Gestão incompetente

Gestão incompetente

Uma única empresa de tecnologia americana, a Apple, vale US$ 2 trilhões (cerca de R$ 11 trilhões), um valor maior do que o PIB do Brasil – que não chega a US$ 1,9 trilhão. Mesmo que fosse possível desmatar toda a Amazônia para plantar soja, criar gado e extrair ouro, dificilmente deixaríamos de ser um país pobre. Isso na melhor das hipóteses, pois a ambição máxima do exportador de commodities é conseguir vender o almoço para pagar a janta. Por outro lado, a floresta nos oferece a oportunidade de produzir tecnologia de ponta para o novo modelo econômico que se desenha. Agora, imaginem se a direção da Apple tivesse percebido em 2019 um problema que poderia levar a empresa à beira da falência no ano seguinte e não tivesse feito nada? O governo brasileiro agiu assim em relação aos alertas de que a Amazônia deverá enfrentar em 2020 uma temporada de incêndios ainda mais dantesca do que a do ano passado. Na iniciativa privada, seria caso de demissão.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) avalia que o poder destrutivo das chamas aliado à penetração do novo coronavírus mata adentro pode resultar numa “catástrofe”. A instituição está realizando um estudo para avaliar os efeitos que o encontro da Covid-19 com as queimadas poderá causar na saúde da população local. Em 2019, cidades de Amapá, Pará, Maranhão e Mato Grosso tiveram o maior número de casos já registrados de doenças respiratórias. Segundo dados preliminares, morar em cidades próximas a incêndios florestais aumenta em 36% a possibilidade de a pessoa ser internada. “A exposição à fumaça fragiliza o sistema imunológico, a pessoa fica mais vulnerável às infecções em geral, como a pneumonia. O sistema imunológico fragilizado e com a Covid pode ser uma catástrofe”, disse o pesquisador Christovam Barcellos, um dos coordenadores da pesquisa. Não se trata apenas (sic) do meio ambiente, são mais vidas que serão perdidas.

O inevitável fogaréu é resultado direto das sucessivas quebras de recordes de desmatamento que o país vem batendo desde o início de 2019, causadas não só pelo descaso e por uma política ambiental primitiva, como também pelo mau uso do dinheiro público. Por exemplo: enquanto gastou-se migalhas com prevenção, o Ministério da Defesa acaba de pagar mais de R$ 145 milhões, aparentemente sem licitação, num satélite para monitorar o desmatamento na Amazônia. Este trabalho já é feito, com tecnologia e know-how superiores, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O órgão, criado em 1961, tem sido fonte constante de dor de cabeça para o governo, simplesmente por fazer o seu trabalho – assim como Ibama e ICMBio. Talvez por isso, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações tenha reduzido a zero o seu orçamento para pesquisa em 2021. Depois se o povo chamar o novo satélite de Caô I, não venham reclamar.

A salvação da Amazônia não virá do espaço, tampouco de operações pontuais com nomes escolhidos pelo pessoal do marketing. É preciso tratá-la de forma diferente. Em 2017, um incêndio monstruoso destruiu a região do Pedrógão Grande, em Portugal. Um pequeno sítio foi poupado das chamas, formando uma ilha verde cercada de cinzas e a Intervenção Divina não teve nada a ver com o ocorrido. O fogo parou nas castanheiras, nos carvalhos e nas oliveiras, árvores nativas de Portugal, que cercavam a propriedade. Elas formaram uma barreira natural, pois armazenam água no solo e têm copa volumosa, o que ajuda a baixar a temperatura substancialmente. Incêndios florestais têm sido cada vez mais comuns na Europa e pesquisadores da Universidade do Porto fizeram um estudo que defende o uso das chamadas “paisagens inteligentes” para controlar incêndios. No Brasil, temos os maiores especialistas do mundo nessa área: os povos originários.

Em 1975, quando o Inpe começou a fazer o monitoramento da ocupação da Amazônia, só 0,5% da floresta tinha sido desmatado. Em 1988, essa porcentagem subiu para 5,5% e hoje está em 20%. A história da ocupação humana na região data de 8 mil anos. Neste longo período, só uma parte ínfima da floresta foi abaixo, enquanto em pouco mais de 40 anos nós a reduzimos a 80% do seu tamanho original. A Amazônia desmatada é altamente inflamável, mas de pé é úmida, só queima se alguém tacar fogo. Incêndio na mata é crime. Os indígenas não vivem na floresta, fazem parte dela. Eles conhecem as propriedades de todas as árvores, sabem usar o manejo florestal para combater fogo. É um conhecimento milenar. No momento, a pandemia os obrigou a se recolherem, então pouco podem fazer. Mas depois que isso tudo passar, devemos ter juízo e lhes devolver a direção da Amazônia.

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Riqueza que não se extrai

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Uma foto do ministro do Meio Ambiente sobrevoando uma área devastada por garimpeiros na Amazônia virou meme e viralizou: “Quando eu cheguei aqui era tudo mato”, diz a legenda bolada por algum gênio anônimo da internet. É apenas uma piada, evidentemente, porém baseada em histórias reais e uma síntese perfeita da política do governo para a área. Condenado pela Justiça de São Paulo por ter falsificado mapas para favorecer mineradoras quando era secretário de Meio Ambiente daquele estado, Ricardo Salles tem demonstrado compreensão quase maternal em relação ao garimpo ilegal. Esta condescendência tem sido vista como sinal verde para o crime – e a disparada do preço do ouro no mercado internacional, um incentivo a mais. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 72% do garimpo ilegal praticado na Amazônia, entre janeiro e abril de 2020, aconteceu em terras indígenas e unidades de conservação – ou seja, áreas teoricamente protegidas por lei pelo Estado. Hoje, estima-se que há quase o mesmo número de moradores e invasores na Terra Indígena Yanomâmi, cerca de 27 mil contra 25 mil.

A atividade está matando a floresta. Para extrair ouro da região, os garimpeiros usam mercúrio, que envenena solo e água. O metal é o terceiro poluente ambiental mais perigoso para a saúde humana – a ponto de ter sido banido dos termômetros caseiros. Ele pode levar à morte e deixar danos irreversíveis; ataca diretamente o sistema nervoso central, causando problemas cognitivos e motores, cegueira e doenças cardíacas. Um estudo recente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apresentou um resultado alarmante: das amostras de cabelo de 134 mulheres adultas e 144 crianças Yanomâmi analisadas, 56% apresentaram concentrações de mercúrio acima do limite aceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Foi encontrada uma concentração de 13,87 microgramas por grama (ppm) numa amostra de cabelo de uma criança de apenas 3 anos. É quase sete vezes mais do que admite a OMS (2,0 ppm) e mais do que o dobro do nível em que começam a se manifestar efeitos adversos à saúde (6,0 ppm). Curumins podem ser contaminados pelo leite materno ou mesmo quando ainda estão no útero.

Outra pesquisa recente, realizada em parceria por WWF-Brasil, Fiocruz, Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa) e Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé) apontou que 1/3 dos peixes de rios do Amapá estão contaminados por mercúrio. Entre os que apresentaram os índices mais altos estão os quatro mais consumidos pela população do estado: tucunaré, pirapucu, trairão e mandubé. No pirapucu, foram encontradas concentrações quatro vezes maiores do que admite a OMS. Os Munduruku já não podem mais pescar no Rio Tapajós, um dos maiores afluentes do Amazonas. Nos quatro primeiros meses deste ano, a área desmatada para o garimpo aumentou 13,44% dentro das terras indígenas em relação ao mesmo período de 2019. Em relação às unidades de conservação, a devastação foi 80,62% maior. Segundo o Artigo 231 da Constituição, é proibido garimpar em território indígena. Mesmo assim, Agência Nacional de Mineração (AMN) recebeu 3.481 requerimentos para a atividade. O governo enviou ao Congresso um projeto que regulamenta a mineração nessas áreas, o que fez o olho de muita gente crescer. Enquanto isso, o Ibama, órgão responsável por fiscalizar áreas de preservação, teve seu efetivo reduzido em 55% em 10 anos – 24% só no ano passado.

No ano passado, foram extraídas legalmente 70 toneladas de ouro no Brasil, enquanto outras 20 toneladas saíram pelo ladrão, segundo a Agência Nacional da Mineração (ANM). Isso dá mais ou menos R$ 3 bilhões. Mesmo as terras indígenas são bens da União; ou seja, além de prejudicarem a saúde dos povos originários e ajudarem a destruir a maior barreira natural contra o avanço das mudanças climáticas, esses criminosos estão roubando o seu dinheiro. Agravada pela pandemia, a crise econômica tende a ser boa para os amigos do alheio. Com a alta no preço do dólar, visto hoje como um investimento mais seguro, os negócios prosperaram a olhos vistos no município de Itaituba, no Pará, o principal polo de compra e venda ilegal do metal no país. Somente nos primeiros sete meses de 2020, a arrecadação já é quase metade da alcançada no ano passado. E exemplos como Serra Pelada mostram que esse dinheiro todo não vai parar no bolso do garimpeiro, que muitas vezes é tão vítima desse esquema criminoso quanto nós, mas de quem nunca botou os pés no mato.

Essa história não começou com este governo, é claro. O garimpo ilegal foi se chegando na região nos anos 1950, ganhou um belo empurrãozinho durante a ditadura nas décadas seguintes e continuou crescendo no período pós-redemocratização. Mas talvez nunca estivesse tão claro como hoje que se a Amazônia é um Eldorado não é por causa do ouro que supostamente se esconde sobre o seu subsolo e, sim, por preservar a maior reserva de água doce e a maior biodiversidade do planeta e o conhecimento milenar dos povos tradicionais. Essas riquezas são fundamentais para que a Humanidade marque mais um século de presença no planeta Terra.

#Amazônia #Mineração #MeioAmbiente #PovosIndígenas #Yanomamis #Garimpo #Mercúrio #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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Frágil equilíbrio

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A Amazônia está na corda bamba, equilibrando uma bandeja cheia cristais em cada mão, sem rede de proteção. Cada um desses frágeis utensílios representa um serviço vital prestado pela floresta ao mundo. Se ela cair, caímos juntos. Há anos os cientistas Carlos Nobre e Thomas Lovejoy vêm alertando a população sobre a arriscada caminhada da região rumo ao ponto de inflexão – quando a mata foi devastada a tal ponto que perde seu poder de regeneração e tem início um processo de desertificação irreversível. Este ponto será atingido quando de 20% a 25% da Amazônia tiver ido abaixo. Hoje este número, segundo dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), está em 17%. Cerca de 700 mil km² (o equivalente a 23 Bélgicas) já foram devastados – sendo que desse total, 300 mil km² só nos últimos 20 anos – e a taxa de desmatamento de 2020 deverá ser 186% maior que a de 2012. Basta um sopro para o tombo.

Afora sua influência benéfica no clima do planeta e da quantidade de água que produz (via chuva) e armazena (em rios, lagos e aquíferos), o coronavírus nos deu mais uma razão para preservar a Amazônia. E isso tem a ver com outra riqueza sua, a biodiversidade. Uma pesquisa internacional, liderada University College London (UCL), compilou informações de 184 estudos e chegou à conclusão de que a maior fonte de novas pandemias está no entorno de florestas destruídas. Publicada no início deste mês na revista “Nature”, ela aponta que o desmatamento e a consequente redução da biodiversidade fazem com que cresçam as populações de certas espécies de roedores, aves e morcegos que são os melhores hospedeiros para os microrganismos que podem nos infectar.

Isso tem acontecido com cada vez mais frequência em países africanos e asiáticos e pode tomar efeitos catastróficos se começar a acontecer com igual intensidade aqui também. “Na Amazônia, tem uma quantidade de vírus imensa. A próxima epidemia, com o nível de agressão que nós estamos fazendo ao meio ambiente, já está a caminho”, alertou o médico sanitarista e ex-presidente da Anvisa Gonçalo Vecina. Alguns desses vírus, como “sabiá”, que causa a febre hemorrágica brasileira, uma doença rara e de alta mortalidade, já são conhecidos. Numa área equivalente a um campo de futebol (1,08 hectare) cabem 310 árvores, 96 trepadeiras, 160 pássaros, 33 anfíbios, 10 primatas e 1 bilhão de invertebrados. Eles formam uma barreira viva contra doenças – que, como vem mostrando a Covid-19, podem rapidamente se espalhar pelo globo.

O mito da Amazônia como fruto intocado da natureza começou a ir ao chão mais ou menos na época em que Carlos Nobre e Thomas Lovejoy lançaram seus primeiros estudos sobre o seu ponto de inflexão. Hoje já se conhece o papel fundamental dos povos originários em sua exuberância. O solo original da região é pobre; os indígenas o tornaram fértil ao misturá-lo com restos de cerâmica, carvão e resíduos orgânicos. Eles cobriram 10% da Amazônia com essa mistura chamada “terra preta”. Criaram uma civilização milenar que chegou a ter uma população de milhões de pessoas, mas que desapareceu, repentinamente, no século XVI. O motivo mais provável é o mesmo que assombra seus ancestrais hoje. “Os europeus encontraram povos com rara suscetibilidade a doenças, que se espalharam como fogo em palha seca”, explicou o biólogo Charles Clement, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). A Amazônia é obra deles; sem os povos indígenas não conseguiremos salvá-la – e nos salvar.

#Amazônia #Desmatamento #MeioAmbiente #MudançasClimáticas #Pandemia #Covid19 #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta

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O sonho brasileiro

O sonho brasileiro

“Existe um sonho brasileiro?”, provocou o economista Eduardo Giannetti, numa live produzida por Uma Gota no Oceano. Afinal, o que se espera do Brasil? A gente sabe que o sonho americano, datado do início do século passado, vem embalado na crença de que qualquer um pode vencer na vida. Mas o que significa, afinal, “vencer na vida” em 2020, com uma pandemia na sala de estar e uma crise climática arrombando a porta? Em conversa com o presidente de nosso conselho, o arquiteto e urbanista Miguel Pinto Guimarães, o autor de “Trópicos utópicos” (2016) e “O elogio do vira-lata” (2018) disse acreditar que é hora de o Brasil aspirar a criar sua própria utopia e se tornar o preconizado país do futuro: “Devíamos mobilizar nossas energias na construção de um novo modelo civilizatório”. Não tem saída: o coronavírus nos mostrou que temos que reinventar nossa relação com o meio ambiente. “Vamos ter que nos repensar à luz dessa disfunção de metabolismo entre sociedade e mundo natural”, disse Gianetti.

Ao lidar com forças que estão além de seu controle, a Humanidade acabou se tornando vítima delas – a destruição do meio ambiente ajudou a deflagrar epidemias e a acelerar as mudanças climáticas. Para o economista, que foi colaborador da candidata à Presidência, ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, além de sua biodiversidade o Brasil tem outra característica que o credencia a conduzir essa mudança, a sua multiculturalidade: “O elemento afro-indígena nos dá a possibilidade de construir algo original juntando elementos tão diferentes”. É preciso mudar a forma de pensar antes de começar a agir diferente. “A floresta era vista como um inimigo a ser vencido, um obstáculo ao desenvolvimento. Hoje, podemos afirmar que crescer 7% destruindo o patrimônio ambiental é muito pior do que crescer 3% preservando este mesmo patrimônio” disse Gianetti.

E dá para crescer bem mais. Em outra conversa online com Miguel, o cofundador e pesquisador sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Beto Veríssimo, apontou o caminho: a bioeconomia. “Tudo que é da natureza tem potencial econômico, as fibras, as resinas, os óleos. O Brasil perdeu a corrida da industrialização e se apoia basicamente no agronegócio. Nenhum país se desenvolve ancorado somente na agropecuária. É preciso produzir bens tecnológicos. Nos anos 1960, o Brasil se encontrava no mesmo patamar que a Coreia do Sul e hoje ela está muito mais avançada do que a gente”. O cacau sai da Amazônia para virar chocolate suíço ou belga. Para Veríssimo, é preciso agregar valor ao cacau, algo que não vem sendo feito: “A bioeconomia é uma dessas janelas de oportunidades, mas o Brasil não está fazendo o dever de casa. Além de não ter políticas públicas dirigidas para o desenvolvimento de tecnologias para a área e de não conseguir atrair investimento privado, ainda está destruindo os recursos naturais que são a base dessa futura economia”. A floresta já desempenha um papel enorme em nossa economia. Ela gera bens e serviços que são vitais para o agronegócio, a medicina, a alimentação etc., mas ainda não conseguimos dimensionar todo o seu potencial. “A Amazônia é uma grande Biblioteca de Alexandria da natureza. Só que nossa capacidade de ler essa biblioteca é muito limitada, seja por incapacidade de nossa ciência, seja pelo fato de que o conhecimento ancestral sobre ela foi dizimado nos séculos XVI e XVII. Conhecimento empírico que os povos da floresta acumularam por 15 mil anos e que a ciência moderna pode levar mil anos para recuperar”, explicou o pesquisador.

O Brasil já tirou da Amazônia o equivalente aos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro juntos. E 90% dessa área desmatada está abandonada ou subaproveitada. Segundo Veríssimo, é possível aumentar a produção sem sacrificar a floresta e o clima. “Até 2030 a agropecuária pode ocupar essas áreas, sem a necessidade de desmatar um único hectare, e ainda sobrariam partes que a gente poderia restaurar, principalmente as próximas a cabeceiras de rios”, disse ele. Fora que o modelo de desenvolvimento adotado na região, com base no desmatamento e em grandes projetos de infraestrutura, não gerou prosperidade para quem vive lá. “Hoje a Amazônia está relativamente mais pobre do que quando era floresta. Nos anos 1940, o estado do Pará tinha a economia voltada para o extrativismo e era o sétimo PIB per capita do Brasil; em 2010, com 25% do território desmatado, era o maior produtor de minério de ferro, exportava carne bovina e soja, tinha grandes hidrelétricas, mas era o 21º PIB per capita”, exemplificou Veríssimo.

O mundo inteiro já sabe que não há solução para a questão da mudança climática se a Amazônia não continuar de pé. “Há uma pressão externa monumental. Boa parte dos donos do dinheiro do mundo não querem investir no Brasil. Isso, aliás, já estava ficando claro antes mesmo da pandemia, no encontro do G-20 em Davos. Ninguém queria saber da nossa reforma da previdência, mas de proteção da Amazônia”. A conta das sanções internacionais será paga por todos nós. Ainda temos a chance de reverter esse processo, mas Veríssimo lembra que, para isso, será preciso também haver mudanças em nossas dimensões espiritual e ética. É preciso ter a consciência de que a natureza tem o direito de existir; recuperar ao menos parte do conhecimento daqueles que viveram na maior floresta tropical do mundo antes de nós. Este deveria ser o sonho brasileiro.

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A ema abre o bico

A ema abre o bico

Ema não é de falar muito; na verdade só o macho abre o bico e, mesmo assim, exclusivamente para passar cantada na gente em época de acasalamento. Por isso até agora eu não tinha dado um pio. Mas não vou esconder a cabeça num buraco como a prima avestruz: sou emancipada – aqui em casa é meu companheiro quem toma conta dos filhotes – e arco com as consequências de meus atos. Biquei, biquei outra vez e bico de novo se for preciso. Já tínhamos recebido hóspedes inoportunos no Alvorada, mas nenhum tão declaradamente hostil à natureza. E ainda vem me oferecer agradinho? Isso me ofende. Quer minha simpatia? Mude de atitude. Não sou pra qualquer bico.

Nós, emas, somos a elegância em forma de bípede, as maiores, mais majestosas e modestas aves da América do Sul. Chegamos aqui quando era tudo mato e vivemos do Pampa à Caatinga. Mas enquanto eu desabafo e tiro onda, uma de nossas casas mais belas, o Pantanal, a maior planície alagada do planeta, arde em chamas como nunca. Entre 1º de janeiro e o último dia 28 foram detectadas 3.415 queimadas na região. É o maior número registrado desde 1998, quando o monitoramento começou a ser feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e 189% maior que o do mesmo período no ano passado. Mais de 300 mil hectares já pegaram fogo.

É vero que o Pantanal foi incluído, junto com a Amazônia, no decreto do governo federal que proibiu as queimadas por 120 dias. Mas logo nos primeiros 15 dias de julho, já com a moratória valendo, houve um aumento de 12% em relação ao mesmo período de 2019, em Mato Grosso. O governador do estado decretou situação de emergência ambiental. Os incêndios são criminosos, mas dados do Inpe mostram que o volume de chuvas no bioma foi metade do normal no período de janeiro a maio. E a vegetação seca faz o fogo se alastrar com mais facilidade. O engenheiro agrônomo e doutor em Geografia Física Felipe Dias, diretor executivo do Instituto SOS Pantanal, explica que os rios também não inundaram a região como costuma acontecer nesta época do ano: “Deveríamos estar no nível de cheia máxima, principalmente no Rio Paraguai. Agora, a área sem inundação está vulnerável a incêndios, especialmente diante da atual condição de baixa umidade do solo e do ar”. Segundo Dias, esta situação pode ser comum no futuro, já que o regime de chuvas foi completamente zoado pelas mudanças climáticas.

Amazônia (com 60,93%), Cerrado (30,95%) e Pantanal (8,12%) concentram o maior número de queimadas no primeiro semestre. Isso não acontece por acaso: os três biomas estão intimamente ligados. É a Amazônia que rega o Cerrado, por meio das nuvens que se formam na floresta e que são carregadas para lá pelo vento, os chamados “rios voadores”; e é o Cerrado, a “caixa d’água do Brasil”, que inunda o Pantanal. As emas não vivem na Amazônia – preferimos desfilar nossa graça por planícies de vegetação baixa – mas, assim como acontece com todo mundo, somos afetadas pelo que acontece lá. O país vem batendo sucessivos recordes de desmatamento desde 2019. Piscou e lá se foi um campo de futebol abaixo. Em carta aberta divulgada no dia 27, mais de 600 servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) afirmam que o desmatamento neste ano na Amazônia pode ser 28% maior que no ano anterior – e que na comparação com 2018, o aumento é de 72%. Ou seja, a situação tende a piorar. Vou abrir o bico aqui de novo: a missiva foi dirigida ao vice-presidente Hamilton Mourão, que ora preside o ex-extinto Conselho Nacional da Amazônia. Já sabem de quem cobrar.

Ainda não é possível afirmar com certeza a origem deste coronavírus, mas é consenso que o desequilíbrio climático, a destruição do meio ambiente e o tráfico de animais silvestres são a porta de entrada para pandemias – e a Covid-19 tem servido de base para novas pesquisas nesta área. Acusado sem provas, o morcego chinês estava na dele, vocês é que foram chegando cada vez mais perto de sua casa – assim como o presidente veio parar na minha. “A relação entre desmatamento e tráfico de animais silvestres e o surgimento de doenças emergentes é muito bem estabelecida. Mesmo assim, ações ambientais estão essencialmente fora da agenda de prevenção de pandemias”, disse Mariana Vale, professora do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Até agora nenhuma ema contraiu a Covid-19, mas vou dar minha bicada: Mariana participou de um estudo recém-publicado na revista “Science”, feito por cientistas de Brasil, Quênia, China e Estados Unidos. Ele concluiu que combater o contrabando de animais e frear a degradação de florestas tropicais sairia muito mais barato que combater doenças, uma economia entre US$ 22 bilhões e US$ 31 bilhões por ano. O estudo compara este valor com os US$ 2,6 trilhões perdidos até agora para a Covid-19, além das mais de 600 mil vidas humanas.

O presidente outro dia veio me oferecer cloroquina – sorte dele que eu estava bem-humorada – e, segundo foi divulgado em entrevista coletiva do Ministério da Saúde no dia 24, o governo federal distribuiu 100.500 comprimidos do medicamento para nossos irmãos indígenas. Como a transparência nas contas públicas não é o forte deste governo, sabe-se lá quanto essa medida inadequada custou aos cofres públicos; mas é quase certo que o remédio não tem nenhuma eficácia contra a doença além de provocar graves efeitos colaterais. Que tal prevenir em vez de remediar? Bom, já disse tudo o que estava entalado aqui no meu gogó. Depois não adianta gemer no tronco do juremá.

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