outubro 2023 | Amazônia, Catástrofe ambiental, Direitos humanos, Direitos indígenas
Por Mariazinha Baré e Toya Manchineri*
Os povos indígenas conhecem a Amazônia como a palma da mão. Não se trata de força de expressão; é um conhecimento fundamentado em incontáveis milênios de convivência harmônica. Nossa ciência segue os mesmos princípios que a dos não indígenas: observação, questionamento, formulação de hipótese, experimentação, análise e conclusão. Foi assim que nossos ancestrais ajudaram a natureza a cultivar a maior floresta tropical do mundo – e é assim que concluímos que o modelo de desenvolvimento adotado para a região traria consequências catastróficas. Não é de hoje que observamos os efeitos das mudanças climáticas e alertamos sobre suas causas.
Esta semana, o Rio Negro em Manaus chegou ao seu menor nível desde 1902. A Amazônia está passando pela mais grave seca em 43 anos: a falta de água impacta os 63 povos indígenas do Amazonas. Rondônia, Pará e Roraima também enfrentam uma vazante extrema, enquanto o Acre decretou emergência nos seus 22 municípios. As lavouras estão murchando e, os peixes, morrendo. Os rios secos impedem o acesso às aldeias; eles são nossas ‘estradas’.
Enquanto isso, a floresta arde em chamas e o problema não é só nosso: a mesma fumaça que nos sufoca faz o dia virar noite em Manaus. E a água que falta à Amazônia cai sem parar no sul – em Santa Catarina, em 15 dias choveu mais do que o esperado para todo o mês de outubro. Indígena ou não, a ciência comprova que a estiagem no norte do Brasil e os temporais na Região Sul estão interligados. Porém, mesmo com os sinais que vêm do céu, os políticos não parecem dispostos a mudar o rumo.
Em setembro, o Congresso enviou para sanção presidencial o Projeto de Lei 2903, que o presidente Lula tem até sexta (20/10) para vetar. Além de desafiar o STF, que julgou inconstitucional o marco temporal para demarcação de nossas terras, o PL expõe nossos territórios à mineração e ao agronegócio, acelerando a devastação das florestas e agravando os impactos das mudanças climáticas. Tudo que alertamos há tempos, virou um apelo da Mãe Terra.
Esse apelo precisa ser ouvido não só em Brasília, mas também nos estados que compõem a Amazônia brasileira. O Amazonas, por exemplo, que detém a maior população indígena do país e a maior área de floresta preservada, decidiu tomar o sentido contrário. O governo estadual anunciou que os Mura deram aval para a mineradora Potássio do Brasil explorar a terra deles, o que não é verdade: os poucos que o fizeram não representam a vontade do povo Mura e sua população de 12 mil indígenas. E tampouco dos que vivem na Terra Indígena Soares/Urucurituba, a mais afetada e que está em processo de demarcação. As reuniões da empresa com os indígenas sequer respeitaram o protocolo de consulta dos povos e a Convenção 169 da OIT. O nome disso é aliciamento.
Os sintomas mais conhecidos da extração de potássio são imensas crateras que tomam o solo e ameaçam lençóis freáticos, mas há um pior: abrir caminho para a mineração em terras indígenas, um dos efeitos colaterais do PL 2903. Por isso, estamos determinados a evitar esse desastre anunciado, cobrando o veto integral ao PL 2903, a demarcação das terras indígenas e a declaração de uma emergência climática na Amazônia.
Afinal, nossos territórios são as principais barreiras contra o desmatamento – apenas 1% de vegetação nativa foi derrubada dentro deles nas últimas três décadas. Nós somos a verdadeira transição ecológica: representamos os 5% da população do planeta que protegem 80% de sua biodiversidade. E somos os que mais sofrem com os efeitos dos fenômenos climáticos extremos.
A Terra é morada de todos os povos; cuidar dela não é um dever só nosso. Não precisa ser cientista para saber que, se Amazônia desaparecer, nós, povos da floresta, não seremos os únicos afetados. A contagem regressiva para o seu ponto de inflexão não cessa. Quantas crises ainda enfrentaremos para que todos – a começar pelos governantes – façam sua parte?
*Mariazinha Baré é coordenadora da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), que representa os 63 povos indígenas do Estado do Amazonas
*Toya Manchineri é coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que representa 180 povos indígenas da Amazônia
Atualização: No fim da tarde desta sexta-feira, 20, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou parcialmente o PL 2903/2023. Com a decisão, foi barrado o ponto principal do projeto, que estabelecia o limite das demarcações em 1988.
Links relacionados:
Governador do AM cooptou indígenas Mura para favorecer gigante da mineração, denunciam lideranças
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Lobby da mineração busca cooptar indígenas no Amazonas
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Indígenas falam em pressão para apoio à exploração de potássio em Autazes
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More insane pictures of Russian potash mining destruction
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Mega-projeto para exploração de potássio no Amazonas gera controvérsias
https://brasil.mongabay.com/2020/01/mega-projeto-para-exploracao-de-potassio-no-amazonas-gera-controversias/
Amazon’s Indigenous people urge Brazil to declare climate emergency as rivers dry up
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Articulação de indígenas do AM pede que governos declarem emergência climática diante de seca
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Indígenas da Amazônia pedem que governo declare emergência climática em meio à seca grave
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União reconhece emergência nas 22 cidades do Acre devido à seca extrema
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As Terras Pretas de Índio da Amazônia: o entendimento de sua formação e evolução
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abril 2022 | Cultura Popular, Direitos humanos
O novo coronavírus entrou em nossas vidas trazendo dor e uma pergunta, que até agora não se calou: sairíamos melhores ou piores dessa provação? Ainda que seja cedo para conhecermos a resposta, os primeiros desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo da era Covid-19 foram um sopro de esperança. “Nasce com a pandemia a necessidade de analisar e repensar a vida”, sugeriu a paulistana Unidos de Vila Maria. E o seu enredo, “O Mundo Precisa de Cada Um de Nós”, prescreveu como solução que “a nossa união, o dom de partilhar, revelam na cadência que a cura pra dor é o amor”. Exu, mensageiro dos orixás, que tem o dom da transformação, foi o grande destaque. Que ele abra os caminhos para nossa renovação, que passa por louvar nossa diversidade.
O Brasil que todos amam, multicultural, inclusivo, afetuoso, fraterno, alegre, gentil, pacífico e com uma consciência ambiental herdada de nossos ancestrais não só foi celebrado no Sambódromo do Anhembi e na Marquês de Sapucaí, como saiu vencedor. Nossa herança africana – que, afinal, nos legou o samba e vem sendo vergonhosamente escanteada – foi exaltada com toda pompa e circunstância que merece. Tema de enredo de boa parte das agremiações, ela deu à Grande Rio o seu primeiro título.
Com “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu”, a escola de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, entrou na luta contra a intolerância religiosa e o racismo. A ideia foi desmistificar a divindade, equivocadamente associada à figura do diabo pela cultura ocidental. Logo ele que, segundo o zelador espiritual Danilo de Oxóssi, é “quem abre os caminhos da gente, é quem traz a prosperidade, quem traz a fartura para a sua casa”.
Mas não só: como Exu é o orixá que rege o lixo, a transformação e, portanto, a reciclagem, os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora levaram essa ideia à Avenida, reaproveitando material de outros carnavais. A Grande Rio também levou o Estandarte de Ouro do “Globo”, além do prêmio Fernando Pamplona, primeiro carnavalesco a usar matéria-prima barata nos desfiles, criando luxo a partir do lixo. Seu objetivo, de acordo com o jornalista Marcelo Mello, um dos jurados, é exaltar a sustentabilidade: “É agregar material reaproveitável. Reciclar. Pensar em sustentabilidade, ajudar o planeta”.
A alegoria que mereceu o troféu foi o carro “Fala, Majeté”. Ele foi construído com sobras de adereços antigos e material recolhido pela Associação de Catadores do Jardim Gramacho. A escola também homenageou personalidades como o artista plástico Arthur Bispo do Rosário, a poeta Stella do Patrocínio e a catadora e profeta Estamira, personagem-título de um multipremiado documentário, que fizeram do lixo arte e ganha-pão.
Aldeando todos os espaços, os povos originários também estão fazendo da passarela seu território. A Unidos da Tijuca deu o seu recado logo em sua comissão de frente: “Brasil, Terra Indígena”. A escola carioca contou em seu enredo, “Waranã – A reexistência vermelha”, a lenda da origem do guaraná. A intenção foi reafirmar que os povos da floresta são seus verdadeiros donos e guardiões.
O mesmo objetivo teve a X-9 Paulistana, que condenou a destruição das florestas, o genocídio e a expulsão dos indígenas de seus territórios desde a chegada do invasor europeu em “Arapuca Tupi – A reconquista de uma terra sem dono”. O desfile, pelo Grupo de Acesso 1 do Sambódromo do Anhembi, contou com presenças ilustres como Sonia Guajajara, Celia Xakriabá, Ingrid Sateré-Mawé, Kleber Karipuna, Sonia Ara Mirim e o cacique kaiapó Megaron Txucarramãe, que cantaram que “renasce a esperança, fartura que faz e alimenta o sonho Tupi, mudam sentimentos na sociedade, novo pensamento, irmanar e sentir, o despertar da Humanidade”.
Já a Acadêmicos do Sossego, escola de Niterói que desfilou “Visões xamânicas” pela Série Ouro, na Marquês de Sapucaí, se inspirou no livro “A queda do céu”, do xamã Yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert. O enredo fala do colapso ambiental e climático que enfrentamos, causados pela cobiça do homem branco. “A partir da história que Davi conta nesse livro, a gente criou esse líder espiritual do nosso enredo, que é esse herói, que vai fazer uma saga através do mundo dos sonhos. Através do encontro com seres espirituais, vai encontrar outros líderes de nações indígenas do mundo inteiro para encontrar a solução para esse mundo que está acabando”, explicou o carnavalesco André Rodrigues.
Estamos na Década do Oceano e a paulistana Mancha Verde, antenada, ganhou seu segundo título no Anhembi cantando nosso bem mais precioso, a água: “O enredo tem duas grandes vertentes, uma delas é a religiosa, como a água se introduz em várias religiões e, também, por outro lado, um tema atual, que é a escassez, mostrar como o homem maltrata a água”, contou o diretor de carnaval da escola, Paolo Ricardo de Moraes Bianchi. Para os povos tradicionais, a água é sagrada; deveria ser para todo mundo.
Que encantados, orixás, santos, Javé, Alá, o Cristo amoroso dos Evangelhos e os homens sem fé de boa vontade nos guiem para um pós-pandemia mais fraterno e sustentável. Escola de samba não ensina só o batuque e poesia. Quem perdeu essas lições ou quer revê-las, sexta-feira (em São Paulo) e sábado (no Rio) tem o Desfile das Campeãs. Vamos aquecer tamborins e corações, e revigorar nossa esperança de que a Humanidade mude para melhor depois de o novo coronavírus passar não seja apenas uma fantasia? Afinal, o mundo precisa de cada um de nós, gotas no oceano.
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