Um bom termômetro para saber se uma festa está acabando é olhar quanto gelo ainda sobrou no freezer. É hora de acender as luzes e tirar a música no planeta Terra: nada menos que quatro recordes seguidos de temperatura média global foram quebrados na semana passada. O ponto alto aconteceu na última quinta-feira (6/7), com 17,23ºC, o dia mais quente já registrado. Esse calorão vem reduzindo o estoque de gelo do planeta – e, consequentemente, fazendo com que ele esquente mais e mais. Em fevereiro, a Antártida derreteu como nunca; e no mês passado, chegou ao nível mais baixo para um mês de junho, início de inverno. Como se tivessem desligado o congelador no meio da farra.
O Continente Antártico havia perdido quase uma Argentina de gelo – 2,5 milhões km² – no fim do mês passado, em relação à superfície média de 1991 a 2020. Em 16 de fevereiro, a camada de gelo sobre o mar tinha sido reduzida a 2,06 milhões km², a menor área registrada desde o início do monitoramento por satélite, há 45 anos. A recuperação tem sido bem lenta, chegando a 11,5 km², 17% abaixo do normal. O mais preocupante é que, até bem pouco tempo, as mudanças climáticas vinham poupando a Antártida: foram 35 anos de estabilidade e, em setembro de 2014, chegou a atingir a maior extensão coberta desde 1979: 20 milhões de km². A partir de 2015, a queda foi constante e a falta de gelo não só contribui com o aquecimento do planeta, como pode levar espécies à extinção.
Se não faz frio o suficiente no inverno do Hemisfério Sul, o verão no Norte promete ferver. Um estudo publicado na revista científica “Nature Medicine” calcula que até 94 mil pessoas podem morrer por causa do calor na Europa em 2040, caso nenhuma providência seja tomada. O ano de 2022 foi o mais quente registrado no continente e matou 61.672 pessoas. Na Itália, uma forte onda de calor, causada por um anticiclone chamado Cerberus, vai fazer a temperatura passar dos 40ºC na maior parte do país e chegar a até 48ºC na Sicília e na Sardenha. Os italianos enfrentaram inundações e tempestades na primavera, e Alemanha, Espanha, França e Polônia também devem ser bastante castigadas pelo sol nos próximos dias. É o mesmo disco arranhado tocando sem parar desde 2015.
Uma boa nova vem da Amazônia: o desmatamento está em queda constante. No primeiro semestre, diminuiu 34% em relação ao mesmo período do ano passado; em junho, a queda foi de 41%, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Mas ainda não há o que festejar: o El Niño ronda ameaçadoramente a maior floresta tropical do mundo. É um círculo vicioso, a derrubada da mata alimenta o aquecimento global, que põe fogo no verde. Os focos de calor cresceram 10,7% nos primeiros seis meses do ano, chegando a 8.344, e atingem o maior número desde 2019 – quando foram 10.606. E se o desmatamento diminui na Amazônia, ele vem crescendo vertiginosamente no bioma vizinho. O Cerrado já perdeu 4.408 km², 21% a mais que no primeiro semestre de 2022, o que dá quase quatro cidades do Rio de Janeiro.
O clima pode ser de fim de festa, mas não é hora de tocar a marcha fúnebre. Nada de desânimo, todos nós podemos colaborar para mudar esse quadro preocupante. Uma dica: o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima abriu um canal para consulta popular, onde é possível votar nas iniciativas do Programa Plurianual Participativo (PPA) do governo federal, como o projeto de Combate à Emergência Climática, por exemplo. Além disso, também é possível mandar propostas. Mas não dá pra esperar a festa acabar: as votações estão abertas até 14 de julho, é preciso agir logo. Só temos este planeta, brindemos à sua saúde e cuidemos dela!
Saiba mais:
Brasil Participativo Enfrentamento da Emergência Climática
Puyr Tembé, presidente da Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa) e secretária dos Povos Indígenas do Pará
A mãe do Brasil é indígena. Foi uma de nós quem deu à luz esta terra. Nossa ligação com ela é verdadeiramente ancestral. O mundo inteiro se comoveu com o martírio dos Yanomami e correu para ajudá-los. Sou mãe: consigo imaginar, como se fosse minha, a dor de quem perde o filho ou que não pode amamentá-lo; ou das mulheres que sofreram violência sexual e abortaram por espancamento. Infelizmente, os Yanomami não são os únicos que correm o risco de serem dizimados por causa da cobiça alheia: eu, por exemplo, vivo num estado tão ou mais ameaçado pelo garimpo ilegal que Roraima. Por isso dediquei minha vida à luta pela defesa de nossas terras.
Nasci há 44 anos na aldeia São Pedro, na Terra Indígena Alto Rio Guamá, no sudoeste do Pará. Sou mãe de três filhas, avó e milito desde muito jovem; só que nos últimos quatro anos, nós, mulheres e lideranças indígenas, tivemos que decidir entre lutar para viver, ou esperar pela morte. A forma como fomos (des)tratadas durante a pandemia acendeu definitivamente o alerta. Hoje, presido a Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa) e fui convidada para assumir a recém-criada Secretaria dos Povos Indígenas do Pará. Além disso, faço parte da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira e sou cofundadora da Associação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
Mais da metade das áreas de garimpo do país ficam no Pará, muitas delas em unidades de conservação e em nossos territórios. Estima-se que 60 mil garimpeiros atuam só na Bacia do Rio Tapajós. Na mesma região, vivem 13 mil Munduruku; ou seja, eles estão em minoria em suas próprias terras. Os efeitos já podem ser sentidos: a Polícia Federal calcula que foram despejados cerca de 7 milhões de toneladas de rejeitos tóxicos na bacia hidrográfica, enquanto um estudo da Fundação Oswaldo Cruz revelou que mais da metade da população de três aldeias (Sawré Muybu, Sawré Aboy e Poxo Muybu) tem mercúrio no organismo acima do recomendado.
É por isso que temos muitas frentes de batalha, mas a maior delas é lutar pela vida. E quando dizemos isso, falamos de demarcação e desintrusão de terras indígenas. Protegendo nossas terras, preservamos sua biodiversidade e nossas próprias vidas, e ajudamos a proteger a própria Humanidade. Os povos indígenas agora falam de igual para igual com a sociedade como um todo. Hoje estamos no governo, devemos executar em vez de solicitar. Mas eu continuo sendo Tembé.
Estamos lutando pelas que já não estão mais aqui, levadas pela pandemia ou pelo mercúrio, por nossa ancestralidade; e pelas nossas que ainda estão por vir, o nosso futuro. Só que nós, mulheres do movimento indígena, não vamos conseguir fazer isso sozinhas. Ainda precisamos do Estado, dos parceiros, dos aliados, das entidades que sempre nos deram apoio, colaboradores e simpatizantes. Toda a população brasileira deve assumir conosco a maternidade/paternidade deste país.
Parece notícia do ano passado ou retrasado, mas o Hemisfério Norte está pegando fogo e recordes de temperatura são batidos todos os dias. As projeções para o Brasil são igualmente preocupantes – a gente fala disso mais adiante. Até segunda-feira (18/7), Portugal registrou 659 mortes por causa das altas temperaturas; na Espanha, já morreram pelo menos 500 pessoas e se espera que no fim de semana passe dos 44° C em Sevilha. A área destruída pelos incêndios no continente já é maior que a de 2021 e poderá superar a de 2017, a maior já registrada. É fogo!
Na Inglaterra, os termômetros marcaram 40,2°C em Londres, um calor nunca visto no país, praticamente uma febre alta – segundo as previsões, isso só aconteceria em 2050. Para quem vive num país tropical já é o maior perrengue; agora imaginem para um cidadão inglês médio, que mora em casas com janelas minúsculas, não tem ar-condicionado ou sequer um ventilador em casa e não pode nem pegar um refresco em algum prédio com sistema de refrigeração central, já que são raros?
A coisa está tão feia na França que fazendeiros estão fazendo a colheita à noite, para evitar que o calor dos tratores cause incêndios. No sudoeste do país, mais de 100 km² queimaram e obrigaram 16 mil pessoas a fugirem de suas casas. A Terra gira em torno de seu eixo; mas como ele é ligeiramente inclinado, o sol bate mais diretamente no sul do que no norte. Por isso, faz mais frio por lá. Por isso os europeus têm se empenhado tanto em reduzir suas emissões de efeitos do gás estufa. A invasão da Ucrânia pela Rússia puxou o feio de mão do processo, pois eles estão sendo obrigados a usar mais carvão na produção de energia.
As mudanças climáticas são uma consequência do aquecimento global. É por causa desse desequilíbrio que, por exemplo neva com cada vez mais frequência no sul do país. Funciona assim: o Brasil recebe da Antártida correntes de ar frio e manda para lá massas de ar quente. É uma espécie de sintonia fina que pode ser bagunçada à menor variação. Como tem feito um calor anormal na Região Sul – as secas estão aí como prova – há uma perturbação nesse delicado sistema de trocas, que abre espaço para a entrada de frentes frias cada vez mais violentas. Mas, diferentemente do pessoal do norte, temos uma matriz energética relativamente limpa. O que pega é a famosa “vontade política”.
Como prometemos no primeiro parágrafo, vamos adiantar a previsões para as próximas temporadas de incêndio no país. E elas são de arrepiar. Até meados do mês passado, 6. 220 km² de Amazônia já tinham sido carbonizados – contra 4.400 km² do mesmo período em 2021. O número é 30% superior à média histórica para o primeiro semestre e o Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe) detectou 2.562 focos de calor, a maior quantidade desde 2007. No ano passado, a maior floresta tropical do mundo perdeu 18 árvores por segundo, mas as autoridades responsáveis prometem se empenhar para superar a marca.
Para começar, inventaram a pedalada pirotécnica: criaram um grupo para definir o que pode ou não ser classificado como desmatamento e queimada. A tal comissão de notáveis não tem sequer um nome ligado ao Inpe, órgão reconhecido internacionalmente pela sua excelência, mas gente ligada aos ministérios da Defesa, da Justiça e Segurança Pública, da e da Economia. Ou seja, só gente que entende do riscado – no sentido de riscar florestas do mapa. E a cereja encharcada de querosene do bolo: o governo gastou só 18% do orçamento destinado à prevenção e ao combate a incêndios. O pior é que, como a situação piora a cada ano, esses ainda serão considerados os bons velhos tempos, caso a gente não forme nosso próprio corpo de bombeiros. Os hidrantes são as urnas.
É bonito ver a mobilização para ajudar aqueles que perderam seus lares nas inundações que assolam boa parte do país. Mas dois povos estão particularmente desamparados nessa catástrofe. Parte considerável de indígenas e quilombolas vive em locais de difícil acesso, aonde nem sempre chega ajuda. Exemplos de resistência e historicamente perseguidos, ambos se viram ainda mais acuados desde a posse do governo atual. Por isso, são os que mais precisam de nossa ajuda nesse momento. É hora de exercitar os ensinamentos ancestrais dos povos originários e tradicionais e cuidarmos uns dos outros, e lutar para dar mais visibilidade aos que o Brasil oficial quer fingir que não existem.
De acordo com a Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat) e o Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), 51 comunidades – cerca de 5.940 famílias ou 29.700 mil pessoas – dos povos Pataxó, Tupinambá, Pataxó Hã Hã Hãe, Imboré/Kamakã e Pankarú, foram atingidas apenas naquela região do estado; já a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) calcula que só em Minas Gerais, Bahia, Tocantins e Goiás são pelo menos 12 mil famílias afetadas.
“O sertanejo antes de tudo é um forte, por isso estamos sobrevivendo, cada um se virando como pode. A viagem precisa ser feita a cavalo, em muitas comunidades há mutirões para desatolar os veículos que tentam chegar à cidade”, conta Nelci Conceição, liderança do Quilombo Aroeira, localizado no município baiano de Palmas de Monte Alto, região de Caatinga e Cerrado, onde ficam mais 17 comunidades. A estrada que leva os quilombos locais até a cidade é de barro e está intransitável; uma viagem que antes levava uma hora e meia hoje chega a durar seis. “Tenho visto em reportagens autoridades sobrevoando áreas atingidas de helicóptero, mas não somos lembrados. A comunicação é difícil, pois falta energia e a internet é cara”, diz ela.
Nelci conta ainda que em dezembro do ano passado previram que a região poderia ser atingida por temporais, mas seus alertas foram ignorados. “Desde 1992 não chovia tanto por aqui, estávamos sofrendo com a seca, mas notamos sinais de que o tempo estava mudando. E o nosso pedido de asfaltamento da estrada foi protocolado em 2019 e nada foi feito”. Foram ignorados como se não existissem.
E além de o governo fazer vista grossa para as mazelas desses povos, é como se eles estivessem pagando por um crime cometido por outrem. Por exemplo: no último dia do ano que passou, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou que o Cerrado perdeu mais 8.531,44 km² de mata nativa de agosto de 2020 a julho de 2021. Foi a maior devastação registrada no bioma, presente em Goiás, Tocantins, Maranhão, Piauí, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo. Não por acaso, esses estados estão entre os mais atingidos: os grandes produtores rurais comeram o verde para plantar soja até a beira do rio que, por causa disso, acaba transbordando.
Como desgraça pouca é bobagem, também no apagar das luzes de 2021 o presidente sancionou a lei que modifica as regras de proteção de margens de rios em áreas urbanas, estabelecidas pelo Código Florestal. Agora a responsabilidade cabe às prefeituras – ou seja, fica a sabor do curso das eleições da ocasião. Mais destruição e sofrimento à vista.
Segundo dados preliminares do IBGE, que este ano deve realizar um censo especial voltado para os quilombolas, eles são 1.133.106. Bahia e Minas, os estados mais afetados pelas cheias, junto com Tocantins, também são os que abrigam mais quilombos: 1.046 e 1.021, respectivamente. Hoje, praticamente o mundo inteiro conhece o papel fundamental dos indígenas na preservação das florestas, mas nem todos sabem que os quilombolas também fazem um trabalho importantíssimo nesse terreno.
A mesma pesquisa do IBGE diz que existem pelo menos mil quilombos na Amazônia; e já há algum tempo se conhece a dimensão de sua influência na conservação dela. Um estudo sobre isso foi realizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo em 35 comunidades da região de Oriximiná, no Norte do Pará, em 2011. São 6.944 km² de floresta; até o ano 2000, a região havia perdido 64 km² de vegetação nativa e entre 2006 e 2009, somente 6 km². Falta um reconhecimento maior desse feito. “Isto é devido ao modo que os quilombolas exploram a floresta. Eles vivem um modelo econômico com ênfase no extrativismo”, disse na época Lúcia Andrade, coordenadora-executiva da instituição.
Indígenas e quilombolas são povos que diariamente cuidam do planeta e do nosso futuro – e, justamente por isso, são tão perseguidos. Então, não custa lembrar que além de ser um belo sentimento, a empatia também é fundamental para aguçar nosso instinto de sobrevivência. Vendo o que estão passando nossos irmãos Brasil adentro você também não sente a água batendo nas canelas? Ficar ao lado deles é resistir contra a destruição de tudo o que temos de mais precioso.
Dentre as muitas notícias fortes dos últimos dias relacionadas às mudanças climáticas, uma surpreendeu pelo inusitado. Cerca de um bilhão de mexilhões e ostras foram cozidos pelo calor numa praia. Ah, e isso aconteceu perto de Vancouver, no (outrora gelado) Canadá. Foi uma triste caldeirada. Também na semana passada, mais de 800 pessoas morreram na província da Columbia Britânica por causa das altas temperaturas – os termômetros canadenses chegaram a marcar 49,6°C na região. Enquanto isso, Alemanha e Bélgica foram atingidas por um temporal de escala amazônica, que deixou um rastro de destruição sem precedentes e, pelo menos, 196 mortos – ainda há centenas de desaparecidos. A China acaba de enfrentar tragédia parecida. Se moluscos acabaram cozidos no litoral canadense e caiu chuva tropical na Europa e na Ásia é porque estamos fritos em qualquer parte do planeta; e pulamos na frigideira por vontade própria.
A impressão é de que a coisa está azedando mais rápido no Hemisfério Norte. Não à toa: o lado de lá concentra 87% da população e ocupa 67,3% do território terrestre. A densidade demográfica na Europa e em países asiáticos é altíssima – e, portanto, eles estão mais sujeitos a catástrofes com vítimas. Além disso, é a parte mais rica e industrializada do planeta. Mas os incêndios na Amazônia, no Pantanal e na Austrália, além da temperatura recorde de 18,3°C recentemente registrada na Antártida, são sinais de que o nosso caldo também já está entornando. A temperatura média da América do Sul pode aumentar em quatro graus até o fim do século, caso as emissões de gases de efeito estufa continuem nessa toada. A conclusão é de uma pesquisa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, publicado na revista científica “Earth Systems and Environment”.
“A América do Sul e, em particular, o Brasil já mostram sinais das mudanças climáticas, incluindo o aumento das temperaturas da superfície, mudanças nos padrões de precipitação, derretimento das geleiras andinas e elevação no número e intensidade de extremos climáticos. Essas variações nas características climáticas são precursoras do que pode estar por vir nas próximas décadas”, adverte Lincoln Muniz Alves, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um dos autores do texto. Entretanto, o governo brasileiro continua fingindo que a casa não está pegando fogo – quando não bota mais lenha na fogueira.
O desmatamento segue batendo recordes na Amazônia: em junho foram abaixo 926 km², de acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). O novo relatório da entidade, divulgado nesta semana, mostra que no primeiro semestre de 2021 a floresta perdeu 4.014 km², a maior extensão da década para esse período. Enquanto isso, o Executivo se mantém fiel à sua política antiambiental. Um exemplo de que nada mudou com a saída do ministro Ricardo Salles está estampado em duas notícias recentes: segundo levantamento inédito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desde que Bolsonaro assumiu, o total de pagamento de multas por crimes ambientais na Amazônia caiu 93%, em comparação aos quatro anos anteriores; ao mesmo tempo, o Ibama, que teve seu quadro de analistas ambientais reduzido a 26%, pretende preencher apenas 655 vagas das 2.348 existentes. De dez anos para cá, perdeu quase metade de seus funcionários.
Matando a galinha dos ovos de ouro
Lincoln Alves também alerta que, caso este cenário permaneça, as secas no sul da Amazônia vão se intensificar, o que afetará diretamente áreas que o próprio governo considera estratégicas: “Se antes chovia dez milímetros em um determinado mês, esse número caiu pela metade. Isso tem impactos nos setores agrícola e de geração de energia, por exemplo, que fazem seus planejamentos com base nos volumes de chuvas”. O mercado de commodities está fervendo, mas com sua fome insaciável o agronegócio pode acabar matando a galinha dos ovos de ouro.
Outros estudos recentes avalizam o que diz o pesquisador do Inpe. O primeiro, que saiu em maio na revista “Nature Communications”, calculou que o setor deixa de ganhar US$ 1 bilhão por ano por causa da estiagem. O motivo é óbvio, mas não custa repetir: “Com menos árvores na floresta, há menos umidade no ar e menos chuvas. Logo, o avanço do desmatamento na Amazônia impacta a produtividade do agronegócio brasileiro”, explica um dos autores, o engenheiro florestal Argemiro Teixeira Leite Filho, da UFMG. O segundo, encabeçado pela engenheira ambiental Rafaela Flach, pesquisadora da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, acabou de ser publicado no periódico “World Development”. Segundo este, a indústria da soja perde US$ 3,55 bilhões por ano por causa do calor; quando os termômetros passam dos 30°C, a produtividade cai em até 5%.
O que de pior poderia acontecer já está é realidade: a Amazônia tem emitido três vezes mais CO₂ do que absorvido, de acordo com uma pesquisa internacional, liderada pela pesquisadora do Inpe Luciana Vanni Gatti e publicada no último dia 14 na “Nature”. Entre 2010 e 2018 a Amazônia brasileira derramou na atmosfera 1,06 bilhão de toneladas de carbono por ano e só sugou 18% de volta. “A segunda má notícia é que os locais onde o desmatamento é de 30% ou mais apresentam emissões de carbono dez vezes maiores que onde o desmatamento é inferior a 20%”, diz Luciana. “Essas áreas esquentaram nas últimas quatro décadas quase 2,5°C. Para se ter uma ideia, o resto do mundo esquentou 1,2°C em 150 anos”, completa Claudio Angelo, coordenador de comunicação do Observatório do Clima e autor do livro “A espiral da morte”.
Do outro lado da Linha do Equador a turma já se deu conta de que não dá para levar o problema em banho-maria: “Apenas se nos comprometermos de forma resoluta com a luta contra as mudanças climáticas poderemos controlar condições meteorológicas extremas como as que vivemos atualmente”, declarou o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier, que é conservador, sobre o desastre que se abateu sobre o seu país. Os europeus estão sentindo o gosto amargo de suas escolhas equivocadas. “As mudanças climáticas pararam de ser algo que ocorre em algum lugar distante, como o Ártico ou até a Amazônia, e passaram a ser algo que afeta diretamente a vida da população, matando mais de uma centena de pessoas num único evento”, explica a bióloga brasileira Erika Berenguer, pesquisadora das universidades de Oxford e Lancaster, no Reino Unido.
É a tal história: farinha pouca, meu pirão primeiro. Ainda mais depois que a Agência Internacional de Energia (IEA) anunciou na terça-feira (20) que os recursos internacionais destinados à transição energética no pós-pandemia são insuficientes para reduzir as emissões globais de CO₂. Pior: segundo os seus cálculos, essas emissões vão disparar a partir de 2023, a não ser que o pessoal coce o bolso com vontade. “Desde o início da crise da Covid-19, muitos governos têm destacado como é importante reconstruir melhor, para um futuro mais saudável, mas muitos ainda têm que fazer o que dizem”, cutucou o diretor da IEA, Fatih Birol. Essa conta vai ficar ainda mais salgada, e a turma do Norte não vai querer pagar ela sozinha.
A batata do Brasil está assando e a pressão não virá só de cima: “O ativismo de investidores pode ser uma força poderosa para o bem”, defendeu o “Financial Times”, uma das bíblias do mercado financeiro, num contundente editorial publicado no dia 14. O jornal inglês sugeriu que a turma do dinheiro puna o Brasil pelo desmatamento na Amazônia. “Pouca gente acredita que Bolsonaro, ligado a um ruidoso eleitorado de madeireiros, pecuaristas e evangélicos, mudará de comportamento em seus 18 meses finais de mandato”, diz o texto. “O Código Florestal, que parecia impressionante, está rapidamente se tornando letra morta, porque as agências que policiam sua aplicação tiveram seus orçamentos cortados severamente”, continua. A sociedade civil reage, pois nem sempre os governos trabalham pelo bem-comum. Precisamos nos mirar nesse exemplo se quisermos continuar sentados à mesa.