setembro 2022 | Cultura
Por Vinícius Leal*
Se fosse um país, a Amazônia Legal – que inclui Amazonas, Acre, Pará, Amapá, Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Maranhão e Tocantins –, com seus 5 milhões de km², seria o sexto maior do mundo. A floresta, que se espalha por uma área de 7,8 milhões de km² no total, cobrindo também Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela, Equador, Guiana, Guiana Francesa e Suriname, abriga um terço das árvores do mundo, além de 20% da água doce. Seus serviços ambientais – que vão desde mandar chuva para boa parte da América do Sul a ajudar a regular o clima do planeta – são reconhecidamente inestimáveis. Nossa própria existência depende de sua sobrevivência.
Em 2007, essa jovem senhora de 2,5 milhões de anos de idade, casa de 38 milhões de pessoas (28,1 milhões no Brasil, segundo estimativa de 2020), ganhou uma data comemorativa para chamar de sua: o 5 de setembro. Não é de hoje que ela vem sendo saqueada por gente que não enxerga um palmo de futuro adiante do nariz, mas a pilhagem vem crescendo vertiginosamente nos últimos anos. Por isso, outro fruto da terra, tão valioso quanto a sua biodiversidade, que é a sua cultura multifacetada, plantou a ideia de fazer este Dia da Amazônia não passar em branco, mas em verde. Até o dia 10 acontece uma virada cultural com o objetivo conscientizar a população sobre a necessidade de protegê-la, com eventos em sete estados da Amazônia Legal – e outros 15 Brasil afora.
“É por meio da cultura que a gente aprende a se relacionar com as pessoas, conversar e dialogar e, sobretudo, aprende a aprender. São as culturas dos povos da Amazônia que podem ensinar o que é o bem viver, o que é a política do compartilhamento de bens, saberes e, sobretudo, do compartilhamento daquilo que se colhe da natureza”, explica a jornalista, cineasta e produtora cultural Joyce Cursino, que coordena e integra diversos eventos nos estados da Amazônia dentro da programação da virada cultural. Ou seja, a viver da e na floresta de forma sustentável. E haja povos e culturas diferentes. Só indígenas, são mais de 180, cada qual com conhecimentos próprios.
Há também quilombolas – 873 comunidades, segundo dados preliminares do IBGE, que começou em agosto o primeiro censo oficial desta população –, seringueiros, ribeirinhos, pescadores artesanais, agricultores familiares, piaçabeiros (que vivem da extração da fibra da palmeira da piaçava, utilizada na fabricação de vassouras) e peconheiros, que tiram seu sustento do açaí. E, para que não restem dúvidas, garimpeiros não são um povo tradicional da floresta, como querem alguns. “A cultura amazônida é invisibilizada por um pensamento eurocêntrico, que põe à margem outros saberes e conhecimentos. Não haverá democracia, justiça e transformação social enquanto as culturas dos povos brasileiros não estiverem no centro do debate político, social e ambiental desse país”, reforça Joyce.
Mas se a puseram à margem, essa cultura se espalha de forma literalmente marginal. A Bacia do Amazonas, a maior da Terra, tem 25 mil km de rios navegáveis. Muito antes da invenção da internet era por essa via que ela já circulava e os amazônidas trocavam informações, formando uma espécie de rede. Quem já teve o prazer de fazer uma viagem de barco entre Manaus e Belém, as duas maiores cidades da região, é testemunha desse intercâmbio e diversidade. Cada cidade, comunidade ou povoado tem suas peculiaridades. E mesmo os povos mais antigos sabem que a cultura é dinâmica e que todo conhecimento tem sua utilidade.
A virada cultural pelo Dia da Amazônia acontece não só em cidades da região, como Belém, Manaus, Macapá e Santarém, mas em outras espalhadas pelo Brasil, porque preservar a maior floresta tropical do planeta é do interesse de todos os brasileiros: São Luís, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte também estão na lista. A intensa programação terá atrações gratuitas que vão dos shows musicais a cine-debates, saraus, passeios e mobilização nas ruas; um conglomerado multicultural com mais de 520 atividades espalhadas por 22 estados brasileiros.
Arte e ciência também têm um caráter subversivo do bem, ambas têm o poder de passar mensagens subliminares, que são compreendidas somente por seus destinatários. “A gente acredita no poder da cultura de transformação social, de movimentar imaginários e atingir diversos territórios. A cultura é capaz de ‘hackear’ os sistemas e, através de sua voz, a gente pode falar coisas que muitas vezes são censuradas. Historicamente, a cultura tem um papel muito importante em movimentos sociais e políticos”, explica Helena Ramos, uma das coordenadoras da iniciativa.
A mobilização pró-Amazônia pretende validar a cultura como uma ferramenta de luta pela proteção da floresta e, principalmente, pelo reconhecimento dos povos tradicionais que ajudam a manter essa biodiversidade. E esse reconhecimento começa com a garantia de proteção desses territórios, por meio da demarcação de terras indígenas, titulação de comunidades quilombolas e defesa de outras áreas de proteção ambiental onde vivem ribeirinhos, extrativistas e tantos outros povos amazônicos. Reconhecidamente os guardiões da floresta, as populações tradicionais são capazes de frear a derrubada da mata nativa e, assim, preservar essas áreas altamente vulneráveis. Uma das principais metas da virada cultural Amazônia de Pé é justamente turbinar essa colheita.
“Somos a última geração que pode salvar a Amazônia”, diz o mote da mobilização. Sentiram a responsa? “A ideia é que, na semana do Dia da Amazônia, todos os equipamentos culturais, todos os artistas, onde quer que estejam, falem sobre isso”, diz Helena. Ou seja, o convite é aberto a todos. Mais do que nunca, a Floresta Amazônica precisa que a gente ponha a boca no trombone – e no microfone.
*Vinícius Leal – jornalista com experiência em produção de notícias, redes sociais e comunicação estratégica em meio ambiente e povos tradicionais – é correspondente na Amazônia da Uma Gota no Oceano.
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agosto 2022 | Amazônia, Cultura, Direitos humanos
Por Vinícius Leal*
Não é coisa de cinema, muito menos a lei da selva: a luta para se manter vivo na Amazônia é uma rotina real de quem habita a região e não é natural dela. Seja no meio da floresta, na beira do rio ou nas periferias das grandes cidades, cresce o acirramento das disputas pelo controle desses territórios, tomados à força por grupos criminosos ligados ao garimpo, grilagem, narcotráfico, pesca e extração de madeira clandestinas. Violência que vem aumentando a cada ano – das 30 cidades mais violentas do país, dez estão na região amazônica – e que, somada à desigualdade e ao abandono estatal, ocupa os noticiários ao redor do mundo. A dura realidade está se impondo.
Mas esse não é o único espaço que as histórias amazônidas estão conquistando: elas também vêm ganhando notoriedade na produção audiovisual e ocupando um lugar de prestígio no cinema brasileiro e internacional, pondo em evidência não só a narrativa indígena, como alçando os próprios povos tradicionais à condição de diretores, atores, roteiristas e produtores. Olhares e fazeres que ajudam a retratar uma realidade agonizante e febril, mas que também se apresenta resiliente e poética.
“A última floresta” (2021), documentário com elementos de ficção dirigido por Luiz Bolognesi, que assina o roteiro junto com a liderança Yanomami Davi Kopenawa, retrata bem esse cenário: um grupo de indígenas isolados tenta manter vivas suas tradições espirituais enquanto enfrenta e expulsa garimpeiros de seu território. Já disponível na plataforma de streaming Netflix e premiada em diversos festivais de cinema, incluindo os de Berlim e Seul, e no 21º Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, a obra retrata o cotidiano daquele povo no Brasil atual: segundo o último levantamento da Hutukara Associação Yanomami, divulgado em abril, há mais de 20 mil garimpeiros atuando em seu território, situado entre o Amazonas e Roraima, onde vivem cerca de 26 mil indígenas. O ritmo desacelerado do roteiro transmite bem a energia de quem vive dentro da floresta, um leve contraste diante da impactante realidade de fome, miséria e doenças causadas pela tragédia humana da busca incessante por ouro nos garimpos, financiados por grupos de empresários que fornecem aeronaves, combustível e constroem pistas de pouso ilegais – e movimentadíssimas – no meio da mata.
Outra obra cinematográfica que escancara essa Amazônia violentada pelo crime organizado é “O Território” (2022), longa documental que mostra os desafios enfrentados pelos Uru-Eu-Wau-Wau para se manterem vivos em suas terras ancestrais, no estado de Rondônia. Premiado em Sundance e em mais de 10 festivais pelo mundo, o filme, dirigido pelo norte-americano Alex Pritz e com produção executiva de Txai Suruí, jovem indígena que denunciou as violências contra seu povo na COP26, tem previsão de estreia no Brasil em setembro. “O Território” mostra como os próprios Uru-Eu-Wau-Wau arriscam suas vidas num grupo de monitoramento e vigilância constante da floresta para proteger o bioma e suas aldeias de grileiros e invasores, como os que mataram Ari Uru-Eu-Wau-Wau, espancado até a morte em abril de 2020, com destaque para os atores estreantes Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau e Neidinha Suruí, lideranças indígenas da região.
Já “Noites alienígenas” (2022) acabou de ganhar nada menos que seis Kikitos, o prêmio máximo do Festival de Cinema de Gramado, inclusive o de melhor filme. O longa de ficção acreano foi o grande destaque da edição especial de 50 anos do evento, o primeiro presencial depois do início da pandemia, e que homenageou o ator e ativista socioambiental Marcos Palmeira. Dirigido por Sérgio de Carvalho, “Noites alienígenas” traz à cena essa “nova Amazônia urbana”, com facções criminosas disputando “na bala” o comando de bairros e cooptando jovens para se tornarem soldados do narcotráfico – uma realidade já vivida por comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas espalhadas por territórios localizados nas fronteiras do Brasil com o Peru e a Colômbia e, também, nos municípios do interior e nas periferias da Amazônia.
Com estreia comercial prevista para 2023 e um elenco que uniu o veterano Chico Díaz a atores da região, como o indígena amazonense Adanilo e os acreanos Gleici Damasceno e Gabriel Knoxx, o filme conta a história de três jovens na periferia de Rio Branco, capital do Acre, que têm suas vidas impactadas pelo avanço do narcotráfico e pela atuação conflituosa de organizações pelo domínio de territórios para o comércio e o escoamento de drogas. A história, inspirada num livro homônimo escrito também por Sérgio de Carvalho em 2011, precisou ser adaptada para a atualidade, bem mais violenta que há dez anos, e que brinca com os limites entre cidade e floresta.
Já “Pureza” (2020), baseado numa história real, dirigido por Renato Barbieri e com Dira Paes interpretando a protagonista, retrata a luta de Pureza Lopes Loyola. Ela deixa Bacabal, no Maranhão, em 1993, e se embrenha no meio da Amazônia profunda para resgatar o filho de uma situação análoga ao trabalho escravo, num garimpo no Pará. Hoje considerada uma heroína abolicionista, cuja atuação libertou mais de 57 mil pessoas de condições análogas à escravidão, Pureza desnuda uma realidade ainda comum para quem decide ganhar a vida em campos de mineração ilegal no país. O filme, vencedor de 28 prêmios nacionais e internacionais, e disponível no streaming da Globoplay, também entra no rol dessa nova cinematografia que expõe uma Amazônia violenta e sem lei.
Outra produção audiovisual que retrata a ameaça do garimpo na Amazônia é o documentário “Amazônia: a nova Minamata”, que tem previsão de lançamento para o segundo semestre deste ano, mas que teve uma exibição prévia de um corte exclusivo no histórico Acampamento Terra Livre (ATL) deste ano, que reuniu mais de 8 mil indígenas em Brasília. Tendo como pano de fundo a luta do povo Munduruku, no Pará, contra o garimpo ilegal, o documentário do diretor Jorge Bodanzky acompanha a atuação de médicos e pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre a crise de saúde pública na população indígena, causada pela contaminação por mercúrio de garimpo ilegal na região do Rio Tapajós.
O documentário de Bodanzky traça um paralelo entre a realidade amazônica e a catastrófica contaminação por metais pesados ocorrida na década de 1950 na cidade de Minamata, no Japão. A intoxicação de mercúrio no solo, em rios e em peixes pela busca do ouro na Amazônia, também fora das telas, é uma tragédia ambiental e humana que vem afetando milhares de pessoas tanto em comunidades indígenas e tradicionais como nas cidades, comprometendo inclusive o turismo em Alter do Chão.
Em comum, essas e tantas outras obras audiovisuais que despontam Brasil afora têm muito mais do que os enredos sobre populações impactadas pelas diversas formas de violência que afetam a Amazônia, ou mesmo a “assinatura” dos povos tradicionais, cada vez mais protagonistas de suas próprias histórias. Elas são, também, uma ferramenta de luta pela proteção dos direitos e territórios desses povos. É a arte imitando a vida, ecoando a resistência dos povos amazônidas e nos provocando a refletir sobre nosso papel na proteção dessa sociobiodiversidade, como consumidores da floresta e da arte que vem dela.
*Vinícius Leal – jornalista com experiência em produção de notícias, redes sociais e comunicação estratégica em meio ambiente e povos tradicionais – é correspondente na Amazônia da Uma Gota no Oceano.
Saiba mais:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/txai-surui/2022/08/demarcando-o-espaco-indigena-nas-telas.shtml
https://www.festivaldegramado.net/es/noites-alienigenas-e-o-melhor-filme-de-longa-brasileiro-do-50o-festival-de-cinema-de-gramado/
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/festival-de-cinema-de-gramado/2022/noticia/2022/08/13/marcos-palmeira-recebe-o-trofeu-oscarito-no-50o-festival-de-cinema-de-gramado.ghtml
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2022/08/20/coproduzido-por-txai-surui-o-territorio-leva-luta-dos-uru-eu-wau-wau-aos-cinemas-americanos.htm
https://www.dw.com/pt-br/s%C3%B3-se-fala-da-amaz%C3%B4nia-quando-h%C3%A1-uma-trag%C3%A9dia-diz-jorge-bodanzky/a-52407978
https://protecao.com.br/geral/filme-pureza-conta-a-heroica-historia-da-maranhense-que-lutou-para-livrar-o-filho-do-trabalho-escravo-contemporaneo/
https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/yanomami-sob-ataque-garimpo-ilegal-na-terra-indigena-yanomami-e-propostas-para
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2022/06/13/interna_nacional,1372987/violencia-na-amazonia-e-estimulada-pela-omissao-no-combate-ao-crime.shtml
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/06/28/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica-2022.htm
https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/08/14/fantastico-revela-rede-de-avioes-e-helicopteros-a-servico-do-garimpo-ilegal-na-amazonia.ghtml
https://www.nytimes.com/interactive/2022/08/02/world/americas/brazil-airstrips-illegal-mining.html
Garimpo faz malária e desnutrição infantil explodirem entre os Yanomami
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/07/policia-prende-suspeito-de-matar-ari-uru-eu-wau-wau-lider-indigena-em-ro.shtml
https://portalamazonia.com/amazonia/faccoes-criminosas-veja-quais-sao-e-onde-atuam-na-amazonia-legal
https://globoplay.globo.com/v/10874252/
agosto 2022 | Povos Tradicionais, Quilombola
por Selma dos Santos Dealdina*
Aquilombar é acolher. Muito mais que esconderijos, os quilombos eram abrigos. Não protegiam apenas quem fugia da escravidão, mas de qualquer forma de opressão. Um relatório de 2012, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, calculou que havia cerca de 214 mil famílias e 1,17 milhão de quilombolas no Brasil, estimativa reconhecidamente modesta, tendo em vista que a demografia quilombola só será conhecida a partir do resultado do Censo 2022. Nós, negros, somos a imensa maioria nos quilombos, 92,1%, segundo a mesma pesquisa — não é para menos, já que sempre fomos os mais oprimidos. Mas há quilombolas de todas as cores e credos. Aquilombar o Brasil, portanto, significa tornar o país a casa de todos. É lutar por justiça e igualdade.
Essa é a principal razão de lançarmos o Quilombo nos Parlamentos, uma iniciativa da Coalizão Negra por Direitos, que reúne 250 movimentos sociais e associações — como a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que representa cerca de 6 mil quilombos. Queremos formar no Congresso uma bancada que olhe para quem mais precisa, além de garantir nossos direitos constitucionais, que vêm sendo constantemente desrespeitados.
Em agosto, o IBGE começa a fazer o primeiro censo quilombola oficial, quando finalmente saberemos quantos realmente somos. Segundo os dados preliminares do instituto, existem 5.972 quilombos no Brasil, presentes em 1.674 municípios de 24 estados. Mas só 4% deles estão titulados. As negligências de sucessivos governos têm acentuado as desigualdades no acesso aos direitos e propiciado o desmonte de muitas políticas públicas — caso do atual governo. Ser negro no Brasil é como viver num filme de terror: 75% das pessoas assassinadas são negras, assim como oito em cada dez mortas pela polícia. Segundo o “Atlas da Violência 2020”, assassinatos de negros aumentaram 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto os de não negros diminuíram 12,9% no mesmo período.
No Congresso, só 17,8% dos parlamentares são negros. Somos a maioria da população brasileira (56%), porém chamada de minoria; quilombolas são minoria mesmo, tratados como minoria das minorias. Segundo o presidente, somos pesados em arrobas, como animais, e não servimos nem para procriar. No momento, o Quilombo nos Parlamentos reúne cerca de cem pré-candidaturas às casas legislativas federal, estaduais e ao Senado.
Nós, quilombolas, também somos vítimas de uma política de invisibilidade por parte da sociedade brasileira, intensificada no atual governo. Tirando os indígenas, só há imigrantes neste país. Nossos ancestrais foram sequestrados e trazidos para cá, mas fizeram desta terra sua casa e a amam para além das riquezas materiais que ajudaram a produzir. O que seria do Brasil sem sua herança negra?
Temos uma cultura própria e o direito constitucional de conservá-la, pelos artigos 215 e 216 da Constituição. Nossos modos de vida salvaguardam as vegetações nativas dos biomas brasileiros. Nossas tradições ajudam a preservar a natureza, a medicina e a agricultura tradicionais e a biodiversidade. Mas há o desejo de minimizar nossa importância na construção deste país; não fomos/somos apenas corpo, força bruta, mas também inteligência, criatividade e alma. Aquilombar é preciso!
*Selma dos Santos Dealdina é secretária administrativa da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)
agosto 2022 | Desmatamento
É num piscar de olhos: 18 árvores foram derrubadas por segundo na Amazônia em 2021. A estimativa do Mapbiomas, parece daqueles números impossíveis de se imaginar. Já de acordo com o sistema de alerta do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), desmatou-se 16.557 km² de florestas no ano passado no Brasil, o equivalente a quase três vezes a área do Distrito Federal – e um número 20% maior que o de 2020. Piscou, perdeu: a destruição nos primeiros quatro meses do ano foi 1.968 km², um aumento de 70,7% em relação a 2021, um recorde de velocidade absoluto. Mas não adianta chorar sobre a árvore derrubada; é hora de frear esse trator desgovernado.
Por exemplo: já é possível medir o tamanho do estrago de uma das maiores obsessões deste governo, a liberação da mineração em terras indígenas. Uma pesquisa da Escola Politécnica (Poli) da USP calcula que, em 30 anos perderíamos 7.626 km² de Amazônia abrindo só dez áreas do Amapá e do Pará para o garimpo. Isso dá cinco vezes o tamanho do município de São Paulo.
O estudo da Poli, publicado na revista “Nature Sustainability, usou como exemplos a Renca (Reserva Nacional de Cobre e Associados), duas terras indígenas e várias áreas de preservação. “Metade de todo esse desmatamento aconteceria em áreas de alta importância para conservação da biodiversidade, evidenciando a importância do estabelecimento de áreas protegidas, em que a mineração e seus impactos não são permitidos”, explica Juliana Siqueira-Gay, engenheira ambiental e coautora da pesquisa.
Só no primeiro momento, com o trabalho de escavação de novas minas, a Amazônia perderia 183 km² de floresta. Para se ter uma ideia, todo o parque de mineração do Pará atual, o estado da região onde a atividade é mais praticada, ocupa 337 km². A destruição total de 7.626 km² calculada pelo estudo seria atingida em seguida, por vias indiretas, como a construção de infraestrutura – pistas de pouso, estradas e depósitos.
Além do tamanho do prejuízo para o meio ambiente, outra coisa já se sabe de antemão: o lugar de onde essa riqueza é extraída é o menos favorecido por ela. O ouro vai embora e ficam a violência, a morte de rios e lagos, e a destruição do verde. A liberação da mineração em terras indígenas é uma medida defendida somente pelo governo, pois mesmo as grandes mineradoras já se manifestaram contra. Em nome de quê?
A Amazônia já foi uma grande fornecedora de oxigênio, mas hoje emite mais CO₂ do que absorve; já foi chamada de ar-condicionado do planeta, porém já existem partes da floresta que hoje são fontes de calor. Mondo afora a situação não está melhor: as metas do Acordo de Paris já estão totalmente ultrapassadas e um estudo do Centro de Biodiversidade e Mudanças Climáticas do Instituto de Pesquisa de Produtos Florestais e Florestais, no Japão, concluiu que a área de floresta per capita no mundo diminuiu 60% em 60 anos.
Está em nossas mãos botar o clima do planeta nos trilhos. Se a gente fizer o trabalho direitinho, termina o serviço num piscar de olhos. Tem um belo atalho bem à nossa frente, ele se chama eleição.
Saiba mais:
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julho 2022 | Desenvolvimento Sustentável, Desmatamento, Direitos humanos
O presidente aproveitou o lançamento de sua candidatura à reeleição para anunciar um negócio da China que é um presente de grego. Disse, com pompa e circunstância, que finalmente conquistaríamos “nossa saída para o Pacífico”. Para nós, a estrada que une Acre a Pucallpa, no Peru, uma das opções mais consideradas, seria um desastre. A Conservation Strategy Fund calcula um prejuízo social de quase R$ 1 bilhão; já para os chineses, que Jair Bolsonaro trata como inimigos da boca pra fora – alguém se esqueceu que ele chamava a Coronavac, que salvou as vidas de milhões de brasileiros, de “vachina”? – a cicatriz aberta na Amazônia seria a realização de um sonho: economizar no pedágio do Canal do Panamá. Só que a rodovia também serve de atalho para a destruição e até para o narcotráfico.
O governo diz querer distância da China, mas com a rodovia Pucallpa-Cruzeiro do Sul está praticamente criando uma fronteira entre os dois países. Os chineses são nossos principais parceiros comerciais: só no ano passado, 32% dos US$ 280 bilhões que exportamos foram para eles – quase o triplo do que vendemos para os EUA. O agronegócio brasileiro praticamente trabalha apenas para encher as barriguinhas chinesas. Segundo o Departamento de Agricultura dos EUA, devemos exportar 100 milhões de toneladas de soja para a China em 2022/23. Isso dá quase toda a safra colhida na temporada 2021/22, estimada em 122,76 milhões de toneladas. A maior parte vai virar ração de porco.
Não precisava ser assim. Há caminhos que têm se mostrado sustentáveis e vantajosos economicamente para os dois lados: a necessária produção de alimentos e a conservação da natureza. Mas o governo faz com que o que é bom para o agro seja péssimo para o meio ambiente e para os povos tradicionais. A rodovia, de 152 km de extensão previstos, deve cortar o Parque Nacional Serra do Divisor e pelo menos 30 terras indígenas. As obras começaram em novembro de 2019, com a abertura de uma trilha de 90 km até Puccalpa. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), dirigido pelo general da reserva Antônio Leite dos Santos Filho, atropelou geral: ignorou a necessidade de estudos de viabilidade técnica e de impactos ambientais e a determinação da Convenção 169 da OIT, que prevê a consulta e o consentimentos prévios dos povos originários.
Ambientalistas e indígenas protestaram, mas de nada adiantou: “Sou contra. A devastação que vai trazer é muito grande, e nunca fomos consultados. Se alguém tivesse feito uma consulta, perguntado a nossa posição eu saberia dizer”, diz o cacique Joel Puyanawa, uma das principais lideranças da região. Para continuar na contramão, o Dnit usou a lei nº 5.917/73, herança da ditadura que que criou o Plano Nacional de Viação; o decreto nº 2.375, de 1987, que considera indispensáveis à segurança nacional terras públicas em regiões de fronteiras; e uma portaria do próprio departamento, de 2008.
Em dezembro, a Justiça Federal brasileira chegou a ordenar a paralisação das obras, mas ela continuou de forma clandestina, segundo a Apiwtxa – Associação Ashaninka do Rio Amônia. O desmatamento no Acre vem disparando: entre 1º de janeiro a 31 de outubro de 2021 foram abaixo 871 km² de floresta, a maior extensão em 18 anos. As portas foram abertas para a entrada do crime. “O impacto disso será muito grande, com a migração de grupos ao longo desta rodovia, trazendo para próximo da nossa fronteira e para a cabeceira dos nossos rios, extração de madeira ilegal, tráfico de drogas e outras ações ilícitas”, afirma Francisco Piyãko, liderança Ashaninka da Apiwtxa.
Hoje, o Peru é um dos maiores produtores de cocaína do mundo. O narcotráfico no país vem crescendo, estimulado pelo aumento da demanda do mercado brasileiro e, também, pela busca de novos territórios por grandes organizações criminosas do Brasil. Elas vem expandindo seu domínio para além de nossas fronteiras, levando junto a violência. “Tem comunidade que está sofrendo com os impactos que já ocorreram, pelas drogas que invadiram seus territórios, pela prostituição que viveram dentro do seu território, pelas quedas de lideranças que hoje deixaram os seus territórios, porque essas empresas os levaram ou até mesmo os mataram”, conta a liderança Ashaninka Benki Piyãko. Essa situação tem ligação direta com os assassinatos d e Bruno Pereira e Dom Phillips.
E ainda há a ameaça da mineração ilegal, que pode contaminar os rios Ucayali, Sheshea, Genepanshea, Amônia, Dorado, Juruá, Arara, Breu e Huacapishtea. “Esse talvez seja o lugar do mundo que tem uma qualidade que está tão pura, que não tem o mercúrio, que não tem nenhuma contaminação. A água é pura, você pode beber, você pode andar, você pode vir e comer peixe, a caça”, lamenta Francisco Piyãko. Nossa “saída para o Pacífico” pode ser mais um Cavalo de Tróia a serviço da aniquilação da Amazônia. Vamos deixá-lo entrar? Em nome de quê?
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