julho 2020 | Povos Tradicionais
Sob fogo cerrado. O próprio vice-presidente Hamilton Mourão, que ora preside o recém-recriado Conselho Nacional da Amazônia, reconhece que o combate ao desmatamento começou tarde e que o Ibama, debilitado, não dá conta de fiscalizar e proteger a região. A devastação recorde é prenúncio de uma temporada de queimadas catastrófica. O ex-general, porém, parece acreditar que o Exército dá conta do problema; só que é bem mais provável que a instituição saia com sua imagem queimada. Mourão sequer pode dar a justificativa de que não conhece a região, pois foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva em São Gabriel da Cachoeira, entre 2006 e 2008. Nara Baré, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), nasceu e vive na cidade mais indígena do país e a terceira mais atingida pelo coronavírus do Amazonas. Ninguém melhor do que quem está sentindo na pele as consequências dessa negligência para descrever a tragédia que se anuncia. Indígenas e Amazônia são uma coisa só. Por isso, no Dia de Proteção às Florestas (17/7), abrimos espaço para ela neste artigo, que também foi publicado na “Folha de São Paulo”. Fizemos ainda uma lista de reportagens recentes que vão ajudar o leitor a entender que o problema não é só dos povos da floresta. Ao fazer a opção de proteger a economia do país em vez de vidas humanas durante a pandemia, o governo pode afundar o país ainda mais profundamente na crise.
Somos os primeiros brasileiros, povos originários dessa terra!
Nara Baré, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)
Quando general da ativa, o vice-presidente Hamilton Mourão foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva, em São Gabriel da Cachoeira (de 2006 a 2008), onde eu nasci e vivo até hoje. Ele certamente deve estar ciente de que o coronavírus ameaça levar a cidade para UTI: até a manhã do dia 14, o boletim epidemiológico da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas registrava 2.982 casos confirmados e 47 mortes; o município é o terceiro mais atingido do estado. Mais de 20 povos vivem em São Gabriel da Cachoeira, incluindo os Baré. A cidade serve como um microcosmo da situação atual da população indígena, a mais atingida, percentualmente, do Brasil. Já choramos mais de 500 mortos e passamos da marca dos 15 mil infectados. Isso não acontece por acaso, é resultado da política anti-indígena do governo.
Recentemente Mourão fez declarações indelicadas a nosso respeito. Apesar disso, sabemos que conhece a região e suas peculiaridades, é filho de amazonenses e se identificou na campanha como descendente de indígenas. Também ficamos favoravelmente surpreendidos quando ele admitiu publicamente que o combate ao desmatamento começou tarde e que o Ibama está desmantelado. Por isso, quando assumiu a presidência do recriado Conselho Nacional da Amazônia vimos uma possibilidade de diálogo, algo que nos vem sendo sistematicamente negado pela Presidência e pelo Ministério do Meio Ambiente – cujo titular, por sinal, nunca havia pisado na Amazônia antes de assumir.
O primeiro sinal de que o governo não estava disposto a ouvir opiniões diferentes foi justamente a extinção ou a reconfiguração de conselhos e comissões ambientais que contavam com a participação de representantes da sociedade civil – entre estes, povos indígenas, cientistas, ambientalistas. Quando da recriação do conselho, o órgão foi tomado por militares. Nenhum indígena senta à sua mesa para discutir estratégias. O Exército – que, não há como negar, está umbilicalmente ligado ao governo – conhece a Amazônia e poderia usar este conhecimento, adquirido junto a nós, para ajudar a preservá-la, mais o que vemos é o inverso. Mas desde o início da pandemia viemos alertando o governo, em vão, sobre o aumento do desmatamento e da invasão de nossas terras por garimpeiros, madeireiros, grileiros entre outros e a necessidade de nos proteger e preservar nossas culturas. Só que o discurso do Executivo tem estimulado ainda mais invasões. Isso tem se intensificados nos últimos dois anos. Exigimos a retirada imediata de todos os invasores no entorno e dentro dos territórios indígenas.
Não foi com surpresa que recebemos a notícia de que as reuniões que Mourão teve com investidores estrangeiros não chegaram ao resultado desejado pelo governo. A pandemia tem levado a discussão sobre a urgência da adoção de um modelo econômico mais sustentável e o momento requer transparência, seriedade e não omissão e subnotificações. Não há mais como varrer a destruição da Amazônia para baixo do tapete, há mais de 5 mil satélites em órbita da Terra; o celular também é acessível a todos, e desrespeitos aos direitos humanos e crimes ambientais podem ser transmitidos ao vivo por qualquer um. Atos irresponsáveis como a excursão promovida pelos ministérios da Defesa e da Saúde a terras indígenas, atropelando os protocolos da pandemia, chegam aos jornais e às TVs do mundo inteiro. O Brasil pode sofrer sérias sanções econômicas, que agravarão mais a crise.
A questão climática pôs a Amazônia no centro do mundo. E a maior floresta tropical do mundo não é obra somente da natureza, mas também um legado dos povos indígena, como indicam descobertas arqueológicas recentes. Se há alguém que sabe apontar os caminhos do desenvolvimento sustentável da floresta amazônica é quem a cultivou e continua cuidando. A comunidade internacional sabe disso e, por isso, impõe a nossa segurança como cláusula contratual. Para eles não é só uma questão humanitária, mas de sobrevivência. Então oferecemos ao governo as respostas para salvar a Amazônia. Primeiro é preciso entender que nós, povos indígenas, somos parte indissociável da Amazônia, do nosso território. Nosso território é nosso corpo e nosso espírito. Se nós somos a Amazônia, para preservá-la é preciso preservar nossas vidas. Se tem alguém que quer que o Brasil prospere somos nós: com respeito às especificidades, aos biomas e aos nossos diretos. Somos os primeiros brasileiros, povos originários dessa terra!
#Amazônia #Coiab #Opinião #Covid19 #Coronavírus #PovosIndígenas #ForçasArmadas #Bolsonaro
Para entender a situação atual da Amazônia e dos povos da floresta:
Tragédia anunciada: organizações alertam para explosão do desmatamento na Amazônia Legal
Mourão diz que combate a desmatamento na Amazônia começou tarde
Mourão diz que Forças Armadas podem ficar na Amazônia até 2022
Após Inpe alertar sobre desmatamento na Amazônia, governo exonera coordenadora de monitoramento
Em carta, técnicos do Inpe denunciam estrutura paralela de gestão e citam riscos
Após reunião com Mourão, fundo nórdico diz que falta plano sobre desmatamento
“Desmatamento ilegal não atrai investimentos e prejudica os negócios”
Investidor cobra Brasil por desmatamento: “Para confiar, precisamos ver ações práticas”
Mourão diz que governo será avaliado por eficácia na Amazônia, mas não apresenta ações imediatas
Somos os primeiros brasileiros, povos originários desta terra
Linha do tempo: A omissão do governo na tragédia indígena
julho 2020 | Povos Tradicionais
Uma coisa que aprendemos desde pequenos é que não se nega água a ninguém. Porém, foi exatamente o que o presidente fez, em seus vetos à lei que garante medidas de proteção aos povos tradicionais enquanto durar a pandemia de Covid-19. Este é somente um dos ataques que os indígenas vêm sofrendo nos últimos meses mas, para quem entende a gravidade da situação, foi a gota d’água. Por isso, Uma Gota no Oceano ofereceu espaço para Sonia Bone Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com quem trabalhamos desde 2014 – com a campanha #TamuAtéAki –, contar de própria voz o que representa este perigo. Os povos indígenas brasileiros nunca estiveram tão ameaçados. Não só para eles, como também para nós, pois sem indígenas, dificilmente a Amazônia sobreviverá.
Receita de genocídio
Por Sonia Bone Guajajara
O coronavírus acabou se tornando cúmplice involuntário de um novo plano de genocídio. O último ato do presidente foi vetar 16 pontos da lei que garante medidas de proteção aos povos tradicionais durante a pandemia. Coisas “supérfluas”, como acesso à água potável. É Bolsonaro dando o seu toque pessoal à tradicional receita para matar indígena. Entre 1500 e 1600, a população originária das Américas foi reduzida em 90%. Esta matança, que continuou nos séculos seguintes, foi causada, em grande parte, por doenças que chegaram aqui com as caravelas – e não apenas como obra do acaso; muitos foram contaminados propositalmente, como vítimas de armas biológicas. O que para os europeus era somente uma gripezinha, para nós era sinônimo de morte. Continuamos vulneráveis, especialmente os 115 povos isolados que foram registrados na Amazônia Legal. Os Panará viviam em harmonia até 1973, quando foram oficialmente contatados. A construção da estrada Cuiabá-Santarém, que corta o seu antigo território, dizimou 2/3 de sua população. Muitos morreram justamente de gripe.
Proporcionalmente somos o grupo mais afetado pela pandemia no Brasil. Segundo o último censo do IBGE, nossa população é de cerca de 900mil; no último dia 9, chegamos a 12.777 infectados, 455 mortos e 128 povos afetados. “As minorias devem se submeter à maioria ou desaparecer”; estas palavras, ditas pelo presidente ainda durante a campanha, ecoam alto entre nós. Para nós, a História não se repete como farsa, mas como tragédia. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, o ex-senador Romero Jucá, atual presidente do MDB, foi o principal responsável pelo massacre de ¼ do povo Yanomami no fim dos anos 1980. “Em 1987, em plena epidemia de malária e gripe, trazida pela invasão de garimpeiros, o então presidente da Funai, Romero Jucá, alegando razões de segurança nacional, retira as equipes de saúde da área Yanomami”, diz o relatório da entidade.
Mas Jucá não agiu sozinho, teve como cúmplices militares e empresários de mineração. Foram cerca de 40 mil invasores; hoje, 90% dos Yanomami estão contaminados pelo mercúrio usado no garimpo ilegal e 20 mil aventureiros ocupam o seu território, encorajados por palavras e ações do atual chefe do Executivo. O ex-senador, figura carimbada de praticamente todos os governos de Sarney para cá, também é autor do primeiro Projeto de Lei (o PL 1.610, de 1996) que regularizava a mineração em terras indígenas, uma das maiores obsessões de Bolsonaro.
Como se vê, o presidente herdou um know-how de mais de 500 anos e está fazendo uso dele. Mas não podemos acusá-lo de falta de criatividade: ele adicionou mais um ingrediente a essa receita mortal e secular, a cloroquina. A Covid-19 é vista pelo Executivo como uma oportunidade a ser aproveitada, seja por omissão ou ação. Bolsonaro mandou distribuir o remédio – que não tem eficácia comprovada contra o novo coronavírus e que pode causar graves efeitos colaterais – entre nove povos que habitam a terras indígenas Yanomami e a Raposa Serra do Sol. Não bastasse o risco do uso a medicação, a população local não foi consultada e o Exército, incumbido de entregar o carregamento, não respeitou os protocolos de segurança do Ministério da Saúde.
Mas nós também temos mais de 500 anos de experiência em resistir. Ao longo dos séculos, aprimoramos nossas estratégias: a geração anterior à minha lutou para que nossos direitos fossem reconhecidos pela Constituição de 1988 e nós nos preparamos, nas universidades, para consolidá-los. Fui candidata à vice-Presidência e temos uma representante no Congresso Nacional, Joênia Wapichana; conquistamos aliados para nossa causa entre políticos, entidades nacionais e internacionais, a população em geral e ONGs, como Uma Gota no Oceano, Instituto Socioambiental (ISA), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Greenpeace e demais organizações da Mobilização Nacional Indígena. O resultado é que o ministro do STF Luís Roberto Barroso acatou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), ajuizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que obriga o Executivo a tomar medidas para nos proteger. Foi um feito inédito, pois reconheceu que a Apib é uma entidade apta a entrar com ações no Supremo. A ADPF ainda vai a julgamento, mas na quarta-feira (8/7), Barroso ordenou que o governo tome cinco medidas para evitar a mortandade que se anuncia – como impedir invasões em áreas indígenas e criar plano de enfrentamento à doença específico para nós. Nossa receita de sobrevivência é muito mais forte.
#PovosIndígenas #VidasIndígenasImportam #SaúdeIndígena #STF #Pandemia #Coronavírus #Covid19 #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta #TamuAtéAki
julho 2020 | Povos Tradicionais
Do que vale a Constituição na Terra plana? Em coluna no jornal “O Globo”, a juíza Andréa Pachá definiu bem o momento singular que vive nossa República. “O reduzido grupo que confronta a Ciência, estatísticas e a realidade representada por 27 mil mortos é o mesmo que rejeita a democracia, em exibições de negacionismo constitucional”, escreveu ela no texto publicado em 30 de maio. De lá para cá, pouco mudou e o número de mortos pelo novo coronavírus dobrou. “Somos obrigados a obrigar o governo a não nos deixar morrer”, resumiu o advogado Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em artigo publicado na “Folha de São Paulo” (30/6). A entidade entrou nesta segunda-feira (29/6) com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para assegurar o direito dos povos originários a dois direitos básicos, previstos pela Constituição: segurança e saúde. Se está ruim para nós, imaginem para os que vivem longe dos olhos.
De acordo com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a taxa de mortalidade pela Covid-19 por 100 mil habitantes entre indígenas da região é 150% maior que a média brasileira. Segundo o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Apib, até o dia 27 de junho, 378 indígenas haviam morrido, 9.166 foram infectados e 112 povos, atingidos. O índice de mortalidade entre eles é de 9,6%, enquanto na população em geral fica em 5,6%. Pelo menos 30% dos territórios analisados na pesquisa têm potencial de contágio alto devido ao desmatamento crescente e à ação de grileiros e outros invasores. Mais de 20 mil garimpeiros já invadiram a Terra Yanomami, levando o vírus cada vez mais longe.
“O Executivo tem se especializado nas práticas de acusar o adversário de fazer o que ele próprio faz, e culpar o outro pelo resultado de suas omissões. Um dos sintomas do novo coronavírus foi deixar este modus operandi ainda mais evidente. Enquanto responsabiliza governadores e acusa o Judiciário de interferir em suas atribuições, cruza os braços durante a pandemia. Atribui ao STF uma tentativa de judicialização da política, quando o que acontece é que a sociedade civil está sendo obrigada cada vez mais a recorrer à Justiça para que ele cumpra os seus deveres”, resumiu Eloy. A ADPF é um recurso constitucional pouco conhecido cujo objeto é “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”. Não é canja-de-galinha, mas é tiro e queda.
“As manifestações de ódio e arbítrio, a estratégia de empurrar a democracia para as cordas, se apropriando de palavras e conceitos que significam o oposto do que eles representam, só podem ser enfrentadas com racionalidade e fortalecimento institucional, ferramentas essenciais para a saúde mental e para a cidadania”, escreveu ainda Andréa Pachá. Se o governo não se mexe, a sociedade civil tem agido, sendo botando diretamente a mão na massa, como vem fazendo ONGs e associações de moradores em comunidades carentes, ou recorrendo ao Judiciário e ao Parlamento.
O pouco-caso com a pandemia e a negligência em relação aos povos tradicionais ganham manchetes nas principais publicações estrangeiras e podem levar o atual presidente onde nenhum outro jamais esteve: o Tribunal Penal Internacional (TPI), que funciona em Haia, na Holanda. Jair Bolsonaro foi denunciado por sua gestão criminosa da pandemia. Mas Sylvia Steiner, única juíza brasileira a já ter atuado na mais importante corte internacional, acredita que ele corra o risco de ir para o banco dos réus por outra razão: “Nós temos ainda uma outra denúncia contra o presidente Bolsonaro, também no gabinete da procuradoria do TPI, mas essa se refere a políticas de extermínio da comunidade indígena por meio da destruição do meio ambiente e dos territórios tradicionalmente ocupados pelos indígenas. Essa pode, sim, configurar, em tese, uma política genocida. Alguns elementos podem levar à conclusão de que essa é uma política deliberada e proposital para limpar uma área e remover os indígenas para que a área seja utilizada para outros fins”.
O mesmo expediente foi usado pelo ex-presidente do Sudão, Omar al-Bashir: milhões de pessoas foram expulsas de Darfur, um território rico em petróleo. O tribunal aceitou a denúncia contra o tirano, afastado do poder no ano passado. Bolsonaro devia estar atento às jurisprudências.
#PovosIndígenas #STF #Pandemia #Coronavírus #Covid19 #VidasIndígenasImportam #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta
Saiba mais:
Negacionismo constitucional (Andréa Pachá)
Somos obrigados a obrigar o governo a não nos deixar morrer (Eloy Terena)
“Extermínio indígena pode levar TPI a julgar Bolsonaro”
Povos indígenas acionam o Supremo para impedir genocídio
Emergência Indígena: lideranças, parlamentares e organizações lançam plano de ação para impedir avanço da Covid-19 e pressionar governo
Como a grilagem avança na Amazônia, segundo este estudo
A saúde indígena no centro da pauta, em tempos de Covid-19
Liderança indígena fala sobre avanço da Covid-19 em território Yanomami
junho 2020 | Povos Tradicionais
“O primeiro livro que eu li foi meu avô”, disse Célia Xakriabá, quando de sua partida. A professora e ativista dos direitos indígenas é mestra em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mas o que aprendeu com o pai de seu pai é um conhecimento que só os Xakriabá possuem. O jovem cacique Ivandro Tupã, do povo Guarani Mbya, vive no Parque Estadual do Jaraguá, na cidade de São Paulo. Embora cercados pela maior metrópole do Hemisfério Sul, ele e as pessoas de sua aldeia conservam tradições ancestrais. “Mantivemos nossa cultura e nossa língua. Os mais velhos são os detentores desse conhecimento. Eles são nossos livros de História vivos”. Este acervo em carne, osso e espírito está sendo devorado pelo novo coronavírus. Corremos o risco de perder bibliotecas inteiras.
No último dia 9, Zé Carlos Arara, cacique da aldeia Guary Duan, na Terra Indígena Arara da Volta Grande, morreu no Hospital Geral de Altamira (Pará), levado pela Covid-19. Ele era um sábio guerreiro, um símbolo da luta dos povos do Xingu contra a construção da Usina de Belo Monte. Não foi um caso isolado: um Estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que 48% dos pacientes internados que morrem são indígenas. É a maior taxa de mortalidade do país, “superando as populações parda (40%), negra (36%), amarela (34%) e branca (28%)”, segundo o texto. Povos inteiros podem desaparecer. Como os Goitacás, que dominavam a costa entre o Rio São Mateus (no Espírito Santo) e o Rio Paraíba do Sul (Rio de Janeiro) até fins do século XVIII, quando foram exterminados por uma epidemia de varíola.
Quantos segredos foram perdidos com os Goitacás? Quantos podemos perder hoje? “Sabemos que um dos impactos mais fortes do colonialismo europeu nas Américas, particularmente no Brasil, com relação ao genocídio indígena nos séculos XVI e XVII foram as pandemias”, lembrou o antropólogo Márcio Meira, que foi o presidente mais longevo da Fundação Nacional do Índio (Funai), entre os anos de 2007 e 2012. E quando um sábio indígena sei vai, não são apenas eles que têm a lamentar. “Se um idoso morre, vai com ele também todo o conhecimento e cultura e quem perde com isso é toda a Humanidade”, completa Meira. Há povos isolados que vivem em lugares de biodiversidade única. Só eles conhecem as propriedades de fauna e flora locais.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em parceria com a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), o Conselho do Povo Terena, a Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste), a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul), a Grande Assembleia do povo Guarani (Aty Guasu), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Comissão Guarani Yvyrupa, tem feito o acompanhamento de casos de Covid-19 entre indígenas. Até o dia 16, eram 236 mortos, 2.390 infectados e 93 povos atingidos. O governo, porém, parece ter outras prioridades. A ideia agora é acelerar a elaboração de um decreto para tornar os critérios para demarcação de terras indígenas mais rigorosos e ágeis. O atual presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, pretende rever áreas que foram interditadas por relatos de presença de povos isolados e não esconde sua ansiedade para a aprovação no Congresso do projeto que regulamenta atividades de mineração em seus territórios.
Enquanto isso, o desmatamento na Amazônia completa 13 meses seguidos de crescimento, de acordo com dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em maio, a devastação cresceu 12% em relação a 2019 e atingiu o maior valor para o mês já registrado, e as áreas sob alerta somaram 829 km². Em comparação com abril, os alertas de desmatamento mais que dobraram, chegando a 103%. Já se prevê uma temporada de incêndios ainda mais destruidora do que a do ano passado. “A natureza é o único livro que oferece um conteúdo valioso em todas as suas folhas”, escreveu o escritor alemão Johann Goethe (1749-1832). Florestas são imensas bibliotecas, mas nem todos sabem ler o que está escrito nelas e os indígenas, sem dúvida, são seus melhores intérpretes. “Parece até irônico, mas hoje a humanidade se encontra em uma situação igual à de um povo indígena isolado. Para eles, uma gripe é o nosso coronavírus, que ameaça a humanidade inteira”, refletiu Márcio Meira. Quem sabe a cura para a Covid-19 não seja uma plantinha conhecida apenas por um povo que nunca encontramos?
Saiba mais:
Coronavírus: “Um ancião indígena que morre é uma perda para toda a humanidade”, diz Márcio Meira
Indígenas somam 48% dos pacientes internados mortos por Covid
Morre José Carlos Arara, liderança da Volta Grande do Xingu
Governo quer acelerar novas regras para terras indígenas
Desmatamento na Amazônia completa 13 meses seguidos de crescimento
O que é ‘cegueira vegetal’ e por que ela é vista como ameaça ao meio ambiente
Imagens de indígenas ameaçados da Amazônia vencem prêmio de fotografia da Sony
Pandemia avança na Amazônia e ameaça povos indígenas
Os guardiões da Amazônia diante da pandemia, pelo olhar de Sebastião Salgado
Na última fronteira da Amazônia, povos indígenas têm uma sucessão de ‘positivos’ para o novo coronavírus
Jovens indígenas se reinventam no trabalho e no estudo para enfrentar a quarentena da Covid-19
Pandemia entre indígenas já atinge sete dos nove estados do Nordeste
“Extermínio indígena pode levar TPI a julgar Bolsonaro”
Covid-19 se espalha entre indígenas brasileiros e já ameaça povos isolados
Incêndios na Amazônia podem aumentar risco de infecções graves de coronavírus, dizem especialistas
Nota do Cimi: transmissão do coronavírus se agrava nas aldeias indígenas e demanda ações urgentes de contenção
Uma morte a cada quatro dias: povo Xikrin é o mais afetado pela Covid-19 no Pará
Como a medicina tradicional da África pode ajudar no combate à Covid-19
#PovosIndígenas #Amazônia #Coronavírus #Covid19 #TamuAtéAki #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta
maio 2020 | Povos Tradicionais
Em editorial publicado no último dia 8, a revista de ciência médica britânica “The Lancet”, fundada em 1823 e uma das mais conceituadas da área, diagnosticou que o presidente é “talvez a maior ameaça à resposta à Covid-19 no Brasil”. Dadas as credenciais da publicação, podemos dizer que se trata de uma dedução estritamente científica. E o raciocínio usado para se chegar a ela pode ser replicado na área ambiental. Como vetor que age direta e indiretamente o presidente também é, possivelmente, a maior ameaça à resposta à destruição da natureza no Brasil. Veio da Presidência a Medida Provisória 910, a MP da Grilagem, que legaliza até 650 mil km² de terras públicas invadidas na Amazônia o que, inevitavelmente, vai estimular novas ocupações. Não à toa a sociedade, assim como no caso do coronavírus, tem tomado medidas de prevenção por prescrição própria.
A pandemia deve ter um efeito colateral benéfico: derrubar as emissões de gases de CO₂ em praticamente todos os países este ano. Uma das poucas exceções deve ser o Brasil, justamente por causa do crescente desmatamento. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os alertas na Amazônia cresceram 63,75% em abril de 2020, se comparado ao mesmo mês do ano passado. A motosserra tem cantado em plena quarentena: cerca de 800 km² de floresta já foram abaixo no primeiro trimestre. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, havia prometido engavetar a MP da Grilagem, mas como ela caduca no dia 19, foi pressionado a levá-la à votação na quarta-feira (13/5). A pressão da sociedade civil nas redes sociais e a atuação da Frente Parlamentar Ambientalista foram decisivas para que a votação fosse retirada de pauta. Corremos ainda o risco de a MP voltar como Projeto de Lei, por isso a pressão precisa continuar. São terras públicas, ou seja, pertencem a todos nós.
Mas o desmatamento é uma infecção que se espalha, atingindo outros biomas, como Cerrado e Pantanal. A Mata Atlântica, que vinha se recuperando, pode entrar novamente no grupo de risco, por uma iniciativa do Executivo. No mês passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, emitiu um despacho reconhecendo as propriedades rurais que ficam em áreas protegidas da região. A decisão fere frontalmente a Lei da Mata Atlântica e Ministério Público Federal (MPF) entrou na Justiça com uma ação civil pública pedindo a sua anulação. A iniciativa partiu da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) e da Fundação SOS Mata Atlântica – que lançou um abaixo-assinado online contra a medida. Logo, a profilaxia tem se mostrado eficaz. O isolamento forçado, quem diria, reforçou nossa mobilização.
Como ensinaram seus ancestrais – que foram obrigados a adotar o isolamento social voluntário como forma de prevenção às epidemias trazidas clandestinamente pelas caravelas – os indígenas estão recolhidos em suas aldeias. Com isso o desmatamento em seus territórios aumentou 59% nos quatro primeiros meses de 2020. Os invasores estão se sentindo tão à vontade que têm atacado guardas-florestais e agentes do Ibama. A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão criado pelo Estado para atuar em favor dos povos originários, tem jogado como adversário. Seu último gol contra foi uma instrução normativa, já contestada pelo MPF, que regulariza a grilagem de terras indígenas. Mas mesmo recolhidos, eles estão antenados: o último Acampamento Terra Livre (ATL) foi realizado via internet e foi um sucesso.
Os indígenas agora aguardam por um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que pode exorcizar de vez um velho fantasma. No último dia 7 Edson Fachin, ministro do STF, suspendeu, até votação em plenário, um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que orientava o uso da tese do marco temporal em casos de demarcação de terras indígenas. Este dispositivo estabelece que só teriam direito a reclamar suas terras os indígenas que a estivessem ocupando até a promulgação da Constituição de 1988 – mesmo aqueles que tivesse sido expulsos com o uso de violência. Ela foi declarada inconstitucional por juristas renomados como Dalmo Dallari e José Afonso da Silva; mas este governo insiste em usá-la para impedir novas demarcações e até fazer revisões de processos já concluídos.
Porém, no dia 20 de abril o STF confirmou outra tese, a de que dano ambiental é imprescritível. Esta decisão pode apontar uma tendência. O caso que levou o Supremo a julgá-la foi uma condenação feita pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) a madeireiros que agiram ilegalmente na Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, no Acre, entre 1981 e 1987 – antes da data estipulada pelo marco temporal, portanto. Os ministros do STF acataram o parecer técnico da ministra Eliana Calmon, relatora do julgamento no STJ: “Se o bem jurídico é indisponível, fundamental, antecedendo a todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem saúde, nem trabalho, nem lazer, considera-se imprescritível o direito à reparação”. Uma vitória dos povos indígenas no STF pode significar o estabelecimento de um novo marco civilizatório no Brasil.
Assine o abaixo-assinado da Fundação SOS Mata Atlântica
#Covid19 #Coronavírus #Pandemia #Desmatamento #Amazônia #MP910 #PovosIndígenas #STF #UmaGotaNoOceano #CadaGotaConta
Saiba mais:
Bolsonaro é ‘ameaça’ à luta contra o coronavírus no Brasil, diz revista médica The Lancet
Pandemia derruba emissões de carbono, mas Brasil deve ter alta com desmate
Em meio a pandemia, deputados tentam votar “MP da grilagem”
MP da regularização fundiária entrega 566 títulos de terra, mas servidores dizem que processo de análise não foi agilizado
Aliado de relator da MP da Grilagem abriu empresa para regularizar terras em Minas
Governo não quer ser tratado como ‘vilão’ da Amazônia, dizem Mourão e Heleno
MP 910 entrega 65 milhões de hectares públicos para uso privado, denuncia procuradora
Se aprovada, MP 910 irá legalizar esbulho e grilagem de terras públicas
Sem acordo, Maia quer substituir MP de regularização de terras por projeto de lei
MPF recomenda à Funai que devolva ao Ministério da Justiça procedimentos de regularização de 27 terras indígenas
Terra indígena na Amazônia tem 94% de área declarada por fazendeiros, aponta Greenpeace
STF suspende processos judiciais que tentam impedir a demarcação de terras indígenas, provocando mais conflitos e violência durante a pandemia
STF suspende despejos e Parecer da AGU que usava marco temporal para barrar demarcações
Fachin impõe derrota a Bolsonaro e suspende ações contra demarcações de Terras Indígenas
Fachin suspende parecer da AGU que orientava sobre demarcação de terras indígenas
STF fixa tese de que dano ambiental é imprescritível
Acordo de não persecução penal e crime ambiental
Desmatamento em terras indígenas aumenta 59% nos primeiros meses de 2020
Em nota técnica, MPF reafirma inconstitucionalidade da tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas