Elefante na Amazônia? 

Elefante na Amazônia? 

Alessandra Korap Munduruku e Eliane Xunakalo*

Brasil e Estados Unidos, os dois grandes produtores e exportadores de soja do mundo, foram surpreendidos com a decisão da China, sua maior freguesa, de reduzir a importação da oleaginosa. Os chineses estão aumentando sua produção interna ou reduzindo o uso de seu farelo como ração para animais. No ano passado, foram 9 milhões de toneladas a menos em relação a 2022, uma redução de 13%. Então para que insistir na Ferrogrão? Periga ser uma estrada de ferro sem mercadoria para transportar; um elefante branco do tamanho de Belo Monte. Ainda mais se levarmos em conta que a obra levaria pelo menos 10 anos para ficar pronta.

Chamada oficialmente de EF-170, se for levada adiante, ela terá 933 km de extensão e ligará Sinop, em Mato Grosso, a um porto em Miritituba, no Pará, a um custo de R$ 34 bilhões. Depois, a soja seguiria por uma hidrovia a ser construída no Tapajós, entraria Rio Amazonas adentro e chegaria aos portos marítimos paraenses para exportar quase que exclusivamente soja. Para quem?

Ainda que os chineses, por acaso, mudem seus planos, as perdas serão muito altas: segundo a Universidade Federal de Minas Gerais, a área desmatada poderá chegar a 49 mil km², 64% maior que a taxa recorde da Amazônia, de 2022. Um território superior ao de países como Eslováquia, Dinamarca e Holanda. E nem falamos que outra seca como a de 2023 pode inviabilizar o transporte fluvial na região – e a ciência já alertou que ela deve se repetir.

Essa destruição vai causar a emissão de 75 milhões de toneladas de CO2 que, traduzidos em dinheiro, dariam um prejuízo de cerca de R$ 9,2 bilhões. Em 2020, a própria Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) admitia que a ferrovia impactará 48 terras indígenas e áreas de proteção ambiental. Os prejuízos que causarão aos povos da floresta são imensuráveis: invasores indesejáveis de todo tipo, de grileiros a contrabandistas de madeira e garimpeiros. Sem falar no desrespeito ao direito à consulta prévia e informada, que vem sendo atropelado nesse processo. Ou seja, a Ferrogrão é uma ferrovia que vai andar em marcha à ré. 

Por que, então, não investir em projetos verdadeiramente sustentáveis de retorno garantido? Por que insistir nesse modelo predatório? A palavra-chave todos conhecem: bioeconomia. Disso, nós, indígenas, entendemos muito bem. Vivemos da e com a Amazônia, sem lhe causar mal. Entretanto, enquanto isso, a Terra Sawré Muybu, uma das que serão mais atingidas por essa obra dispensável e danosa, foi reconhecida pela Funai em 2015 e aguarda sua homologação até hoje.

A Amazônia presta serviços ambientais, como estocar carbono e produzir chuva, que geram US$ 20 bilhões ao ano. Esses préstimos são usufruídos, principalmente, pelo agronegócio. Logo, o desmatamento gerado para a construção da Ferrogrão pode refletir em perdas para o próprio agronegócio no Centro-Oeste brasileiro – incluída a produção de soja. Se o Brasil não quiser perder o bonde da História e estiver disposto a ajudar o planeta a sair da crise climática e a fazer justiça social, é melhor esquecer de projetos de desenvolvimento ultrapassados e andar para frente. O futuro é verde e indígena.

*Alessandra Korap é liderança indígena do médio Tapajós e coordenadora da Associação Indígena Pariri; Eliane Xunakalo é presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt)

Caminhando contra a tempestade

Caminhando contra a tempestade

No Supremo Tribunal Federal, o julgamento do “marco temporal”, tese jurídica que dificulta a demarcação de terras indígenas, aguarda a decisão dos ministros.

Já o Projeto de Lei 490, que foi aprovado na marra pela Câmara, muda as regras para demarcações. Juntos, Congresso e STF podem escancarar a porteira para o agronegócio, a mineração e empreendimentos como a Ferrogrão, que vai devastar 2.000 km² de florestas, atingindo importantes unidades de conservação e territórios de povos originários, que sequer terão direito a consulta.

Por Eliane Xunakalo

Apesar dos bons ventos que sopraram do novo governo, há indícios que tempestades podem surgir no horizonte indígena. No Supremo Tribunal Federal, o julgamento do “marco temporal”, tese jurídica que dificulta a demarcação de nossas terras, aguarda a decisão dos ministros. Mesma situação da Ferrogrão, ferrovia que vai impactar pelo menos 11 terras indígenas, parques e florestas nacionais ao longo de 933 km para ligar o Centro-Oeste aos portos do Arco Norte, paralisada pela Justiça desde 2021.

Em outra esfera, o Projeto de Lei 490, que muda as regras para demarcações e escancara a porteira para o agronegócio, obras e exploração de minérios, petróleo e gás foi aprovado na marra pela Câmara; isso em meio à ameaça do enfraquecimento dos Ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Ferrogrão é o nome popular da estrada de ferro EF-170, mas nós a chamamos de “nova Belo Monte”. Depois do desastre que a usina provocou no Xingu, fazendo sumir os peixes e surgir a fome de quem dependia do rio para viver, a comparação faz todo sentido: mesmo com estudos que alertam para a inviabilidade econômica e os impactos socioambientais da ferrovia, o projeto segue a todo vapor.

Além de reduzir em 8,62 km² o Parque Nacional do Jamanxim, a Ferrogrão ainda afetará outras duas Florestas Nacionais, quatro territórios dos povos Munduruku, Kayapó e Panará no Pará e, pelo menos, sete terras indígenas em Mato Grosso, onde vivem 28 povos. Mais de 2.000 km² de floresta serão devastados.

Nosso motivo para lutarmos contra iniciativas como essa é a garantia de um futuro melhor. A palavra usada para justificar tais violações é “desenvolvimento”. Eu piso no chão das aldeias, mas também no das cidades. E o que eu vejo é desigualdade e precariedade de serviços públicos. Então, eu pergunto: desenvolvimento para quem?

O dossiê “Os invasores”, elaborado pelo De Olho nos Ruralistas, identifica 42 políticos e familiares com fazendas sobrepostas a 960 terras indígenas. A nossa luta coletiva é garantida por marcos legais que datam desde o fim do século 17, quando o Brasil ainda era colônia. A Constituição de 1988 ampliou a proteção a nossos direitos. Mas, passados 35 anos, a demarcação de todos os nossos territórios, que deveria ter sido concluída até 1993, é realidade distante.

Diante de tantos ataques nas mais diversas frentes, não nos resta outra opção que não seja reunir aliados para fortalecer uma estratégia que pomos em prática todos os dias, há 523 anos: resistir. Nós somos a terra e, por isso, quando lutamos por ela, lutamos por nós. A luta pela alma dos rios, pelas raízes das árvores e pela riqueza dos biomas não é só nossa: é de todos os brasileiros; de todos que dependem da água e do oxigênio que a floresta produz. Vamos seguir em frente, mesmo com a ventania contra nós.

*Eliane Xunakalo é indígena do povo Bakairi e presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT).

Somos todos Xokleng

Somos todos Xokleng

Por Joenia Wapichana, deputada federal (Rede/RR), nascida na comunidade indígena Truaru da Cabeceira, Sonia Bone Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Ana Patté, integrante da Apib e do povo Xokleng

O Supremo Tribunal Federal pode definir no segundo semestre os critérios definitivos para demarcação de terras indígenas, além de exorcizar de vez uma assombração que há anos nos persegue: a tese do “marco temporal”. O espectro se materializou durante o governo Michel Temer, quando a Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu o Parecer 001/2017, prevendo sua adoção. Bandeira criada por ruralistas, ela prega que só teriam direito à posse de suas terras os povos que nelas estivessem vivendo até o dia da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Esse atropelo inconstitucional busca restringir o artigo 231 que trata do tema, para acabar com o reconhecimento dos “direitos originários” sobre nossos territórios. Ele está sendo usado para inviabilizar, retardar e reverter processos de demarcação, ajudando o presidente Bolsonaro a cumprir a promessa de campanha de não demarcar “nem um centímetro a mais” de terras indígenas. As consequências podem ser catastróficas. Há exemplos.

A Mata Atlântica foi tratada como “mato”. Hoje, reduzida a 12,4% do seu tamanho original, ela virou uma espécie de anúncio fúnebre do que pode vir a acontecer com a Amazônia. A história recente dos Xokleng está diretamente ligada a essa tragédia e serve de exemplo para a trajetória da maioria dos povos indígenas brasileiros, desde 1500. O STF nos aproximou ainda mais, ao tornar ação envolvendo a Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklanõ, onde vivem, caso de repercussão geral. Ou seja, o que for decidido pela corte ganhará peso de lei. Então, neste momento, somos todos Xokleng. Todos, mesmo, pois não são apenas os direitos dos povos originários que estão em jogo, mas também o interesse público e o bem comum – já que as terras indígenas pertencem à União, têm destinação específica e são consideradas áreas ambientalmente protegidas.

A população sabe disso: expressivamente 98% dos brasileiros se dizem preocupados com o meio ambiente; 95% acreditam que é possível preservar e desenvolver simultaneamente a Amazônia; 77%, que o país deveria reservar mais áreas para conservação; e 83% assinam embaixo de que “a preservação ambiental da floresta amazônica é muito importante para o crescimento do país, pois o desenvolvimento nacional depende do meio ambiente protegido”. Os números são de uma pesquisa feita pelo Instituto FSB, por encomenda da insuspeita Confederação Nacional da Indústria (CNI), divulgada em novembro último.

O “marco temporal” mascara o violento processo histórico de ocupação do Brasil. Nenhum povo indígena existente deixou sua terra ancestral por vontade própria. Os primeiros conflitos envolvendo os Xokleng e portugueses datam de 1777, a violência contra eles aumentou com a chegada, no sul do país, de novos europeus, imigrantes alemães que vieram incentivados pelo imperador Pedro II, e se estende até o momento atual. Os Xokleng foram sendo paulatinamente expulsos do território que ocupavam e viram sua população encolher tragicamente, dizimada por doenças que vinham de fora e pela força bruta. E contra isso eles apelaram à mais alta Corte do país.

Assim como aconteceu com a Amazônia, o desmatamento na Mata Atlântica, que estava sob relativo controle, voltou a crescer desenfreadamente desde a posse do atual governo. O estado de Santa Catarina, onde fica a Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, era totalmente coberto pelo bioma e, segundo o último relatório anual da Fundação SOS Mata Atlântica e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foi o quarto que mais desmatou no período 2019-2020. No Brasil inteiro, sumiram mais 130.530 km² de floresta, 14% a mais que a de 2017-2018, que registrou a menor taxa de desmatamento desde 1989, quando a pesquisa começou a ser feita.

A terra onde vivem os Xokleng é reivindicada pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma) do estado de Santa Catarina, tendo por base o Parecer 001/2017 da AGU que se baseia erroneamente na sentença, de 2009, do STF em ação sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Habitada pelos povos Wapichana, Ingarikó, Macuxi, Patamona e Taurepang, a terra localizada no extremo norte do país era disputada por décadas por fazendeiros e pelo Estado de Roraima. O STF reconheceu a constitucionalidade do processo de demarcação.

No entanto, a sentença desenvolveu a tese do “marco temporal”. Ou seja, querem usar contra nós uma decisão que havia nos favorecido. Mas isto não pode prevalecer: em 2013, o próprio Supremo reconheceu que a decisão do julgamento da Raposa Serra do Sol seria aplicável apenas naquele caso. Posteriormente, houve várias decisões judiciais em que povos indígenas que não estavam na posse de suas terras na data de 5 de outubro de 1988, tiveram seus direitos reconhecidos. Acreditamos assim que há um caminho jurídico sólido para que a Justiça seja feita para todos os povos indígenas no país.

A mesma pesquisa Instituto FSB/CNI citada indica ainda que a maioria da população reconhece os povos indígenas como os maiores protetores da floresta. Essa confiança depositada em nós não é fruto de nenhuma crença, mas do status jurídico que gozam as terras indígenas, da ciência e do espaço que o movimento indígena e nossas lideranças vêm conquistando nos debates nacionais. Nossa arma é a informação. Um estudo da Universidade da Califórnia, publicada em agosto passado na “Proceedings of the National Academy of Sciences”, revista oficial da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, mostra que o desmatamento na Amazônia é 66% menor em Terras Indígenas, conforme também demonstrado por renomados institutos de pesquisa nacional.

A decisão a ser tomada pelo STF é uma oportunidade única de combater o processo violento de colonização, que continua em curso, atualizando a nossa civilização como plural e democrática e de reafirmar o nosso papel fundamental de legítimos protetores da nossa biodiversidade e da vida.

#EmNomeDeQue #MarcoTemporal #PovosIndígenas #Justiça #DemarcaçãoDeTerras #TerrasIndígenas

Pelo direito de existir

Pelo direito de existir

“Decidimos não morrer”. Esse pacto silencioso, firmado pelos povos originários do Brasil há mais de 500 anos, ecoa forte com a chegada deste Abril Indígena, no ápice da pandemia. É um desafio e tanto, já que o governo tem se revelado o principal vetor do novo coronavírus – opinião compartilhada pelos jornais “Washington Post”, num editorial contundente, e o inglês “The Guardian” – e mais uma vez o Acampamento Terra Livre (ATL), que está chegando à sua 17ª edição, será realizado via internet.

Além da Covid-19, eles têm outras batalhas pela frente. Os ataques também vêm de invasores que levam a doença e a destruição às suas terras – com indisfarçável cumplicidade do Executivo –, da bancada ruralista do Congresso, do lobby das mineradoras. Não à toa, o tema escolhido pelo ATL 2021, que acontece até o próximo dia 30, foi “Nossa luta ainda é pela vida. Não é apenas um vírus”. E, como fica cada dia mais claro, essa luta não é só deles.

Já imaginaram se o SUS começasse a transmitir doenças ao invés de vacinar as pessoas? Pois é o que está acontecendo na Fundação Nacional do Índio (Funai). Criada em 1967 com o propósito de proteger e promover os direitos dos povos indígenas, a instituição vem servindo aos interesses de seus adversários. Logo em janeiro, sua diretoria colegiada publicou uma resolução estabelecendo novos critérios para a definição de identidade indígena – algo que nem a ditadura ousou fazer. Essas normas batem de frente com a Constituição, o Estatuto do Índio (decretado em 1973) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. As três instâncias reconhecem a autodeclaração como critério único. É fogo amigo que se chama.

Em fevereiro, a fundação se juntou ao Ibama, órgão que deveria zelar pela preservação do meio ambiente, para publicar uma instrução normativa que permitiria a exploração agrícola em territórios indígenas – inclusive para não indígenas. A medida é igualmente inconstitucional e escancarou seus desvios de função. Em 24 de março, o próprio Bolsonaro participou de uma ação típica da Funai de hoje. Ele se reuniu com o presidente da fundação, Marcelo Xavier, que é delegado da Polícia Federal, e com um madeireiro de nome João Gesse para aliciar lideranças Kayapó do sul do Pará.

O encontro não constou na agenda oficial da Presidência da República. Mas o que se sabe dele, a partir de relatos dos próprios indígenas e de uma gravação que vazou, é estarrecedor. Bolsonaro incitou os Kayapó a brigarem pela abertura de suas terras à exploração mineral e agropecuária e Xavier aconselhou Gesse a processar uma associação indígena contrária à abertura de seu território ao garimpo. Em fevereiro do ano passado, Bolsonaro mandou para o Congresso um projeto de lei que abre as terras indígenas para a atividade; no início de 2021, com o país em meio à catástrofe humanitária em que vivemos, o governo definiu a pauta como prioritária. E não mediu esforços para eleger os presidentes da Câmara Federal e do Senado para que ela entre em votação o quanto antes. Mesmo proibido, o garimpo abriu novas frentes e pôs abaixo 330 hectares de floresta no território dos Kayapó em 2019, o dobro do ano anterior.

Engana-se, porém, quem acredita que os indígenas estão esperando soluções caírem do céu enquanto são obrigados a se manter em isolamento social. O ATL virtual do ano passado os deixou ainda mais conectados e ativos; tanto que a duração do evento passou de uma semana, quando presencial, para um mês, agora que é online. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) vem fortalecendo e aprimorando suas ações e estratégias. A entidade, que teve sua representatividade oficialmente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, quando este acatou e deu ganho de causa à sua Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ajuizada contra do governo federal, criou o plano Emergência Indígena. A entidade está fortalecendo barreiras sanitárias em centenas de territórios, vem alimentando mais de 10 mil famílias e distribuiu mais de 300 mil equipamentos de proteção a equipes de saúde indígena em todo o país – mais uma obrigação negligenciada pelo governo.

O coronavírus encontrou na destruição da natureza, promovida pelo homem, o ambiente ideal para proliferar. No Brasil, ainda tem o governo como aliado. A cada dia batemos recordes de mortos. Acompanhar o noticiário é para os fortes. Quando seguiremos o exemplo dos povos indígenas e decidiremos que não vamos morrer também?

#AbrilIndigena #Apib #PovosIndigenas #Kayapó #ATL #Covid #Coronavirus #Amazônia

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Somos todos Guarani Kaiowá

Somos todos Guarani Kaiowá

Somos todos Guarani Kaiowá. Você pode até lembrar da frase, mas dificilmente recorda como ela surgiu. Em 2012, a Justiça deu ganho de causa a fazendeiros que pediam que 170 indígenas desocupassem uma área ainda não demarcada no Mato Grosso do Sul. Revoltados com a decisão, sob pressão dos ruralistas e comendo uma vez por dia, os indígenas mandaram uma carta aos juízes. “Pedimos a Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos que decretem a nossa morte coletiva”. Chocante, a solicitação transformou os Guarani Kaiowá em trending topic. Nas redes sociais, quem se solidarizava com eles incorporava o nome do povo a seu sobrenome, num caso único no mundo. Nove anos depois, um novo imbróglio judicial os traz de volta às manchetes. Será que seremos todos Guarani Kaiowá de novo?

Como num tabuleiro de xadrez, a disputa pode até ser outra – mas as peças são as mesmas. Desta vez, o caso envolve as 120 pessoas que vivem na Terra Indígena Guyraroka, no mesmo Mato Grosso do Sul. Elas estão cercadas por fazendeiros, com os quais convivem em tensão permanente. A ponto de, em 2019, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos classificar o quadro na região como “grave situação humanitária”. Em 2014, o Supremo Tribunal Federal anulou a demarcação de Guyraroka, decisão que os indígenas agora tentam reverter (já que sequer foram consultados na ocasião). Eles questionam o fato de a decisão se basear no chamado marco temporal, argumento que defende que os indígenas só têm direito às terras que ocupavam na data de promulgação da Constituição Federal. Na prática, o marco temporal é um unicórnio jurídico: não existe formalmente em nenhuma lei, mas muita gente jura que já viu. “O marco temporal, para gente, é anti-indígena”, resume Erileide Domingues, integrante do povo Guarani Kaiowá.

Antes de decidir se você será ou não Guarani Kaiowá, é bom entender melhor o que isso significa. O povo que carrega este nome reúne mais de 30 mil pessoas no Brasil e já chegou a ocupar uma área que ia do litoral paulista ao gaúcho. Isso mudou com a chegada dos europeus, que tinham o péssimo hábito de persegui-los onde quer que eles estivessem. Entre os séculos XVI e XVII, jesuítas e colonos espanhóis disputavam o direito de explorar os indígenas. Depois, foi a vez dos bandeirantes entrarem na briga. Com tanta perseguição, eles fugiram para o sul do Mato Grosso do Sul, onde tiveram relativa paz até o século XX. Quando o cultivo de erva mate começou, adivinha quem foi para as lavouras? Da década de 1920 em diante, novos colonos, avós dos atuais fazendeiros, viraram a dor de cabeça dos indígenas, que foram confinados em pequenas áreas para não atrapalhar a expansão agrícola. O sufoco não os impediu de se articularem por seus direitos nem de pagarem caro por isso. “Eles nos cercam como se fôssemos porcos, mas o Guarani Kaiowá é guerreiro”, já disse Marlinho Guarani Kaiowá.

Seja em 2012, seja agora, o pano de fundo das discussões é o mesmo e envolve uma questão maior: a relação entre povos tradicionais e Poder Judiciário. “O caso Guyraroka é um caso clássico do que as comunidades indígenas enfrentam por todo o país, qual seja, a dificuldade de ter acesso à Justiça”, explica Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Até pouco mais de 30 anos atrás, a lei entendia que os indígenas existiam sob tutela do Estado e que o esforço da sociedade deveria ser no sentido de incorporá-los. A Constituição de 1988 mudou esse entendimento. Ela definiu que os povos tradicionais têm direito de manter sua cultura (por mais que muitas ações da atual gestão federal apontem no sentido contrário) e que eles podem acionar os tribunais para acessar àquilo que a lei lhes garante, como qualquer cidadão. Pode parecer pouco. Mas, no limite, é a diferença entre ser livre e não ser.

A expectativa agora é que o processo em julgamento pelo STF tenha um desfecho diferente da ação judicial que originou a campanha #SomosTodosGuaraniKaiowá. Em 2013, diante da repercussão do caso, a Funai publicou um relatório que identificou e delimitou a Terra Indígena Iguatemipegua I. Para a posse definitiva do espaço, só faltava uma portaria do Ministério da Justiça, que até hoje não foi publicada. Isso fez com que os indígenas continuassem submetidos às pressões e violações que os tornaram famosos no mundo inteiro, só que sem a mobilização das redes sociais. Que desta vez possamos ser, de fato, Guarani Kaiowá, acompanhando todos os desdobramentos da luta deste povo pela sua terra. Afinal, como eles mesmos afirmaram no Estadão, “não é só terra que está em jogo. Não é só floresta. É vida que está em jogo. E é a vida da comunidade”. Se acharmos natural atropelar direitos garantidos na Constituição hoje, abrimos um precedente para que nossos próprios direitos sejam questionados amanhã.

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Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil

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El País – O calvário das crianças Guarani Kaiowá contaminadas por agrotóxicos

Cimi – STF julga caso da Terra Indígena Guyraroka, anulada com base no marco temporal e sem que comunidade fosse ouvida

Conselho Indigenista Missionário (Facebook) – STF julga caso da Terra Indígena Guyraroka, anulada com base no marco temporal e sem que comunidade fosse ouvida

Povos indígenas do Brasil (ISA) – Guarani Kaiowá

Instituto Socioambiental – Estatuto do Índio

Estadão – #Marcotemporalnao: o que está em jogo no STF é a vida da comunidade Guyraroka

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