Vale do Javari não é terra de ninguém

Vale do Javari não é terra de ninguém

No 7 de junho se comemora o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa e não há como não relacionar isso ao desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do servidor da Funai Bruno Araújo Pereira. A Terra Indígena Vale do Javari, localizada no Amazonas, é uma conhecida área de conflitos e alvo de grupos com interesses econômicos ilegais, incluindo o narcotráfico. Liberdade de imprensa não significa salvo-conduto para o repórter ou escrever, publicar ou falar o que bem entender; mas, principalmente, ter sua segurança garantida pelo Estado. Ele precisa disso para exercer sua atividade, que é fundamental para a democracia. E o descaso manifestado pelo governo é revoltante. Que nota foi essa do Comando Militar da Amazônia? Como assim “as ações serão iniciadas mediante acionamento por parte do Escalão Superior”?

Não é fake news: o mesmo governo que bate na tecla da soberania nacional, deixa entregue um território fronteiriço ao Deus dará – leia-se ao crime organizado, incluindo o tráfico de drogas internacional. “A maioria das drogas sai do Peru, mas aí elas vão pra Colômbia e também para o Acre, e para aquela região. Para sair, elas têm que cruzar a terra indígena, que é supostamente a área mais segura pros traficantes”, explica o indigenista Antenor Vaz, consultor para povos isolados da América do Sul. Madeireiros e garimpeiros se sentem igualmente à vontade para cometer ilegalidades na região.

A TI Vale do Javari tem dono. E não são apenas os 6.317 indígenas de 26 povos que lá vivem, como toda a população brasileira, já que é um bem da União. Mas é tratada como terra de ninguém. Ela é a segunda maior do Brasil e foi homologada em 2001, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. Mas seus 85.445 km² continuam desprotegidos. Ainda há o agravante de ela abrigar a maior concentração de povos isolados do mundo. É uma população extremamente vulnerável. Não zelar por seu bem-estar é uma omissão criminosa. E coisas, digamos, inexplicáveis andam acontecendo por lá.

Em setembro de 2019, Maxciel Pereira dos Santos, funcionário da Funai que trabalhava na terra indígena, morreu em Tabatinga, no Amazonas. Ele levou dois tiros na cabeça e o crime ainda não foi solucionado. No mês seguinte, o ora desaparecido Bruno Araújo foi exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados. Quando de seu desligamento, ele combatia o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomani, em Roraima – a maior do país e uma obsessão pessoal do presidente Bolsonaro. Coincidência?

Este dia também nos traz à lembrança que esse bem, tão duramente conquistado, não sofria tantas ameaças desde os tempos da ditadura. Em 2021, o Brasil caiu quatro posições no ranking mundial da Liberdade de Imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras. Hoje, o país ocupa a 111ª posição e o relatório ressalta que a situação se tornou especialmente tóxica desde a posse de Jair Bolsonaro, autor de boa parte das agressões dirigidas a jornalistas: “Insultos, estigmatização e orquestração de humilhações públicas de jornalistas se tornaram a marca registrada do presidente, sua família e sua entourage”. Como fez com as vítimas das enchentes no Brasil este ano, ele preferiu culpar as vítimas: “Realmente duas pessoas apenas em um barco, em uma região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça”. Bolsonaro se refere a dois profissionais experientes como se fossem irresponsáveis.

Segundo o relatório “Violações à Liberdade de Expressão”, da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), o país chegou a 145 casos de violência contra profissionais da imprensa no ano passado – o que dá uma média de 2,7 por semana. O número é 21,69% maior que o de 2020. Para a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), ele é ainda mais absurdo: foram registradas 430 ocorrências. “Violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil” diz que “a continuidade das violações à liberdade de imprensa no Brasil está claramente associada à ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República”. De acordo com o relatório, Bolsonaro pessoalmente foi responsável por 147 ataques à imprensa em 2021.

Não podemos nos calar. Todos nós somos gotas no imenso oceano da preservação ambiental e da defesa incondicional dos direitos humanos. Temos que exigir que Dom Phillips e Bruno Araújo Pereira sejam encontrados o mais rápido possível e que os povos indígenas sejam protegidos. E reafirmar: a Terra Indígena Vale do Javari e a liberdade de imprensa são bens inalienáveis do povo brasileiro.

 

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Hidrovia faz mal aos rios

Hidrovia faz mal aos rios

Por pouco não foram votados esta semana na Câmara projetos para construir hidrovias em rios como o Tapajós e o Teles Pires, na Amazônia.

Autor das propostas, o deputado Adilton Sachetti (PSB-MT) visa a regiões com hidrelétricas, que sozinhas já têm impactos sobre os ecossistemas aquáticos, para dragar os rios e torná-los navegáveis.

As hidrovias afetariam ainda mais os peixes e a qualidade de águas. Tudo para escoar grãos por Mato Grosso, Pará, Goiás e Tocantins.

Belo Monte nos deu uma amarga lição. Que não insistamos no erro!

Via: Brasil de Fato

Foto: Giovani Ferreira / Gazeta do Povo

Saiba mais: https://www.brasildefato.com.br/2016/12/14/projetos-na-camara-pretendem-implantar-hidrovias-sem-ouvir-comunidades-indigenas/

Cacique Jorginho Guajajara: mais uma vítima da violência

Cacique Jorginho Guajajara: mais uma vítima da violência

Mais uma liderança indígena é morta no Brasil. O cacique Jorginho Guajajara, da Terra Indígena (TI) Araribóia, na Amazônia maranhense, foi assassinado no último fim de semana. O corpo foi encontrado na manhã do domingo (12/8) na entrada do município de Arame (MA). Jorge era cacique da aldeia Cocalinho I, do povo Guajajara. Os indígenas da região vivem em conflito contra os madeireiros, que invadem suas terras para derrubar árvores ilegalmente. Incêndios suspeitos também costumam castigar a TI Araribóia.

O crime acontece logo após a divulgação do relatório da Global Witness, que revelou que pelo menos 207 defensores ambientais e lideranças foram assassinados em 2017 – 60% dos casos só na América Latina e o Brasil é o país com o maior número de assassinatos: 57 mortes só no ano passado. Ou seja, somos os campeões mundiais na morte daqueles que cuidam do meio ambiente.

O assunto é tão grave que chamou a atenção da ONU e, no dia 3 de setembro, será lançada a Iniciativa da ONU de Direitos Ambientais, no Museu do Amanhã. O objetivo é levar a proteção do ambiente para perto das pessoas, seus porta-vozes e líderes, auxiliando atores estatais e da sociedade civil a promover, proteger e respeitar os direitos ambientais. As questões ambientais e os conflitos agrários são urgentes e o que pensam sobre este assunto os postulantes ao cargo mais importante do país?

Foto: Ecoamazônia

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Cerco aos Guajajara

Marco Temporal não valeu nem mesmo ao caso Raposa Serra do Sol

Marco Temporal não valeu nem mesmo ao caso Raposa Serra do Sol

Por Rafael Modesto dos Santos, Adelar Cupsinski e Vanessa Araújo, assessoria judídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

A história dos povos indígenas do Brasil não começou e 1988 e tampouco em 2012. O Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou o julgamento do emblemático caso da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol naquele ano, consagrando os direitos originários dos povos indígenas sobre toda a extensão da área declarada como indígena pelo Ministério da Justiça em 2005, e homologada pela presidência da República. A discussão pautada na Petição 3388/RR era se a demarcação deveria ser validada em “ilhas” ou “de forma contínua”; ou seja, se as áreas na posse de não indígenas deveriam constar da área demarcada, ou não. Prevaleceu a segunda interpretação, levando à nulidade de todas as posses não indígenas no interior da TI, conforme determina o parágrafo sexto do artigo 231 da Constituição. Na memorável decisão, aparece um tanto deslocada, e pela primeira vez, a tese do marco temporal, segundo a qual os indígenas de Raposa Serra do Sol somente teriam direito à demarcação das áreas que estivessem sob sua posse na data da promulgação da Constituição de 1988. Ou seja, em 5 de outubro daquele ano.

Com a perspectiva do julgamento de três casos no plenário do STF no dia 16 de agosto, envolvendo a demarcação de TIs, a discussão sobre o marco temporal ressurge. A tese é vista por setores interessados como ferramenta para inviabilizar futuras demarcações. O julgado da Petição 3388/RR confirmou que a aplicação daquela decisão, e, portanto, das suas teses, ficaria restrita àquele caso. Apesar disso, em 2015 a Segunda Turma do STF aplicou o marco temporal em dois casos específicos, contrariando decisão do Pleno da Corte Constitucional. Essas decisões da Segunda Turma foram apresentadas como uma continuidade da aplicação precedente do marco temporal no caso Raposa.

Porém, o marco temporal não foi aplicado nem mesmo naquele caso, já que os índios não estavam na posse de grande parte daquele território em 5 de outubro de 1988. Na área demarcada de forma contínua em Roraima, havia posses não indígenas datadas do início do século XX, que foram anuladas pelo STF pela incidência do parágrafo sexto do artigo 231 da Constituição, que reconhece a nulidade de todo e qualquer título incidente sobre as terras dos povos originários. É o caso da titulação da Fazenda Guanabara, cuja posse data de 1918 e foi anulada.

É impossível falar na aplicação do parágrafo sexto do artigo 231 e ao mesmo tempo do marco temporal: são perspectivas mutuamente excludentes. Como afirma o ministro Luís Roberto Barroso nos embargos declaratórios do caso Raposa, “ainda que algumas áreas abrangidas pela demarcação sejam ocupadas por não índios há muitas décadas, estando situadas em terras de posse indígena, o direito de seus ocupantes não poderá prevalecer sobre o direito dos índios”. Isso significa que o marco temporal não seria aplicável nem mesmo naquele caso, quanto mais em casos similares. Os julgados do STF têm servido para consolidar direitos dos povos originários. É também o que se espera no julgamento das ações referentes à TI Ventarra, ao Parque Nacional do Xingu e às reservas Nambikwara e Parecis, em 16 de agosto.

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