que garante medidas de proteção aos povos tradicionais enquanto durar a pandemia de Covid-19. Este é somente um dos ataques que os indígenas vêm sofrendo nos últimos meses mas, para quem entende a gravidade da situação, foi a gota d’água. Por isso, Uma Gota no Oceano ofereceu espaço para Sonia Bone Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com quem trabalhamos desde 2014 – com a campanha #TamuAtéAki –, contar de própria voz o que representa este perigo. Os povos indígenas brasileiros nunca estiveram tão ameaçados. Não só para eles, como também para nós, pois sem indígenas, dificilmente a Amazônia sobreviverá.

Receita de genocídio

Por Sonia Bone Guajajara

O coronavírus acabou se tornando cúmplice involuntário de um novo plano de genocídio. O último ato do presidente foi vetar 16 pontos da lei que garante medidas de proteção aos povos tradicionais durante a pandemia. Coisas “supérfluas”, como acesso à água potável. É Bolsonaro dando o seu toque pessoal à tradicional receita para matar indígena. Entre 1500 e 1600, a população originária das Américas foi reduzida em 90%. Esta matança, que continuou nos séculos seguintes, foi causada, em grande parte, por doenças que chegaram aqui com as caravelas – e não apenas como obra do acaso; muitos foram contaminados propositalmente, como vítimas de armas biológicas. O que para os europeus era somente uma gripezinha, para nós era sinônimo de morte. Continuamos vulneráveis, especialmente os 115 povos isolados que foram registrados na Amazônia Legal. Os Panará viviam em harmonia até 1973, quando foram oficialmente contatados. A construção da estrada Cuiabá-Santarém, que corta o seu antigo território, dizimou 2/3 de sua população. Muitos morreram justamente de gripe.

Proporcionalmente somos o grupo mais afetado pela pandemia no Brasil. Segundo o último censo do IBGE, nossa população é de cerca de 900mil; no último dia 9, chegamos a 12.777 infectados, 455 mortos e 128 povos afetados. “As minorias devem se submeter à maioria ou desaparecer”; estas palavras, ditas pelo presidente ainda durante a campanha, ecoam alto entre nós. Para nós, a História não se repete como farsa, mas como tragédia. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, o ex-senador Romero Jucá, atual presidente do MDB, foi o principal responsável pelo massacre de ¼ do povo Yanomami no fim dos anos 1980. “Em 1987, em plena epidemia de malária e gripe, trazida pela invasão de garimpeiros, o então presidente da Funai, Romero Jucá, alegando razões de segurança nacional, retira as equipes de saúde da área Yanomami”, diz o relatório da entidade.

Mas Jucá não agiu sozinho, teve como cúmplices militares e empresários de mineração. Foram cerca de 40 mil invasores; hoje, 90% dos Yanomami estão contaminados pelo mercúrio usado no garimpo ilegal e 20 mil aventureiros ocupam o seu território, encorajados por palavras e ações do atual chefe do Executivo. O ex-senador, figura carimbada de praticamente todos os governos de Sarney para cá, também é autor do primeiro Projeto de Lei (o PL 1.610, de 1996) que regularizava a mineração em terras indígenas, uma das maiores obsessões de Bolsonaro.

Como se vê, o presidente herdou um know-how de mais de 500 anos e está fazendo uso dele. Mas não podemos acusá-lo de falta de criatividade: ele adicionou mais um ingrediente a essa receita mortal e secular, a cloroquina. A Covid-19 é vista pelo Executivo como uma oportunidade a ser aproveitada, seja por omissão ou ação. Bolsonaro mandou distribuir o remédio – que não tem eficácia comprovada contra o novo coronavírus e que pode causar graves efeitos colaterais – entre nove povos que habitam a terras indígenas Yanomami e a Raposa Serra do Sol. Não bastasse o risco do uso a medicação, a população local não foi consultada e o Exército, incumbido de entregar o carregamento, não respeitou os protocolos de segurança do Ministério da Saúde.

Mas nós também temos mais de 500 anos de experiência em resistir. Ao longo dos séculos, aprimoramos nossas estratégias: a geração anterior à minha lutou para que nossos direitos fossem reconhecidos pela Constituição de 1988 e nós nos preparamos, nas universidades, para consolidá-los. Fui candidata à vice-Presidência e temos uma representante no Congresso Nacional, Joênia Wapichana; conquistamos aliados para nossa causa entre políticos, entidades nacionais e internacionais, a população em geral e ONGs, como Uma Gota no Oceano, Instituto Socioambiental (ISA), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Greenpeace e demais organizações da Mobilização Nacional Indígena. O resultado é que o ministro do STF Luís Roberto Barroso acatou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), ajuizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que obriga o Executivo a tomar medidas para nos proteger. Foi um feito inédito, pois reconheceu que a Apib é uma entidade apta a entrar com ações no Supremo. A ADPF ainda vai a julgamento, mas na quarta-feira (8/7), Barroso ordenou que o governo tome cinco medidas para evitar a mortandade que se anuncia – como impedir invasões em áreas indígenas e criar plano de enfrentamento à doença específico para nós. Nossa receita de sobrevivência é muito mais forte.

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A Constituição da Terra plana

A Constituição da Terra plana

Do que vale a Constituição na Terra plana? Em coluna no jornal “O Globo”, a juíza Andréa Pachá definiu bem o momento singular que vive nossa República. “O reduzido grupo que confronta a Ciência, estatísticas e a realidade representada por 27 mil mortos é o mesmo que rejeita a democracia, em exibições de negacionismo constitucional”, escreveu ela no texto publicado em 30 de maio. De lá para cá, pouco mudou e o número de mortos pelo novo coronavírus dobrou. “Somos obrigados a obrigar o governo a não nos deixar morrer”, resumiu o advogado Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em artigo publicado na “Folha de São Paulo” (30/6). A entidade entrou nesta segunda-feira (29/6) com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para assegurar o direito dos povos originários a dois direitos básicos, previstos pela Constituição: segurança e saúde. Se está ruim para nós, imaginem para os que vivem longe dos olhos.

De acordo com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a taxa de mortalidade pela Covid-19 por 100 mil habitantes entre indígenas da região é 150% maior que a média brasileira. Segundo o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Apib, até o dia 27 de junho, 378 indígenas haviam morrido, 9.166 foram infectados e 112 povos, atingidos. O índice de mortalidade entre eles é de 9,6%, enquanto na população em geral fica em 5,6%. Pelo menos 30% dos territórios analisados na pesquisa têm potencial de contágio alto devido ao desmatamento crescente e à ação de grileiros e outros invasores. Mais de 20 mil garimpeiros já invadiram a Terra Yanomami, levando o vírus cada vez mais longe.

“O Executivo tem se especializado nas práticas de acusar o adversário de fazer o que ele próprio faz, e culpar o outro pelo resultado de suas omissões. Um dos sintomas do novo coronavírus foi deixar este modus operandi ainda mais evidente. Enquanto responsabiliza governadores e acusa o Judiciário de interferir em suas atribuições, cruza os braços durante a pandemia. Atribui ao STF uma tentativa de judicialização da política, quando o que acontece é que a sociedade civil está sendo obrigada cada vez mais a recorrer à Justiça para que ele cumpra os seus deveres”, resumiu Eloy. A ADPF é um recurso constitucional pouco conhecido cujo objeto é “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”. Não é canja-de-galinha, mas é tiro e queda.

“As manifestações de ódio e arbítrio, a estratégia de empurrar a democracia para as cordas, se apropriando de palavras e conceitos que significam o oposto do que eles representam, só podem ser enfrentadas com racionalidade e fortalecimento institucional, ferramentas essenciais para a saúde mental e para a cidadania”, escreveu ainda Andréa Pachá. Se o governo não se mexe, a sociedade civil tem agido, sendo botando diretamente a mão na massa, como vem fazendo ONGs e associações de moradores em comunidades carentes, ou recorrendo ao Judiciário e ao Parlamento.

O pouco-caso com a pandemia e a negligência em relação aos povos tradicionais ganham manchetes nas principais publicações estrangeiras e podem levar o atual presidente onde nenhum outro jamais esteve: o Tribunal Penal Internacional (TPI), que funciona em Haia, na Holanda. Jair Bolsonaro foi denunciado por sua gestão criminosa da pandemia. Mas Sylvia Steiner, única juíza brasileira a já ter atuado na mais importante corte internacional, acredita que ele corra o risco de ir para o banco dos réus por outra razão: “Nós temos ainda uma outra denúncia contra o presidente Bolsonaro, também no gabinete da procuradoria do TPI, mas essa se refere a políticas de extermínio da comunidade indígena por meio da destruição do meio ambiente e dos territórios tradicionalmente ocupados pelos indígenas. Essa pode, sim, configurar, em tese, uma política genocida. Alguns elementos podem levar à conclusão de que essa é uma política deliberada e proposital para limpar uma área e remover os indígenas para que a área seja utilizada para outros fins”.

O mesmo expediente foi usado pelo ex-presidente do Sudão, Omar al-Bashir: milhões de pessoas foram expulsas de Darfur, um território rico em petróleo. O tribunal aceitou a denúncia contra o tirano, afastado do poder no ano passado. Bolsonaro devia estar atento às jurisprudências.

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“O primeiro livro que eu li foi meu avô”, disse Célia Xakriabá, quando de sua partida. A professora e ativista dos direitos indígenas é mestra em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mas o que aprendeu com o pai de seu pai é um conhecimento que só os Xakriabá possuem. O jovem cacique Ivandro Tupã, do povo Guarani Mbya, vive no Parque Estadual do Jaraguá, na cidade de São Paulo. Embora cercados pela maior metrópole do Hemisfério Sul, ele e as pessoas de sua aldeia conservam tradições ancestrais. “Mantivemos nossa cultura e nossa língua. Os mais velhos são os detentores desse conhecimento. Eles são nossos livros de História vivos”. Este acervo em carne, osso e espírito está sendo devorado pelo novo coronavírus. Corremos o risco de perder bibliotecas inteiras.

No último dia 9, Zé Carlos Arara, cacique da aldeia Guary Duan, na Terra Indígena Arara da Volta Grande, morreu no Hospital Geral de Altamira (Pará), levado pela Covid-19. Ele era um sábio guerreiro, um símbolo da luta dos povos do Xingu contra a construção da Usina de Belo Monte. Não foi um caso isolado: um Estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que 48% dos pacientes internados que morrem são indígenas. É a maior taxa de mortalidade do país, “superando as populações parda (40%), negra (36%), amarela (34%) e branca (28%)”, segundo o texto. Povos inteiros podem desaparecer. Como os Goitacás, que dominavam a costa entre o Rio São Mateus (no Espírito Santo) e o Rio Paraíba do Sul (Rio de Janeiro) até fins do século XVIII, quando foram exterminados por uma epidemia de varíola.

Quantos segredos foram perdidos com os Goitacás? Quantos podemos perder hoje? “Sabemos que um dos impactos mais fortes do colonialismo europeu nas Américas, particularmente no Brasil, com relação ao genocídio indígena nos séculos XVI e XVII foram as pandemias”, lembrou o antropólogo Márcio Meira, que foi o presidente mais longevo da Fundação Nacional do Índio (Funai), entre os anos de 2007 e 2012. E quando um sábio indígena sei vai, não são apenas eles que têm a lamentar. “Se um idoso morre, vai com ele também todo o conhecimento e cultura e quem perde com isso é toda a Humanidade”, completa Meira. Há povos isolados que vivem em lugares de biodiversidade única. Só eles conhecem as propriedades de fauna e flora locais.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em parceria com a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), o Conselho do Povo Terena, a Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste), a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul), a Grande Assembleia do povo Guarani (Aty Guasu), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Comissão Guarani Yvyrupa, tem feito o acompanhamento de casos de Covid-19 entre indígenas. Até o dia 16, eram 236 mortos, 2.390 infectados e 93 povos atingidos. O governo, porém, parece ter outras prioridades. A ideia agora é acelerar a elaboração de um decreto para tornar os critérios para demarcação de terras indígenas mais rigorosos e ágeis. O atual presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, pretende rever áreas que foram interditadas por relatos de presença de povos isolados e não esconde sua ansiedade para a aprovação no Congresso do projeto que regulamenta atividades de mineração em seus territórios.

Enquanto isso, o desmatamento na Amazônia completa 13 meses seguidos de crescimento, de acordo com dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em maio, a devastação cresceu 12% em relação a 2019 e atingiu o maior valor para o mês já registrado, e as áreas sob alerta somaram 829 km². Em comparação com abril, os alertas de desmatamento mais que dobraram, chegando a 103%. Já se prevê uma temporada de incêndios ainda mais destruidora do que a do ano passado. “A natureza é o único livro que oferece um conteúdo valioso em todas as suas folhas”, escreveu o escritor alemão Johann Goethe (1749-1832). Florestas são imensas bibliotecas, mas nem todos sabem ler o que está escrito nelas e os indígenas, sem dúvida, são seus melhores intérpretes. “Parece até irônico, mas hoje a humanidade se encontra em uma situação igual à de um povo indígena isolado. Para eles, uma gripe é o nosso coronavírus, que ameaça a humanidade inteira”, refletiu Márcio Meira. Quem sabe a cura para a Covid-19 não seja uma plantinha conhecida apenas por um povo que nunca encontramos?

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Um fantasma que se esvai

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Em editorial publicado no último dia 8, a revista de ciência médica britânica “The Lancet”, fundada em 1823 e uma das mais conceituadas da área, diagnosticou que o presidente é “talvez a maior ameaça à resposta à Covid-19 no Brasil”. Dadas as credenciais da publicação, podemos dizer que se trata de uma dedução estritamente científica. E o raciocínio usado para se chegar a ela pode ser replicado na área ambiental. Como vetor que age direta e indiretamente o presidente também é, possivelmente, a maior ameaça à resposta à destruição da natureza no Brasil. Veio da Presidência a Medida Provisória 910, a MP da Grilagem, que legaliza até 650 mil km² de terras públicas invadidas na Amazônia o que, inevitavelmente, vai estimular novas ocupações. Não à toa a sociedade, assim como no caso do coronavírus, tem tomado medidas de prevenção por prescrição própria.

A pandemia deve ter um efeito colateral benéfico: derrubar as emissões de gases de CO₂ em praticamente todos os países este ano. Uma das poucas exceções deve ser o Brasil, justamente por causa do crescente desmatamento. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os alertas na Amazônia cresceram 63,75% em abril de 2020, se comparado ao mesmo mês do ano passado. A motosserra tem cantado em plena quarentena: cerca de 800 km² de floresta já foram abaixo no primeiro trimestre. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, havia prometido engavetar a MP da Grilagem, mas como ela caduca no dia 19, foi pressionado a levá-la à votação na quarta-feira (13/5). A pressão da sociedade civil nas redes sociais e a atuação da Frente Parlamentar Ambientalista foram decisivas para que a votação fosse retirada de pauta. Corremos ainda o risco de a MP voltar como Projeto de Lei, por isso a pressão precisa continuar. São terras públicas, ou seja, pertencem a todos nós.

Mas o desmatamento é uma infecção que se espalha, atingindo outros biomas, como Cerrado e Pantanal. A Mata Atlântica, que vinha se recuperando, pode entrar novamente no grupo de risco, por uma iniciativa do Executivo. No mês passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, emitiu um despacho reconhecendo as propriedades rurais que ficam em áreas protegidas da região. A decisão fere frontalmente a Lei da Mata Atlântica e Ministério Público Federal (MPF) entrou na Justiça com uma ação civil pública pedindo a sua anulação. A iniciativa partiu da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) e da Fundação SOS Mata Atlântica – que lançou um abaixo-assinado online contra a medida. Logo, a profilaxia tem se mostrado eficaz. O isolamento forçado, quem diria, reforçou nossa mobilização.

Como ensinaram seus ancestrais – que foram obrigados a adotar o isolamento social voluntário como forma de prevenção às epidemias trazidas clandestinamente pelas caravelas – os indígenas estão recolhidos em suas aldeias. Com isso o desmatamento em seus territórios aumentou 59% nos quatro primeiros meses de 2020. Os invasores estão se sentindo tão à vontade que têm atacado guardas-florestais e agentes do Ibama. A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão criado pelo Estado para atuar em favor dos povos originários, tem jogado como adversário. Seu último gol contra foi uma instrução normativa, já contestada pelo MPF, que regulariza a grilagem de terras indígenas. Mas mesmo recolhidos, eles estão antenados: o último Acampamento Terra Livre (ATL) foi realizado via internet e foi um sucesso.

Os indígenas agora aguardam por um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que pode exorcizar de vez um velho fantasma. No último dia 7 Edson Fachin, ministro do STF, suspendeu, até votação em plenário, um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que orientava o uso da tese do marco temporal em casos de demarcação de terras indígenas. Este dispositivo estabelece que só teriam direito a reclamar suas terras os indígenas que a estivessem ocupando até a promulgação da Constituição de 1988 – mesmo aqueles que tivesse sido expulsos com o uso de violência. Ela foi declarada inconstitucional por juristas renomados como Dalmo Dallari e José Afonso da Silva; mas este governo insiste em usá-la para impedir novas demarcações e até fazer revisões de processos já concluídos.

Porém, no dia 20 de abril o STF confirmou outra tese, a de que dano ambiental é imprescritível. Esta decisão pode apontar uma tendência. O caso que levou o Supremo a julgá-la foi uma condenação feita pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) a madeireiros que agiram ilegalmente na Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, no Acre, entre 1981 e 1987 – antes da data estipulada pelo marco temporal, portanto. Os ministros do STF acataram o parecer técnico da ministra Eliana Calmon, relatora do julgamento no STJ: “Se o bem jurídico é indisponível, fundamental, antecedendo a todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem saúde, nem trabalho, nem lazer, considera-se imprescritível o direito à reparação”. Uma vitória dos povos indígenas no STF pode significar o estabelecimento de um novo marco civilizatório no Brasil.

Assine o abaixo-assinado da Fundação SOS Mata Atlântica

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Realidade Aumentada

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O escritor Ariano Suassuna costumava dizer que “o otimista é um tolo e o pessimista, um chato; então, prefiro ser realista”. Não carregar nas tintas ajuda a enxergar mais claramente e isso pode ser decisivo em momentos de crise. O novo coronavírus pegou o mundo num momento especialmente delicado, marcado por disputas políticas que põem a própria ciência em dúvida, graves crises sociais e econômicas, e o avanço sem trégua das mudanças climáticas. À primeira vista, a perspectiva do mundo pós Covid-19 é sombria. Mas é possível sonhar um futuro melhor mesmo sem apelar para o otimismo: quando a gente enxerga com clareza, escolhe os melhores caminhos para concretizá-lo.

“Siga o dinheiro”. A frase popularizada pelo filme “Todos os homens do presidente” aponta algumas pistas. A atual crise do petróleo não parece ser apenas uma crisezinha, ela pode decretar a aposentadoria dos combustíveis fósseis antes mesmo do que imaginávamos. Um sinal: o Fundo Rockefeller Family anunciou, no último dia 22, que abandonará seus investimentos no setor. É uma notícia emblemática, já que a fortuna da família nasceu, há um século, com a companhia petrolífera Standard Oil. A instituição também decidiu retirar seu dinheiro da Exxon Mobil Corp, alegando que a empresa enganou a população sobre os riscos do desequilíbrio climático. Ainda que seja somente uma preocupação com a imagem da marca, a decisão quebra uma antiga tradição e aponta um desvio de rota relevante.

Agora uma evidência: o último relatório da Agência Internacional de Energia (AIE), o “Global Energy Review 2020”, indica que a demanda global de energia em 2020 deverá cair 6%. Este tombo é sete vezes maior do que o registrado depois da crise financeira de 2008/2009. Ele equivale a toda a demanda anual de energia da Índia – ou o que consomem juntos o Reino Unido, França, Alemanha e Itália em um ano. “Este é um choque histórico para todo o mundo da energia”, afirmou Fatih Birol, diretor executivo da entidade. “Em meio às crises econômicas e de saúde, incomparáveis, de hoje, a queda na demanda por quase todos os principais combustíveis é impressionante, especialmente para carvão, petróleo e gás”, disse ainda Birol.

O levantamento da AIE aponta também que quem vem segurando as pontas são as fontes de energia renováveis – à frente, a solar e a eólica que, somadas, já têm capacidade instalada maior do que as hidrelétricas. Cada vez mais baratas, elas devem crescer 5% este ano e podem atropelar. E em tempos de pandemia, a adoção em massa do transporte coletivo movido a eletricidade ganha mais uma recomendação: “Além de ser mais solução limpa e barata para o transporte, essa energia vai reduzir os gastos com o já sobrecarregado sistema de saúde, afinal, a poluição reduz pelo menos três anos de vida das pessoas nas grandes cidades”, atestou Carlos Nobre, presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. A pandemia deve causar uma redução de 8% nas emissões de CO₂ – seis vezes maior que a de 2009. Não é o suficiente para manter a temperatura do planeta estável; além disso, outro efeito colateral das mudanças climáticas é o surgimento de novas doenças – ou a volta de antigas, como a febre amarela urbana. Mas é uma prova de que é possível reduzir emissões rapidamente.

Em seu recente livro, “O amanhã não está à venda”, Ailton Krenak fez um alerta: “Quem está apenas adiando compromissos, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado. O futuro é aqui e agora, pode não haver ano que vem”. Ou como disse a autora de “Economia donuts”, a economista e pesquisadora do Instituto de Mudança Ambiental da Universidade de Oxford, Kate Raworth, “quando, de repente, temos que nos preocupar com clima, saúde, empregos, moradias e cuidados com a comunidade, existe uma necessidade (…) Não é apenas uma ideia alternativa do mundo”. Não há escolha: passada a pandemia vamos precisar mudar a forma como nos relacionamos com a Terra. E não só em escala planetária: quem nestes dias de isolamento ainda não refletiu sobre o que é essencial e o que é supérfluo para si?

Pequenas mudanças de comportamento podem se tornar hábitos saudáveis – para você e para o mundo. Uma transformação está em curso e ela é tocada por iniciativas individuais ou comunitárias. Curiosamente, o isolamento social pode nos aproximar: laços de solidariedade e de confiança precisam ser formados ou reforçados. No Brasil inteiro, pequenos produtores rurais e artesãos têm se associado para fazer seus produtos chegarem diretamente ao consumidor – que também está se unindo em grupos de compra. Gotinhas que se reagrupam para formar um novo oceano.

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